versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol., ahead of print Epub 08-Maio-2020
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0155
A nefrolitíase (NL) é uma doença de alta prevalência em todo o mundo, com taxas que variam entre 7,1% para mulheres e 10,6% para homens na América do Norte1. Dados epidemiológicos de Espanha2, Alemanha3, Japão4 e Itália5 indicaram taxas de incidência de NL de 114-720 por 100.000 indivíduos e taxas de prevalência de 1,7-14,8%. Aparentemente, as taxas estão em ascensão em quase todos os países6,7. Assim como observado em outros países, a prevalência tem se elevado regularmente no Japão4, com baixa incidência na infância e na terceira idade e pico de incidência na quarta a sexta décadas de vida8.
No Brasil, a prevalência pode ser estimada a partir de dados do Sistema Único de Saúde (SUS)9, que oferece serviços de saúde para os cidadãos do país10. O SUS possui um banco de dados longitudinal de internações hospitalares (Sistema de Informação Hospitalar - SIH/SUS) que contem os registros das altas hospitalares realizadas em todas as cidades e regiões do país11. Infelizmente, artigos científicos atuais sobre a frequência de episódios de NL no Brasil são escassos12. Além disso, faltam estudos a respeito das relações entre mudanças no clima e internação.
No geral, foi observada uma persistente predominância do sexo masculino na prevalência e incidência de NL13, embora a proporção entre os sexos masculino e feminino tenha caído nas últimas décadas14. Raça15, hábitos alimentares16,17, genética18, fatores ocupacionais19, localização geográfica20 e condições climáticas21 são considerados fatores de risco para NL. Além das intercorrências clínicas, a NL geralmente está associada a altas taxas de absenteísmo no trabalho, aumento do número de dias de repouso em casa e internação hospitalar prolongada. Os custos dos procedimentos clínicos e cirúrgicos, além do ônus advindo da perda de produtividade no trabalho, são consideráveis12,22.
Alguns autores identificaram maior frequência de NL em locais com temperaturas mais elevadas em associação a menor ingestão de água, resultando em urina mais concentrada e promovendo a nucleação dos cálculos renais20,23. A estação do ano também já foi associada à incidência e prevalência de NL, com os meses mais quentes do ano relacionados a acentuação do desenvolvimento de NL24,25. Vários artigos descrevem uma associação entre a estação do ano e o nível de oxalato na urina26, com elevações significativas na excreção urinária de cristais de oxalato e cálcio27 no verão em comparação com o inverno. Contudo, outros autores não identificaram as mesmas associações28. Não obstante, estudos sobre a variabilidade demográfica e geográfica da incidência de NL revelam taxas mais elevadas de internação em regiões de clima mais quente e taxas mais baixas em regiões mais frias23,29.
O Brasil, um país de proporções continentais, apresenta ampla variação de temperaturas entre suas regiões norte (área tropical) e sul (área subtropical). O objetivo do presente estudo foi avaliar a associação entre clima e número de internações por NL (IN) em cidades brasileiras submetidas a diferentes condições climáticas.
O presente estudo de coorte retrospectiva analisou as internações por nefrolitíase (IN) ocorridas no período de 1º de janeiro de 2010 a 31 de dezembro de 2015. Utilizando o banco de dados de domínio público do Ministério da Saúde disponibilizado pelo Departamento de Informática do SUS (DATASUS) no site do Sistema de Informações Hospitalares Descentralizadas (SIHD), selecionamos o software e os arquivos necessários30. Incluímos cidades com população superior a 300.000 habitantes (hab), selecionadas segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)31, localizadas em regiões de clima tropical e subtropical com registros permanentes no SIHD230.
