versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol., ahead of print Epub 27-Abr-2020
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0080
O aumento da prevalência de doença renal crônica (DRC) e os consequentes impactos econômicos sobre os serviços de saúde resultaram em uma maior demanda por confecção de fístula arteriovenosa (FAV), considerada o calcanhar de Aquiles da hemodiálise.1 A ultrassonografia Doppler, um método não-invasivo que permite avaliar com segurança os vasos periféricos estrutural e funcionalmente, está se tornando a modalidade de imagem preferida para o planejamento e seguimento das FAV.1-10
Dados do censo de 2018 da Sociedade Brasileira de Nefrologia indicam que havia 133.464 pacientes com DRC em diálise no Brasil naquele ano, com uma prevalência nacional de 640 pmp (por milhão da população) e de 276 pmp no Maranhão. A grande maioria (92,3%) dos pacientes estava em hemodiálise.11
A fístula arteriovenosa autógena, localizada na região do punho e descrita originalmente por Brescia-Cimino em 1966, tem sido a primeira escolha para a maioria dos cirurgiões, pois a fístula rádio-cefálica ainda hoje é a que oferece menor risco de complicações e boa durabilidade.12,13 Enxertos e catéteres apresentam menor taxa de sobrevida devido à maior incidência de trombose e oclusão por hiperplasia intimal, além de maior suscetibilidade a infecções, levando a maior morbimortalidade dos pacientes em comparação à fístula arteriovenosa autógena.14
Segundo a National Kidney Foundation - Kidney Disease Outcomes Quality Initiative (NKF-K/DOQI), o acesso ideal fornece vazão adequada, boa durabilidade e baixa taxa de complicações (infecção, estenose, trombose, aneurisma e isquemia nos membros). Entre os acessos existentes, as fístulas arteriovenosas são as que mais se aproximam do ideal.15 Alguns estudos identificaram taxas de maturação inicial insatisfatórias, com falhas de maturação entre 30% e 60%.16,17
A ultrassonografia Doppler ajuda os cirurgiões vasculares a planejar a configuração de fístula mais adequada para otimizar a vazão de sangue no acesso vascular de hemodiálise, potencialmente reduzindo a incidência de disfunção da fístula arteriovenosa.6,18
As diretrizes do NKF-DOQI e da Society for Vascular Surgery recomendam o mapeamento vascular por imaginologia para todos os pacientes submetidos à cirurgia de confecção de fístula arteriovenosa para hemodiálise.15,19
O uso e interpretação do mapeamento vascular por ultrassonografia Doppler pré-operatória de FAV variam consideravelmente dependendo do país, com alta utilização demonstrada nos Estados Unidos, independentemente das características dos pacientes. Cirurgiões canadenses e europeus usam seletivamente o mapeamento vascular em pacientes com IMC >30, acesso cirúrgico prévio, histórico de uso de catéter venoso central e catéter venoso central de inserção periférica (PICC).20
Nosso estudo prospectivo buscou analisar a relação entre fatores de risco para falha da fístula arteriovenosa (idade avançada, sexo feminino, diabetes, obesidade, catéter venoso central do mesmo lado da FAV, fístula anterior e realização da fístula logo após a internação) e a realização de ultrassonografia Doppler no pré-operatório.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina do ABC-SP (FMABC-SP) e está em conformidade com os preceitos da Declaração de Helsinque. Todos os participantes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido. O presente estudo prospectivo incluiu pacientes em diálise atendidos nas clínicas de hemodiálise de Imperatriz-MA (Clínica de Doenças Renais e Clínica de Nefrologia de Imperatriz) que prestam serviços para o SUS (Sistema Único de Saúde). O tamanho da amostra foi de 228 pacientes. Metade foi randomizada por sorteio simples de 1:1 para a realização de ultrassonografia Doppler pré-operatória da FAV e metade não utilizou esse método no pré-operatório e foi avaliada apenas por exame físico. Avaliamos a redução de falhas de FAV potencialmente advindas da realização de ultrassonografia Doppler pré-operatória em relação aos seguintes fatores de risco: idade avançada, sexo feminino, diabetes, obesidade, catéter venoso central do mesmo lado da FAV, fístula prévia e internação próxima à confecção da FAV. O estudo ocorreu de outubro de 2016 a setembro de 2018, com cada paciente sendo acompanhado por seis meses (nos momentos pós-operatório imediato, uma semana, três meses e seis meses de pós-operatório).
