versão impressa ISSN 1809-2950
Fisioter. Pesqui. vol.21 no.1 São Paulo jan./mar. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/1809-2950/278210114
O sistema endócrino influencia o crescimento e o desenvolvimento muscular ao longo da vida e o excesso ou a deficiência hormonal podem afetar a estrutura e a função muscular1. Diversos estudos realizados em animais demonstram que os andrógenos apresentam efeitos positivos sobre o aumento da massa e força muscular através dos Receptores Androgênicos (RA)2 e na determinação da massa corporal magra3.
Dessa forma, os Esteroides Anabólicos Androgênicos (EAA) são utilizados em grandes quantidades por atletas das mais diversas modalidades desportivas, com o intuito de melhorar a massa muscular e o desempenho4. O uso prolongado5 de tal substância muitas vezes leva a consequências negativas à saúde, como alteração na reprodução, na função endócrina hepática e também sobre as características músculo-esqueléticas4.
O decanoato de nandrolona, um derivado da testosterona, está entre os EAA mais consumidos, de acordo com o National Institute on Drug Abuse (NIDA), devido ao seu moderado potencial androgênico associado às boas propriedades anabólicas. A nandrolona sofre a ação da enzima 5 α-redutase e produz um metabólito que tem baixa afinidade pelo receptor, fazendo a própria nandrolona interagir com os receptores para esteroides, produzindo respostas anabólicas relativamente maiores6. Alguns estudos apontam que o decanoato de nandrolona pode modular a regulação do ciclo celular e, assim, alterar a massa muscular, mas os processos intramusculares ainda não estão bem esclarecidos7 , 8.
O músculo esquelético possui a capacidade de responder a diversos estímulos, levando a um conjunto de adaptações metabólicas e morfológicas. Essa excelente capacidade de regeneração muscular é atribuída à presença de células precursoras miogênicas chamadas de Células Satélites (CS) que são afetadas por vários elementos, como estimulação mecânica, envelhecimento e também os fatores endócrinos9.
Sabe-se que as CS, numa situação de lesão, são ativadas e passam a ser denominadas mioblastos. Estes se proliferam, diferenciam e se fundem, gerando miotubos que se unem a uma fibra preexistente ou formam uma nova fibra muscular funcional10 - 12. Para isso, um conjunto complexo de respostas celulares é ativado, resultando em uma regeneração adequada do tecido lesionado e em um músculo bem inervado, vascularizado e com aparelho contrátil íntegro13. Portanto, o processo de reparo muscular já está bem descrito na literatura, mas a sua associação ao uso de anabolizante ainda não está muito clara.
Assim, em virtude da alta incidência de lesões em atletas, é imprescindível o conhecimento dos efeitos e consequências da utilização de anabolizantes durante o processo de reparo, já que seu uso é frequente para a melhora do desempenho esportivo. Dessa forma, este estudo avaliou, in vitro, o efeito do anabolizante Decanoato de Nadrolona (Deca-Durabolin (r)), em diferentes concentrações, sobre a viabilidade de células satélites musculares em processo de diferenciação.
A linhagem celular C2C12 utilizada no presente trabalho é um subclone da linhagem celular de mioblastos C2, células derivadas de CS de camundongos adultos, e apresenta a maioria das características de células musculares normais14 - 16. As células foram cultivadas no Meio Eagle Modificado por Dulbecco (DMEM) (Cultilab, Campinas, SP, Brasil) contendo 10% de Soro Fetal Bovino (SFB) (Cultilab, Campinas, SP, Brasil) e 1% antibiótico solução antimicótica (Cultilab) e mantidas em estufa 37ºC, numa atmosfera úmida contendo 5% de CO2. O monitoramento do crescimento celular foi feito a cada 24 horas e, quando a monocamada celular se tornava subconfluente para a perpetuação da linhagem celular, foi realizado o subcultivo com lavagem tampão PBS1X (NaCl 140 mM; KCl 2,5 mM; Na2HPO4 8 mM; KH2PO 1,4 mM; pH 7,4) e solução de tripsina. As células foram centrifugadas a 1.200 rpm e posteriormente ressuspensas em 1 mL de DMEM. A viabilidade das células foi avaliada por contagem com corante vital azul de Trypan (0,4%) e foram utilizadas nos experimentos as células com viabilidade maior que 95%.
Para indução da diferenciação, as células foram mantidas em DMEM contendo 2% de soro de cavalo17.
A viabilidade (proliferação) celular foi avaliada após um, três e cinco dias da incubação com o decanoato de nandrolona Deca-Durabolin(r) (Organon, Brasil) nas concentrações finais de 5, 10, 25 e 50 µM (Organon, Brasil) ou do veículo da droga (1,5:1 - álcool benzílico/óleo de amendoim), adicionado em diferentes quantidades de acordo com as concentrações utilizadas do anabolizante (veículo 5, 10, 25 e 50 µM, respectivamente). Concomitantemente ao tratamento com o anabolizante, foi adicionado 2% de soro de cavalo (Invitrogen, Brasil) ao meio de cultura para indução de diferenciação das células musculares17.
A metodologia utilizada para avaliação da viabilidade celular se baseia na habilidade da enzima mitocondrial desidrogenase, encontrada somente em células viáveis, em clivar os anéis de tetrazólio do MTT (3-[4,5-dimetiltriazol-2-il]-2,5 difeniltetrazólio)18 , 19, formando cristais azuis-escuros de formazana, os quais são impermeáveis às membranas celulares, ficando então retidos no interior das células viáveis. A posterior lise celular faz com que estes sais de formazana sejam liberados. O número de células viáveis é diretamente proporcional ao nível de cristais de azul de formazana formados.