As cidades selecionadas nas regiões tropicais foram Uberlândia (MG) (latitude [La]: -18,9113; longitude [Lo]: -48,2622 18°54′41″ Sul (S), 48°15'44″ Oeste (O), Ribeirão Preto (SP) (La: -21,1767; Lo: -47,8208 21°10′36″ S, 47°49′15″ O) e São José do Rio Preto (SP) (La: -20,8202; Lo: -49,3797 20°49′13″ S, 49°22′47″ O). Para climas subtropicais, selecionamos as cidades de Porto Alegre (RS) (La: -30.0277; Lo: -51.2287 30°1′40″ S, 51°13′43″ O), Caxias do Sul (RS) (La: -29,1678; Lo: -51,1794 29°10′4″ S, 51°10′46″ W) e Pelotas (RS) (La: -31,776; Lo: -52,3594 31°46′34″ S, 52°21′34″ O). As temperaturas mais baixa (TMB), média (TM) e mais alta (TMA) e a umidade relativa (UR) de cada cidade foram registradas mensalmente em graus Celsius e em porcentagens, respectivamente. A TM foi calculada como a média aritmética de TMB e TMA. Os dados de temperatura e umidade relativa foram obtidos do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET)32. As correlações entre IN e temperatura são mostradas na Figura 1, onde o número total de meses calculados foi indicado pelo produto de seis cidades, 12 meses para cada cidade e seis anos (6 cidades X 12 meses X 6 anos = 432 meses).
Figura 1 Associacoes de IN com temperatura mais baixa (TMB), media (TM) e mais alta (TMA) e umidade do ar (UR).
A IN foi calculada em 100.000 hab/mês, a partir dos registros com os seguintes códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - Décima Revisão (CID-10) versão 201633: N20 - calculose do rim e do ureter; N21 - calculose do trato urinário inferior; N22 - calculose do trato urinário em doenças classificadas em outra parte; e N23 - cólica nefrética não especificada. Analisamos IN por sexo e nove faixas etárias, que variaram de crianças menores de um ano a adultos acima de 65 anos.
Avaliamos a normalidade do conjunto de dados através do teste de Kolmogorov-Smirnov. Todas as variáveis apresentaram distribuição normal. Assim, expressamos os dados como média e desvio padrão. Dois grupos foram comparados com o teste t de Student, enquanto três ou mais grupos foram comparados por análise de variância (ANOVA) e pelo pós-teste de Bonferroni. O coeficiente de Pearson foi calculado para as relações entre duas variáveis contínuas ou ordinais. Regressões lineares univariadas e multivariadas foram utilizadas para quantificar a associação entre IN e dados climáticos. De modo a determinar as interações entre TM, UR e IN, usamos um modelo de regressão linear múltipla, no qual as variáveis do modelo foram previamente testadas e gradualmente somadas à análise global (Stepwise), com IN como variável dependente e TM e UR como variáveis independentes. Valores de p<0,05 (intervalo de confiança de 95% [IC 95%]) foram considerados significativos para todos os cálculos. O software utilizado foi o STATA versão 15 (StataCorp LP, College Station, Texas).
Foram registradas 8.119 internações em cidades tropicais e 4.388 em cidades subtropicais (Tabela 1). A IN totalizou 3.921 (48,2%) indivíduos do sexo masculino e 4.198 (51,8%) do sexo feminino nas cidades tropicais (P = 0,045) e 2.268 (52,1%) homens e 2.120 (47,9%) mulheres (P = 0,058) na região subtropical, com razões entre os sexos masculino e feminino de 0,9 e 1,1, respectivamente. Foram observadas 727 reinternações, correspondendo a 27% das internações, apenas na cidade de Uberlândia, enquanto que em outras cidades não foi possível calcular o número de reinternações por NL no período estudado.
Tabela 1 Número de internações em cidades tropicais e subtropicais por sexo, raça e faixa etária.
