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Influência da reposição do hormônio do crescimento no desenvolvimento neuropsicomotor. Relato de caso

Influência da reposição do hormônio do crescimento no desenvolvimento neuropsicomotor. Relato de caso

Autores:

Felipe Motta,
Adriana Pasmanik Eisencraft,
Lindiane Gomes Crisostomo

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.16 no.2 São Paulo 2018 Epub 14-Maio-2018

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082018rc3961

INTRODUÇÃO

O conceito de desenvolvimento em crianças é amplo e se refere a uma transformação complexa, contínua e progressiva, tanto física quanto psíquica. Na prática assistencial, o desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM) é avaliado por meio da identificação dos principais marcos, segundo a idade da criança.(1)

Os componentes do eixo do hormônio do crescimento (GH - growth hormone) e do fator de crescimento semelhante à insulina tipo 1 (IGF1 - insulin-like growth factor 1) estão envolvidos não apenas no crescimento, desenvolvimento e mielinização do cérebro, mas também em sua plasticidade, afetando a gênese de neurônios, astrócitos, células endoteliais e oligodendrócitos, o que se traduz em diversos efeitos cognitivos.(2)

Dados recentes sugerem que a deficiência de GH na infância pode ter um impacto mais amplo na saúde e no DNPM, mas é ainda desconhecido em que proporção o tratamento com reposição hormonal com GH pode reverter este efeito.(3) Relatamos o caso de um paciente com deficiência de GH e alteração do DNPM, bem como os resultados obtidos após início do tratamento com GH.

RELATO DO CASO

Trata-se de um paciente acompanhado no ambulatório de endocrinologia do Programa Einstein na Comunidade de Paraisópolis até julho de 2016. Paciente do sexo masculino, com 9 anos de idade no momento deste relato, tendo sido admitido no ambulatório de pediatria aos 3 meses. Tinha como antecedentes 26 4/7 semanas de idade gestacional, peso de 910g e Apgar 9/9/10. Evoluiu com desconforto respiratório, sendo necessário suporte ventilatório prolongado, surfactante, corticoide inalatório e antibioticoterapia de amplo espectro. Foi amamentado por apenas 1 mês, tendo recebido fórmula láctea na sequência.

Como antecedentes familiares relevantes, destacam-se: cardiopatia materna, um irmão portador de hipotireoidismo subclínico, e outro com deficiência de GH, hipotireoidismo e epilepsia. Como aspecto social de destaque, apresentava adensamento familiar em comunidade com limitada condição de saneamento básico (seis moradores em domicílio de alvenaria) e baixa renda. Durante os primeiros 6 meses de vida, realizou acompanhamento ambulatorial irregular, decorrente de múltiplas e prolongadas internações.

Do primeiro ao quarto ano de vida, foi avaliado e acompanhado por diversos profissionais em função dos seguintes diagnósticos: atraso do DNPM e crises convulsivas; comunicação interatrial e derrame pericárdico; baixo ganho pôndero-estatural; displasia broncopulmonar e doença do refluxo.

Videodeglutograma realizado aos 4 anos de idade revelou disfagia orofaríngea neurogênica moderada, sendo indicada gastrostomia. Em junho de 2012, apresentou fratura espontânea de fêmur.

Durante o período, apresentou atraso significativo do desenvolvimento pôndero-estatural e neuropsicomotor, apesar das intervenções clínicas, terapêuticas e nutricionais. A figura 1 apresenta linha do tempo relacionada ao atendimento hospitalar e ambulatorial.

Figura 1 Histórico relevante de internação hospitalar e seguimento ambulatorial da admissão até início do seguimento endocrinológico 

Aos 6 anos de idade, foi admitido no ambulatório de endocrinologia pediátrica, com comprimento de 82cm (escore Z de −6,89), velocidade de crescimento de 4cm/ano e peso de 8,24kg (escore Z de −7,91). Na avaliação do DNPM, observou-se incapacidade de sustentar o peso axial (atraso para sentar e andar), na habilidade motora fina (pegar objetos), no controle esfincteriano, na deglutição e na linguagem.

Exames complementares relevantes mostraram IGF1 de 28ng/mL (valor de referência: de 52 a 297ng/mL), ressonância magnética de crânio e hipófise normal, e raio X de punho para a avaliação de idade óssea compatível com 3 anos — para a cronológica de 6 anos e 1 mês. O teste da clonidina se mostrou alterado, com pico máximo de GH de 4,44ng/L.

Foi, então, iniciado tratamento com GH na dose de 0,1UI/kg/dia, seis vezes por semana, após o qual foi possível evidenciar relevante evolução das aquisições neuropsicomotoras, como controle esfincteriano no sétimo mês de terapia, da marcha sem apoio no décimo primeiro mês, e da fala no décimo quinto mês (Figura 2).

Figura 2 Aspectos clínicos relevantes do desenvolvimento, desde a admissão 

Também obteve significativa recuperação auxológica, evidenciada tanto em curva de desenvolvimento para crianças normais quanto na específica para aquelas portadoras de alterações do desenvolvimento neurológico (Figura 3).