Os critérios de inclusão foram pacientes adultos (idade> 18 anos) com condição clínica estável, arco palmar patente (teste de Allen), autorização para participar do estudo, diâmetro do vaso luminal conforme descrito abaixo, ausência de estenose ou trombose no sistema venoso central e ausência de estenose ou oclusão arterial avaliada por ultrassonografia Doppler (grupo ultrassonográfico). Foram excluídos os pacientes que realizaram o Doppler em clínicas privadas.
O aparelho de ultrassom utilizado foi um HD11 XE Performance Plus® (Philips) com transdutor de 3 a 12 MHz. Os exames foram realizados por um único ultrassonografista vascular. Todos os pacientes foram examinados na posição sentada, com os braços apoiados na mesa de exame. O exame das veias superficiais foi realizada com o uso de torniquete. A compressibilidade das veias cefálica e basílica ao longo de seu curso no modo B, bem como os diâmetros dessas veias, foram medidos com uma seção transversal no pulso, no terço proximal do antebraço e nos terços distal e proximal do braço. Foi avaliada a continuidade do sistema venoso profundo nas veias axilar e subclávia. Investigamos o diâmetro e o fluxo das artérias braquial, ulnar e radial, bem como da subclávia e axilar, para avaliar possíveis estenoses. A patência do arco palmar foi avaliada pelo teste de Allen. A avaliação do braço dominante foi realizada apenas quando o não dominante apresentou avaliação insatisfatória.
No presente estudo, os vasos satisfizeram os critérios mínimos de diâmetro luminal venoso ≥ 2,5 mm para fístulas nativas (usando torniquete), diâmetro de veias axilares ≥ 4,0 mm para enxertos arteriovenosos e diâmetro luminal arterial ≥ 2,0 mm para serem utilizados na confecção de FAV.21
O exame físico do grupo clínico foi realizado pelo cirurgião vascular que confeccionou as FAVs. As veias foram avaliadas com torniquete quanto ao diâmetro e compressibilidade. Edema ou circulação colateral foram avaliados em braços com sinais de estenose venosa central. O segmento arterial foi avaliado quanto à pulsatilidade e pelo teste de Allen.
A equipe profissional era composta por três cirurgiões vasculares experientes que prestavam serviços ao SUS. Cada cirurgião realizou a mesma quantidade de cirurgias nos dois grupos.
Em sua maioria, as FAVs eram localizadas na parte distal e no braço não dominante sempre que possível. Enxerto protético foi utilizado apenas quando não havia veia nativa para confecção da FAV. Após a confecção da FAV, o cirurgião avaliou a presença ou ausência de frêmito. Nefrologistas e enfermeiros qualificados avaliaram clinicamente a maturação da FAV. As FAVs e as possíveis alterações foram seguidas por seis meses. Não houve procedimento endovascular para resgate de fístula no presente estudo.
Os dados coletados foram digitados em uma planilha de Microsoft Excel 2016. Após conferência para eliminar erros e inconsistências, foram realizados exames descritivos por meio de frequências absolutas e relativas e medidas de tendência central e variabilidade.
O teste do qui-quadrado ou outro equivalente foi utilizado para avaliar associações entre variáveis qualitativas e, no caso de associações 2x2 significativas, as razões de chances e intervalos de confiança foram calculados por meio de regressão logística. Para a análise das variáveis quantitativas, foi utilizado o teste t de Student ou outro método não-paramétrico semelhante. Todas as análises foram realizadas com nível de significância de 5%, utilizando o programa IBM SPSS® (IBM SPSS Statistics, Versão 24.0, 2016).
Em ambos os grupos, a principal etiologia da DRC foi hipertensão, que acompanhada de diabetes contabilizaram em conjunto por 90% das causas de doença renal. Os fatores dominantes foram sexo masculino, com 60% dos casos, e idade abaixo de 65 anos, com 78%, como mostra a Tabela 1.