Cidades Tropicais | Cidades Subtropicais | P-valor | |
---|---|---|---|
População Total | 1.692.660 | 2.233.680 | |
IN Total | 249,4 ± 27,54 | 84,3 ± 4,36 | <0,0001 |
Sexo | |||
Masculino | 119,7 ± 17,03 | 44,3 ± 2,57 | <0,0001 |
Feminino | 131,3 ± 10,91 | 40,4 ± 2,13 | <0,0001 |
Raça | |||
Branca | 182,2 ± 15,90 | 70,0 ± 2,97 | <0,0001 |
N/P/I | 35,2 ± 8,20 | 7,5 ± 0,97 | <0,0001 |
Asiática | 1,8 ± 0,58 | 0,4 ± 0,33 | <0,0001 |
S/N | 30,4 ± 9,35 | 6,0 ± 1,69 | <0,0001 |
Faixa Etária (anos) | |||
<1 | 0,12 ± 0,21 | 0,0 ± 0,03 | 0,037 |
1 a 4 | 0,53 ± 0,50 | 0,1 ± 0,11 | 0,005 |
5 a 14 | 3,1 ± 1,33 | 1,2 ± 0,50 | <0,0001 |
15 a 24 | 23,9 ± 3,12 | 7,1 ± 0,91 | <0,0001 |
25 a 34 | 48,8 ± 5,17 | 17,6 ± 2,74 | <0,0001 |
35 a 44 | 54,3 ± 8,79 | 18,9 ± 1,84 | <0,0001 |
45 a 54 | 57,0 ± 7,23 | 19,4 ± 2,53 | <0,0001 |
55 a 64 | 33,1 ± 2,49 | 11,2 ± 1,01 | <0,0001 |
≥65 | 27,2 ± 4,06 | 8,6 ± 0,95 | <0,0001 |
IN: internações por nefrolitíase/100.000/mês; N/P/I: Negro, Pardo, Indígena; S/N: sem notificação.
A Figura 1 mostra os coeficientes positivos significativos para as associações entre IN e TMB, TM e TMA. Foi observado coeficiente negativo significativo para a associação entre IN e UR. A Figura 2 mostra a IN acumulada anual e as temperaturas médias anuais de 2010 a 2015 nas cidades tropicais e subtropicais.
Figura 2 Associacao entre temperatura média e IN de 2010 a 2015 nas regiões tropicais e subtropicais (SP: São Paulo; RS: Rio Grande do Sul)
As interações entre TM, UR e IN foram avaliadas por regressão multivariada, com IN como variável dependente e TM e UR como variáveis independentes, conforme a equação 1:
onde:
IN é o número de internações por nefrolitíase por 100.000 habitantes/mês;
TM é a média aritmética de TMB e TMA para cada cidade (mensalmente) e
UR é a umidade relativa mensal em cada cidade.
Com base na equação acima, uma elevação de 1ºC na TM na presença de UR constante resulta em 296 novas internações por 100 milhões de pessoas; se desconsiderarmos a UR nos cálculos, o resultado seria 389 novas internações por 100 milhões de pessoas (Figura 3).
Nosso estudo revelou associações positivas significativas entre IN e TMB, bem como entre TM e TMA, e uma associação negativa significativa entre IN e UR, mostrando que mudança climática pode alterar o número de novas internações e/ou reinternações por NL. A influência do clima na prevalência de NL foi observada nos estudos de Eisner et al.21 e Ross et al.29, que demonstraram maior incidência de cálculos renais no verão do que no inverno. Tais achados são semelhantes aos encontrados em nosso estudo, que demonstrou IN mais alta nas cidades com climas tropicais em relação a cidades com climas subtropicais. As possíveis causas sugeridas pelos autores para o aumento da incidência de NL em pacientes em climas quentes são o aumento dos níveis urinários de cálcio, a supersaturação de oxalato de cálcio e fosfato de cálcio e a diminuição da excreção urinária de sódio21, que independem da UR e da estação do ano. No Brasil, as variações de temperatura não são tão significativas entre as estações, mas há uma variação evidente entre as regiões tropicais e subtropicais (Figura 2). Projetamos cuidadosamente nossa análise multivariada para incluir covariáveis como temperatura e umidade do ar, de forma a determinar as relações entre essas variáveis e IN. Identificamos que temperatura mais alta apresentou associação significativa com aumento da IN. O aumento da umidade do ar também foi associado a queda da IN. Segundo a Equação 1, um aumento na TM na presença de baixa UR seria o pior cenário para pessoas suscetíveis à formação de cálculos renais. Se extrapolarmos esses resultados para a população brasileira, que de acordo com dados do IBGE é composta por aproximadamente 200 milhões de pessoas (31), haverá aproximadamente 592 novas internações por mês, ou 7.104 novas internações por ano, caso ocorra um aumento de 1ºC na TM mensal (Figura 3). A ocorrência a longo prazo de verões de alta temperatura deve ser o foco do desenvolvimento de campanhas públicas para educar a população sobre a possibilidade de cálculos renais e a necessidade de elevar a ingestão de água e trabalhar em ambientes umidificados. Tais medidas poderiam ser justificadas com o argumento de que o aumento nas internações por litíase renal implicaria em custos adicionais que talvez não estejam previstos nos orçamentos anuais.
