versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.12 no.2 São Paulo abr./jun. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082014RB2862
O controle glicêmico envolve um complexo mecanismo, compreendendo não somente a secreção e a ação de insulina e glucagon,(1) mas também a regulação da velocidade de esvaziamento gástrico.(2)
Desde 1915,(3) sabe-se que a variabilidade da glicemia após uma dose de glicose oral depende de mudanças na velocidade de esvaziamento gástrico, dados estes confirmados por numerosos estudos subsequentes.(4,5)
A terapia baseada em incretinas (tanto com inibidores de dipeptidil-peptidase-4 como com miméticos do peptídeo 1 semelhante ao glucagon – GLP1, sigla do inglês glucagon-like peptide-1) envolve a secreção de insulina por um mecanismo glicose-dependente. Essa ação, aliada à redução dos níveis de glucagon,(6) confere a essas medicações papel promissor no tratamento do diabetes mellitus tipo 2. Além das ações primariamente metabólicas, essa terapia tem efeitos em outros sistemas, o que vem despertando interesse crescente. Uma dessas ações é a redução da velocidade de esvaziamento gástrico.(7)
Recentemente, a American Diabetes Association e a European Association for the Study of Diabetes(8) enfatizaram a necessidade de individualização da abordagem terapêutica do diabetes, baseando alvos terapêuticos e medicamentos nos aspectos fisiopatológicos particulares de cada caso. Rever essas bases é, então, tarefa essencial.
A velocidade de esvaziamento gástrico é variável e dependente do conteúdo da refeição. Assim, se o líquido ingerido for rico em glicose ou calorias, esse esvaziamento é retardado. Essa inibição determina uma taxa constante de absorção energética, da ordem de 2 a 3kcal/minuto; a infusão de glicose no duodeno inibe o esvaziamento gástrico proporcionalmente à quantidade infundida. Esse sensível mecanismo depende de fatores extrínsecos e intrínsecos.
A via extrínseca, também conhecida como “parada ileal”,(9) depende da retroalimentação neural e hormonal induzida pela interação de nutrientes na luz do intestino delgado, e é caloria-dependente. Quando o alimento atinge o intestino, as células L e K do delgado distal produzem GLP-1 e peptídeo insulinotrópico dependente de glucose (GIP, sigla do inglês glucose-dependent insulinotropic peptide), que agem em diversos tecidos. No hipotálamo, reduzem o apetite e enviam sinais colinérgicos e peptidérgicos ao vago, inibindo a motilidade antral e estimulando a pilórica. Essas ações contribuem para a inibição do esvaziamento gástrico.(10) O GLP1 e o GIP estimulam a secreção insulínica e inibem a de glucagon. Além disso, estimulam a secreção do peptídeo pancreátrico amiloide, a amilina.(11) A insulina tem efeito sacietógeno no sistema nervoso central, enquanto a amilina diminui o esvaziamento gástrico, por ação vagal.(12)
Os mecanismos intrínsecos envolvem efeitos da hiper ou hipoglicemia. A hiperglicemia estimula as secreções de insulina e amilina, reduzindo a de glucagon; ela também diminui a secreção de grelina, o que reduz o esvaziamento gástrico, via sinal parassimpático. Fisiologicamente, a grelina aumenta a velocidade de esvaziamento gástrico.(13) Assim, além do aspecto calórico (extrínseco), as variações da glicemia (intrínseco) podem, por meio de ações hipotalâmicas, aumentar ou diminuir o apetite e ativar o sistema parassimpático, que controla o esvaziamento gástrico. Essa delicada interação neural e hormonal previne a hiperglicemia pós-prandial em indivíduos normais.
Pesquisas têm demonstrado que a hiperglicemia pronunciada (>250mg/dL) afeta a motilidade do esôfago, do estômago, do intestino delgado, do cólon e da vesícula biliar, tanto em pessoas normais(14) como em diabéticos tipo 1(15) e 2.(16) Sugeriu-se inicialmente que a hiperinsulinemia também retarda o esvaziamento gástrico,(17) mas estudos recentes em diabéticos tipo 1(18,19)contestaram essas observações.