Foram utilizadas para este ensaio 1x103 células/poço adicionadas a placas de cultura de fundo chato de 96 poços, estéreis (Costar) e incubadas a 37oC e 5% CO2 durante os diferentes períodos de incubação avaliados. Ao término do período de incubação, foi feita a lavagem dos poços com PBS1X (NaCl 140 mM; KCl 2,5 mM; Na2HPO4 8 mM; KH2PO 1,4 mM; pH 7,4), para remoção das células mortas, adicionado o MTT (0,5 µg/mL) (3-(4,5-dimethylthiazol-2-yl)-2,5,-diphenyltetrazolium bromide) (Sigma-Aldrich, St. Louis, MO, USA) e realizada a incubação das células por 4 horas a 37oC e 5%CO2. Em seguida, foi adicionado isopropanol para solubilizar os cristais formados. Por fim, foi realizada a leitura da absorbância a 620 nm com o auxílio de um leitor de placas (Anthos 2020, Anthos Labtec Instruments, Wals, Áustria). Todos os experimentos foram repetidos três vezes, de forma independente, e cada amostra foi analisada em quadruplicata.
As comparações entre os grupos foram feitas utilizando a análise de variância (ANOVA). O teste de Dunnett foi utilizado para determinar diferenças significativas entre os grupos experimentais e o grupo controle. Valores de p≤0,05 foram considerados estatisticamente significantes. Os dados foram analisados por meio do programa GraphPad Prism 4.0 (GraphPad Software, San Diego, CA, EUA).
Os resultados permitiram verificar que não houve diferença significativa na viabilidade e proliferação celular, avaliada pelo método MTT, entre as células musculares tratadas com o anabolizante e as células controle (Figura 1) em todos os períodos avaliados. Os resultados para o veículo foram semelhantes ao controle (dados não mostrados).
Figura 1 Avaliação in vitro da viabilidade (proliferação) celular das células musculares satélites tratadas com o anabolizante decanoato de nandrolona em diferentes concentrações e submetidas à indução do processo de diferenciação
Os resultados também evidenciaram que houve um aumento na viabilidade (proliferação) celular após três e cinco dias, quando comparada ao período de um dia, e que não houve aumento na viabilidade (proliferação) entre os grupos cinco e três dias, confirmando a diferenciação celular nesse período (Figura 1).
Estudos in vivo demonstram que os efeitos do decanoato de nandrolona foram dependentes da musculatura avaliada, tempo de tratamento, dose e associação ou não com exercícios, sendo todos capazes de promover o aumento da massa muscular8 , 20 - 22, alteração do ciclo celular7, densidade mineral óssea23, crescimento ósseo24, sendo que os RA têm grande influência nestes efeitos8 , 25, questionando se há interferência do decanoato de nandrolona na viabilidade (proliferação) das células musculares e reparo muscular.
Em resposta à EAA, há um aumento de cálcio (Ca2+) intracelular que ocorre em uma diversidade de tipos celulares, incluindo osteoblastos, plaquetas, células musculares, miócitos cardíacos e neurônios. Nas células cardíacas, por exemplo, a testosterona promove a hipertrofia cardíaca; já nos neurônios, dependendo da concentração, a testosterona pode causar apoptose neuronal26.
Kamanga-Sollo et al. 27 estudaram a cultura de Células Satélites Bovinas (CSB) tratadas com andrógenos e observaram que o tratamento das culturas de CSB aumentou a expressão de mRNA de IGF-I e a proliferação, estabelecendo que os esteroides têm efeitos anabólicos diretos. Sculthorp et al. 28 investigaram a expressão de IGF-1 e mRNA IGF-1 e verificaram que a testosterona causou um aumento concomitante no IGF-1 mRNA, sustentando o IGF-1 como um mediador central nas vias celulares associadas à hipertrofia muscular, o que mostra uma relação dos androgênios com crescimento e diferenciação muscular. Contudo, nos presentes achados, o decanoato de nandrolona não alterou a proliferação de células musculares em processo de diferenciação.
Diel et al. 1 evidenciaram que os mecanismos fundamentais de diferenciação são modulados pelos andrógenos e que eles estimulam a proliferação de células C2C12, aceleram o processo de diferenciação para miotubos e estimulam a expressão da miostatina em células não diferenciadas e diferenciadas. No entanto, eles utilizaram indução da diferenciação com 3% de soro de cavalo e outro tipo de anabolizante, o dihidrotestosterona (DHT), avaliando a atividade de CK e a proliferação após um, três e 6 dias, o que difere do presente estudo e dificulta a comparação dos resultados.
Nogueira et al. 29 avaliaram o efeito do decanoato de nandrolona sobre osteoblastos após irradiação com laser de baixa potência e evidenciaram uma redução na viabilidade (proliferação) nas concentrações de 10, 25 e 50 µM e aumento na adesão após 60 minutos nas contrações de 5, 10 e 25 µM; entretanto, o efeito combinado dessas terapias e o tipo celular diferentes não permite a comparação direta com os achados deste estudo, mas evidenciam o papel de regulação desse esteroide sobre a proliferação celular.
O anabolizante esteroide decanoato de nandrolona (Deca-Durabolin(r)), nas concentrações utilizadas, não foi capaz de alterar a viabilidade das células musculares durante o processo de diferenciação in vitro. Novos estudos são necessários para o melhor entendimento de outros possíveis efeitos do anabolizante esteroide decanoato de nandrolona sobre essas células como, por exemplo, na regulação de fatores regulatórios miogênicos envolvidos no processo de proliferação e diferenciação. Estes conhecimentos poderão auxiliar no entendimento de como anabolizantes podem influenciar o processo de reparo muscular, especialmente no que se refere a indivíduos que fazem uso desse tipo de substância.