Ross et al.29 demonstraram que o risco de formação de cálculo renal pode ser avaliado de forma mais precisa quando se considera a combinação entre temperatura e umidade relativa, em vez de se analisar as duas variáveis separadamente. Nossos achados concordam com os do estudo de Ross, pois identificamos que temperatura e UR podem estar associadas simultaneamente a IN, o que foi demonstrado por regressão multivariada (Equação 1), onde TM e UR foram preditores independentes de IN (Figura 3). Em 2007, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas previu um aumento na temperatura média anual do planeta que levará a um aumento no número de dias quentes e noites frias em quase toda a superfície do planeta até o final do século 2134.
A influência do provável aquecimento global sobre a prevalência de NL também foi investigada por Brikowski et al.23. Os autores associaram a ocorrência de aumento repentino da temperatura a elevação do risco de NL. O estudo em questão utilizou modelos lineares e não lineares para prever o risco de NL em regiões dos Estados Unidos. Por outro lado, nosso estudo utilizou apenas modelos lineares multivariados, o que pode gerar algumas discrepâncias entre os resultados.
Dados conflitantes foram relatados em vários estudos sobre a distribuição de gênero da NL. Na Itália, a proporção entre indivíduos do sexo masculino e feminino foi de 1,25, enquanto nos EUA a proporção variou de 0,5 a 1,8 em uma única região35. Em nosso estudo, observamos uma proporção de 0,9 nas cidades com clima tropical e 1,1 nas de clima subtropical. O motivo do elevação do número de casos de nefrolitíase em mulheres não é entendido com precisão, mas há quem especule que a elevação possa ser atribuída a mudanças no estilo de vida e nutrição, resultando em aumento do risco de obesidade - um conhecido fator de risco para nefrolitíase - entre as mulheres14. Entre os adultos, a ocorrência de nefrolitíase por faixa etária segue uma distribuição normal. O primeiro episódio sintomático ocorre tipicamente aos 35 anos de idade nos homens e aos 30 anos nas mulheres8. Esse padrão etário é semelhante ao encontrado no presente estudo.
Nosso estudo apresenta algumas limitações, incluindo o fato de não ter sido possível determinar o número de reinternações por NL em todas as cidades pesquisadas. As reinternações foram analisadas em apenas uma cidade com clima tropical (Uberlândia - MG), e os valores encontrados podem ser diferentes dos de outras cidades. Outra limitação foi o uso de modelos estatísticos lineares em nosso estudo, uma vez que modelos não lineares podem ser mais adequados. O presente estudo é retrospectivo e, portanto, está sujeito às deficiências de um delineamento não prospectivo. Utilizamos temperatura média e umidade média em nossa análise; contudo, não dispúnhamos de conhecimento sobre as variações entre os indivíduos em termos de tempo gasto ao ar livre e da exposição a essas variações no dia-a-dia. Além disso, não analisamos a ingestão de alimentos, elemento que teoricamente poderia afetar a IN associado a modificações climáticas. Concluindo, a IN no Brasil parece depender de variações climáticas de acordo com a região em que o paciente vive.