Tabela 1 Características básicas (n=228)
Características | Percentual | |
---|---|---|
Sexo | Masculino | 60% |
Feminino | 40% | |
Idade | < 65 anos | 78% |
≥ 65 anos | 22% | |
Etiologia | Hipertensão | 50% |
Diabetes | 40% | |
Lúpus | 2,2% | |
Mieloma múltiplo | 0,9% | |
Doença renal policística | 1,7% | |
Desconhecida | 2,6% | |
Glomerulonefrite crônica | 0,9% | |
Outras | 1,7% | |
Diabetes | Sim | 50,9% |
Não | 49,1% | |
Obesidade | Sim | 6,1% |
Não | 93,9% | |
Catéter venoso central | Sim | 15,8% |
Não | 84,2% | |
FAV prévia | Sim | 36% |
Não | 64% |
Os dados são apresentados como frequências absolutas.
Houve um total de 53 falhas, correspondendo a 23,2% da amostra total. Além disso, 34% das falhas ocorreram no grupo ultrassonográfico, em comparação aos 66% no grupo clínico, como mostra a Tabela 2.
Tabela 2 Falhas de FAV (n=228)
Falhas | Percentual | P-valor |
---|---|---|
Grupo Clínico | 66% | |
Grupo Doppler | 34% | |
Precoce (antes da maturação) | 75,5% | 0,02 |
Tardia (após a maturação) | 24,5% |
P-valor do teste do qui-quadrado.
Considerando as falhas e os fatores de risco associados à amostra geral (com e sem Doppler), foi identificada associação significativa apenas entre ter catéter venoso central no mesmo lado da fístula arteriovenosa (P = 0,04; razão de chances: 1,24) e obesidade (P = 0,05; razão de chances: 1,36), conforme mostra a Tabela 3. No entanto, o grupo Doppler não revelou associação significativa com nenhum fator de risco para falha, conforme apresentado na Tabela 4.
Tabela 3 Correlação entre falha e fatores de risco (n=228).
Falha | Razão de chances [IC 95%] | ||||
---|---|---|---|---|---|
Não | Sim | P-valor* | |||
Sexo | Feminino | 68 (73,9%) | 24 (26,1%) | 0,40 | - |
Masculino | 107 (78,7%) | 29 (21,3%) | - | ||
Idade | < 65 anos | 136 (76,4%) | 42 (23,6%) | 0,81 | - |
≥ 65 anos | 39 (78,0%) | 11 (22,0%) | - | ||
Diabetes | Não | 86 (76,8%) | 26 (23,2%) | 0,99 | - |
Sim | 89 (76,7%) | 27 (23,3%) | - | ||
Obesidade | Não | 167 (78,0%) | 47 (22,0%) | 0,05 | Ref |
Sim | 8 (57,1%) | 6 (42,9%) | 1,36 [1,01 – 2,16] | ||
Catéter central | Não | 152 (79,2%) | 40 (20,8%) | 0,04 | Ref |
Sim | 23 (63,9%) | 13 (36,1%) | 1,24 [1,02 – 1,60] | ||
FAV | Não | 110 (75,3%) | 36 (24,7%) | 0,50 | - |
Prévia | Sim | 65 (79,3%) | 17 (20,7%) | - |
*P-valor do teste do qui-quadrado.
Tabela 4 Grupo ultrassonografia: correlação entre falha e fatores de risco (n=114).
Falha | P-valor | |||
---|---|---|---|---|
Não | Sim | |||
Sexo | Feminino | 42 (85,7%) | 7 (14,3%) | 0,70* |
Masculino | 54 (83,1%) | 11 (16,9%) | ||
Idade | < 65 anos | 74 (82,2%) | 16 (17,8%) | 0,36** |
≥ 65 anos | 22 (91,7%) | 2 (8,3%) | ||
Diabetes | Não | 45 (81,8%) | 10 (18,2%) | 0,50* |
Sim | 51 (86,4%) | 8 (13,6%) | ||
Obesidade | Não | 91 (85,0%) | 16 (15,0%) | 0,31** |
Sim | 5 (71,4%) | 2 (28,6%) | ||
Catéter central | Não | 82 (83,7%) | 16 (16,3%) | 0,70** |
Sim | 14 (87,5%) | 2 (12,5%) | ||
FAV prévia | Não | 63 (79,7%) | 16 (20,3%) | 0,06** |
Sim | 33 (94,3%) | 2 (5,7%) |
*Teste do qui-quadrado.