Em indivíduos saudáveis, o comportamento da glicemia e das incretinas é altamente dependente da exposição do intestino delgado a carboidratos.(20) Assim, sobrecargas maiores levam a elevações mais intensas dos níveis de GLP1, resultando em redução progressiva da velocidade de esvaziamento gástrico, mecanismo fisiológico este que contribui para a homeostase glicêmica. Esses dados foram replicados em indivíduos com diabetes tipo 2 bem controlado,(21) que receberam infusões intraduodenais de quantidades crescentes de glicose. Nesse importante estudo, demonstrou-se que as concentrações de insulina, GLP1 e GIP aumentavam com a sobrecarga intraduodenal de glicose, tanto nos indivíduos normais quanto nos diabéticos.
A preservação desse mecanismo de controle em pacientes com diabetes abre possibilidades de tratamento com estratégias que influenciam a velocidade de exposição duodenal aos carboidratos.
O estudo DECODE(22) deixou claro que a hiperglicemia pós-prandial é um fator de risco independente para doença macrovascular, sendo seu controle essencial para a redução da mortalidade cardiovascular em diabéticos. As abordagens para o controle da glicemia pós-prandial incluem os análogos insulínicos de ação prandial,(23) a acarbose – cuja ação se dá, em parte, pelo aumento dos níveis de GLP1,(24) o pramlintide(25) – de ação vagal e, mais recentemente, as terapias baseadas no sistema incretina, particularmente GLP1.
O mecanismo de ação do GLP1 no estado de jejum envolve, essencialmente, a secreção de insulina glicose-dependente e a inibição da de glucagon. Estudos recentes demonstram, contudo, que sua ação no estado pós-prandial ocorre por meio da desaceleração do esvaziamento gástrico, levando a uma diminuição da entrada de glicose na circulação.(26) O uso concomitante de agentes pró-cinéticos, como metoclopramida, domperidona, cisaprida e eritromicina, bloqueia o efeito do GLP1 no controle da glicemia pós-prandial,(27) demonstrando a importância de sua influência no esvaziamento gástrico.
A exposição contínua a altas concentrações de GLP1 leva a uma pronunciada perda de sua capacidade de diminuir o esvaziamento gástrico.(28) Isso se deve à indução de taquifilaxia a nível vagal, e acarreta numa atenuação dessa resposta após administração crônica.
Análises farmacocinética e farmacodinâmica de GLP1 demonstram que essa classe de medicamentos compõe-se de moléculas com perfis variáveis de ligação ao receptor do GLP1, o que, provavelmente, explica algumas diferenças de ação entre eles. A interação prolongada com o receptor leva à dessenssibilização do efeito inibitório gástrico, mas não à do efeito anorético – que ocorre por meio de receptores hipotalâmicos do GLP1(29) – e nem à dessenssibilização do efeito sobre a secreção insulínica e o controle glicêmico de jejum. Já as moléculas cuja interação com o receptor é curta apresentam maior efeito sobre a redução do esvaziamento gástrico – e, consequentemente, sobre o controle glicêmico pós-prandial – por não provocarem dessenssibilização.(28)
A comparação entre agentes com ação mais rápida (lixisenatide) e os de mais prolongada (liraglutide)(30) mostra diferenças em seus impactos sobre a regulação dos níveis glicêmicos de jejum e pós-prandial, e pode nortear a individualização terapêutica, segundo as características clínicas e fisiopatológicas de cada paciente.
Estamos caminhando para a terapia do diabetes baseada na individualização das medicações. A escolha do melhor fármaco se baseará no entendimento da fisiopatologia de cada caso e na compreensão do mecanismo de ação das medicações. Análogos de GLP1 com ação prolongada poderão beneficiar pacientes com glicemia de jejum elevada e que precisam perder peso. Análogos de ação rápida serão uma ótima opção para corrigir casos de hiperglicemia pós-prandial.