versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.27 no.6 São Paulo nov./dez. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152014088
A cirurgia de retalho faríngeo tem sido um dos métodos mais utilizados na correção da insuficiência velofaríngea (IVF) residual ao fechamento cirúrgico primário da fissura palatina. A técnica envolve a construção de um retalho miomucoso entre a parede posterior da faringe e o palato mole, que permite, a partir da redução do espaço nasofaríngeo, a adequação do fechamento velofaríngeo. Consequentemente, a fala caracterizada pela hipernasalidade, emissão de ar nasal e fraca pressão intraoral pode ser beneficiada com a cirurgia1 2 3 4 5 6 7 8.
No que se refere ao aspecto respiratório, o retalho faríngeo pode estar associado, em alguns casos, à ocorrência de obstrução das vias aéreas superiores, ocasionando sintomas deletérios, tais como a apneia obstrutiva do sono, a respiração oral e a hiponasalidade9 10 11, decorrentes de uma sobrecorreção da disfunção velofaríngea3. Ao verificar os efeitos a longo prazo do retalho faríngeo, um estudo observou, por meio de medidas aerodinâmicas, uma diminuição das dimensões nasofaríngeas11. Em estudo anterior do mesmo grupo de pesquisadores, a alta incidência de hiponasalidade na fala, associada às queixas respiratórias após a cirurgia de retalho faríngeo, já havia sido apontada3. Pesquisas internacionais também verificaram sintomas de obstrução nasal e hiponasalidade após a cirurgia de retalho faríngeo7 10. Um estudo retrospectivo também comparou os resultados de fala após o retalho faríngeo e observou que a avaliação perceptivo-auditiva da fala detectou hiponasalidade em 22% da amostra estudada, após a cirurgia, além dos sintomas de apneia obstrutiva do sono12.
Considerando a hipótese de uma sobrecorreção da IVF pelo retalho faríngeo, causando obstrução das vias aéreas superiores, o estudo propôs analisar o impacto desta cirurgia na produção dos sons nasais da fala de indivíduos com fissura labiopalatina, utilizando as avaliações perceptiva e nasométrica.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (Ofício nº 220/2005) e realizado após a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Participaram do estudo 159 indivíduos com fissura de palato associada ou não à de lábio, já submetidos às cirurgias primárias, de ambos os sexos e com idades entre 6 e 57 anos. Todos os participantes apresentavam IVF residual e indicação cirúrgica para retalho faríngeo. Não foram incluídos indivíduos com incapacidade física e/ou mental, problemas neurológicos óbvios, congestão nasal ao exame, fístulas residuais extensas e que haviam sido submetidos a cirurgias nasais e ortognática entre o período dos exames. Os indivíduos foram submetidos à avaliação perceptiva e nasométrica da fala dois dias, em média, antes da cirurgia e 14 meses, aproximadamente, após a cirurgia.
A avaliação perceptivo-auditiva da hiponasalidade foi realizada por um avaliador experiente, utilizando amostras de fala espontânea e repetição de vocábulos e sentenças com predomínio de sons nasais, utilizados de rotina no serviço13. A hiponasalidade foi classificada em ausente ou presente.
A nasalância (correlato acústico da nasalidade) foi determinada empregando-se um nasômetro, modelo 6200-3 IBM (versão 30-02-3.22)14, durante a leitura de um conjunto de cinco sentenças contendo predominantemente sons nasais para identificar hiponasalidade: "domingo tem neblina", "o passarinho comeu a minhoca", "Miriam lambeu o limão", "o menino era bonzinho" e "Flavinho chamou João"15. Os indivíduos incapazes de ler foram solicitados a repetir as sentenças após o modelo do examinador. Para fins de análise, foi considerado como limite inferior de normalidade o escore de 43%, ou seja, valores abaixo deste foram considerados indicativos de hiponasalidade16.
A comparação da hiponasalidade entre os períodos pré e pós-cirúrgico foi verificada por meio do teste t pareado e a da nasalidade pelo teste de Wilcoxon17, adotando-se o nível de significância de 5%. Para a concordância entre os métodos de avaliação utilizou-se a correlação de Spearman18. A comparação entre os valores de nasalância e ausência e presença de hiponasalidade perceptiva foi realizada segundo o critério de Tukey19.