Figura 3 Desenvolvimento auxológico e sua relação com o início da reposição hormonal. (A) Percentil de peso para a idade para meninos de 2 a 20 anos com paralisia cerebral; (B) percentil de estatura para a idade para meninos de 2 a 20 anos com paralisia cerebral; (C) percentil de estatura para a idade para meninos de 5 a 19 anos com desenvolvimento normal. Foram utilizados como gráficos de referência para A e B: Brooks J, Day S, Shavelle R, Strauss D. Low weight, morbidity, and mortality in children with cerebral palsy: new clinical growth charts. Pediatrics. 2011;128(2):e299-307; para C: World Health Organization(WHO). WHO Child Growth Standards: Length/height-for-age, weight-for-age, weight-for-length, weight-for-height and body mass index-for-age: methods and development. Geneva: World Health Organization; 2006. 312 p. 

Não houve relatos de eventos adversos relativos ao uso do medicamento.

Atualmente, com 9 anos de idade e 27 meses de tratamento com GH, cursa o terceiro ano do Ensino Fundamental, mas ainda apresenta baixo rendimento escolar, sem dificuldades de linguagem e com boa interação social (Figura 2).

DISCUSSÃO

Relatamos o caso de um paciente com múltiplos agravos nos períodos perinatal e lactente jovem, que apresentava evolução insatisfatória, tanto no aspecto de ganho pôndero-estatural quanto do DNPM,(4) até se identificar a deficiência de GH. Apesar de várias intervenções terapêuticas, melhorias significativas apenas puderam ser observadas com o início da terapia de reposição hormonal.

Componentes do eixo GH-IGF1 têm demonstrado influenciar no desenvolvimento, na função, na regeneração e na neuroproteção de certas áreas do sistema nervoso central, com papéis bem estabelecidos na neurogênese,(3) elongação axonal e formação de olingodendrócitos, astrócitos e células da glia.(5) Estudos recentes evidenciam também diminuição de função cognitiva em crianças portadoras de deficiência de GH, sugerindo que a deficiência deste hormônio impacta em diversos aspectos do desenvolvimento.(6) Atualmente já há evidências que suportam a hipótese de que anormalidades no eixo GH-IGF1 afetam o desenvolvimento estrutural do cérebro e do trato córtico-espinhal, levando a dificuldades na cognição e das funções motoras.(6)

O tratamento com GH recombinante interfere na plasticidade esquelética, aumentando a massa e a adaptação óssea, e promovendo alterações na arquitetura da cortical.(7)

Argente et al.,(8) publicaram o caso de três irmãs afetadas por grave deficiência do hormônio de crescimento e hipoplasia pituitária decorrente de mutação gênica. O achado inspira-nos a buscar uma causa genética para nosso paciente, uma vez que dois de seus irmãos também apresentavam alguns achados comuns como deficiência de GH, crises epiléticas e hipotireoidismo.

Clinicamente, a deficiência de hormônio de crescimento se manifesta de forma variável, acarretando desde apenas baixa estatura até quadros mais graves, como o relato de caso apresentado, com atraso de desenvolvimento neuropsicomotor.

Portanto, a reposição de GH vai muito além de procurar garantir uma estatura compatível com a idade, impactando na saúde e no bem-estar geral da criança. Até que ponto a reposição de GH recombinante será capaz de reverter os efeitos deletérios da falta deste hormônio é ainda uma grande incógnita, e somente estudos controlados e de longo prazo podem nos dar estas respostas.

REFERÊNCIAS

1. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: crescimento e desenvolvimento [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2012 [citado 2018 Fev 20]. [Cadernos de Atenção Básica, nº 33]. Disponível em:
2. Aberg D. Role of the growth hormone/insulin-like growth factor 1 axis in neurogenesis. Endocr Dev. 2010;17:63-76. Review.
3. Alatzoglou KS, Webb EA, Le Tissier P, Dattani MT. Isolated growth hormone deficiency (GHD) in childhood and adolescence: recent advances. Endocrine Rev. 2014;35(3):376-432. Review.
4. Gagnier JJ, Kienle G, Altman DG, Moher D, Sox H, Riley DS; CARE Group. The CARE guidelines: consensus-based clinical case report guideline development. J Clin Epidemiol. 2014;67(1):46-51.
5. Ransome MI, Goldshmit Y, Bartlett PF, Waters MJ, Turnley AM. Comparative analysis of CNS populations in knockout mice with altered growth hormone responsiveness. Eur J Neurosci. 2004;19(8):2069-79.
6. Molina DP, Ariwodola OJ, Linville C, Sonntag WE, Weiner JL, Brunso-Bechtold JK, et al. Growth hormone modulates hippocampal excitatory synaptic transmission and plasticity in old rats. Neurobiol Aging. 2012;33(9): 1938-49.
7. Högler W, Briody J, Moore B, Lu PW, Cowell CT. Effect of growth hormone therapy and puberty on bone and body composition in children with idiopathic short stature and growth hormone deficiency. Bone. 2005;37(5): 642-50.
8. Argente J, Flores R, Gutiérrez-Arumí A, Verma B, Martos-Moreno GÁ, Cuscó I, et al. Defective minor spliceosome mRNA processing results in isolated familial growth hormone deficiency. EMBO Mol Med. 2014;6(3):299-306.