**Teste de Fisher.
A Tabela 5 mostra os dados do Doppler com os diâmetros e profundidades venosas, bem como os diâmetros arteriais, considerando que os critérios de inclusão venosa foram diâmetro ≥ 2,5 mm, arterial ≥ 2,0 mm e axilar ≥ 4,0 mm. Independentemente da profundidade da veia basílica no braço, ela foi transposta anteriormente em todos os pacientes dos dois grupos.
Tabela 5 Médias e desvio padrão no grupo de mapeamento ultrassonográfico pré-operatório (n=114).
Ultrassonografia Doppler | Média | DP | |
---|---|---|---|
Veia cefálica (n=78) | Diâmetro (cm) | 0,37 | 0,08 |
Profundidade (cm) | 0,19 | 0,09 | |
Veia basílica (n=23) | Diâmetro (cm) | 0,40 | 0,11 |
Profundidade (cm) | 0,64 | 0,31 | |
Veia axilar (n=13) | Diâmetro (cm) | 0,69 | 0,14 |
Artéria radial (n=29) | Diâmetro (cm) | 0,23 | 0,03 |
PVS (cm/seg) | 52,93 | 17,50 | |
Artéria braquial (n=85) | Diâmetro (cm) | 0,39 | 0,09 |
PVS (cm/seg) | 68,00 | 21,27 |
DP: desvio padrão.
Não foi observada correlação significativa entre o número de dias de internação e a taxa de falha nos dois grupos. Não houve diferença no tempo de internação entre o grupo submetido ao Doppler e o grupo clínico, como mostra a Tabela 6.
Tabela 6 Dias de internação por grupo e taxa de falha de pacientes submetidos a cirurgia para confecção de FAV (n=228).
Dias de internação (Média ± Desvio Padrão) | p* | ||
---|---|---|---|
Grupo | Clínico (n=114) | 8,91±13,40 | 0,052 |
Ultrassonografia (n=114) | 10,98±14,34 | ||
Falhas | Sim (n=53) | 9,34±13,58 | 0,29 |
Não (n=175) | 11,94±14,80 |
*teste não-paramétrico de Wilcoxon | teste U de Mann-Whitney.
Em nosso estudo, a hipertensão arterial foi a principal causa de DRC seguida de diabetes. Além disso, foi observada predominância do sexo masculino, o que está de acordo com vários outros estudos.2,11,22-27 Nossa taxa de falha foi um pouco mais baixa do que as relatadas em estudos anteriores.22,28-30
Não encontramos associação estatisticamente significativa entre falhas de fístula e fatores de risco como idade avançada, sexo feminino e diabetes, conforme relatado em alguns estudos.24,31-36 No entanto, em nossa amostra inicial de 228 pacientes houve apenas 53 casos, o que reduziu nossa amostra para análise de associação e possivelmente explica a ausência de associação sugerido pelos estudos citados acima.
Na amostra geral, os pacientes com obesidade apresentaram 1,36 vezes mais chances de apresentar falha do que os não obesos. Indivíduos com catéter central tiveram 1,24 vezes mais chances de apresentar falha do que pacientes sem. No grupo submetido a ultrassonografia Doppler, não houve associação significativa com catéter central ou obesidade, o que sugere que o Doppler proporciona uma redução na ocorrência de falhas nesses pacientes.
Não houve diferença entre o número de dias de internação entre os grupos que apresentaram falhas ou não (P = 0,29). Não houve diferença entre o número de dias de internação entre os grupos clínico e ultrassonográfico (P = 0,052). Isso mostra que o exame físico e a ultrassonografia Doppler conseguiram identificar as veias inviabilizadas por possíveis punções realizadas antes da FAV. Não identificamos dados semelhantes na literatura para comparação.
Concluímos que a redução da taxa de falhas com o uso do Doppler foi estatisticamente significativa na amostra geral. Contudo, estabelecer uma relação entre fatores de risco específicos e falhas só foi possível em relação a dois fatores de risco, obesidade e catéter venoso central no mesmo lado da FAV. Isso mostra o benefício do uso pré-operatório da ultrassonografia Doppler nas FAVs, principalmente para reduzir falhas relacionadas a esses dois fatores de risco. Estudos adicionais com amostras maiores se fazem necessários.