Previamente à cirurgia de retalho faríngeo, a avaliação perceptiva verificou que nenhum paciente apresentava hiponasalidade na fala. Confirmando os achados perceptivos, a nasometria observou que todos (100%) os indivíduos mostravam valores de nasalância normais, acima de 43%, na produção de sons nasais. Após a cirurgia de retalho faríngeo, a avaliação perceptiva detectou hiponasalidade na fala de 14% (22/159) dos indivíduos, enquanto que a nasométrica verificou escores de nasalância abaixo do normal, sugestivos de hiponasalidade, em 25% (40/159) dos indivíduos.
Os valores médios ± desvio padrão (DP) da nasalância antes e após a cirurgia foram de 59±8% e 50±10%, respectivamente, com diferença entre os mesmos (p<0,001).
Para os indivíduos com presença de hiponasalidade perceptiva após a cirurgia, o escore de nasalância médio±DP foi de 44±9%. Já para aqueles com ausência de hiponasalidade, a média±DP da nasalância aumentou para 51±10%, havendo diferença (p=0,002) entre os dois valores referentes à presença e ausência do sintoma perceptivo (Figura 1).
Os traços horizontais representam o valor mediano da nasometria pós-cirúrgica, o primeiro e o terceiro quartis e os valores máximo e mínimo, desconsiderando os valores discrepantes, segundo o critério de Tukey(19)
Figura 1: Comparação entre os valores de nasalância (%) após a cirurgia de retalho faríngeo (NP PÓS) observada nos indivíduos com ausência e presença de hiponasalidade (HIPO PÓS) de acordo com a avaliação perceptivo-auditiva.
Pode-se observar ainda uma importante correlação (p=0,001) entre a avaliação perceptivo-auditiva e a nasométrica da fala, ao se comparar os resultados das duas modalidades de avaliação.
O retalho faríngeo é uma técnica cirúrgica consagrada na literatura para correção da IVF em indivíduos com fissura palatina, em função de sua efetividade1 2 3 4 5 6 7 8 20. Entretanto, estudos também demonstraram que o retalho faríngeo pode oferecer riscos às vias aéreas superiores pela própria natureza do procedimento, que cria uma obstrução mecânica à passagem do fluxo aéreo, reduzindo, assim, o espaço aéreo. A exemplo disto, um estudo realizado no Laboratório de Fisiologia do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo comprovou que o retalho faríngeo diminui as dimensões da nasofaringe, agravando as queixas respiratórias como respiração oral, ronco e sensação de obstrução respiratória no sono em 36% dos indivíduos submetidos ao procedimento cirúrgico11.
Considerando que a avaliação perceptivo-auditiva da nasalidade constitui um importante método de julgamento da fala, pelo fato de fornecer características da produção dos fones e informações sobre a função velofaríngea21, mas que está sujeita a erros devido a sua subjetividade, optou-se, no presente estudo, pela sua utilização combinada à avaliação instrumental.
Dentre os métodos objetivos para se avaliar os resultados dos procedimentos empregados para a correção da IVF está a nasometria, aplicada para quantificar os julgamentos perceptivos de hipernasalidade e hiponasalidade22 23 24 e complementar o diagnóstico obtido pela avaliação da fala25 26. Esta técnica permite estimar a função velofaríngea indiretamente pela medida da nasalância, que corresponde à quantidade de energia acústica na cavidade nasal durante a fala. A aferição da nasalância deve ser realizada durante a produção das amostras de fala padronizadas com fones essencialmente orais ao diagnóstico da hipernasalidade, ou predominantemente nasais ao diagnóstico da hiponasalidade27, sendo este último o procedimento utilizado no presente estudo.
Desse modo, observou-se ressonância hiponasal após a cirurgia de retalho faríngeo em 14% dos indivíduos avaliados no presente estudo. Proporção um pouco maior foi notada em outro trabalho, que avaliou o efeito da cirurgia de retalho faríngeo na fala e a incidência de hiponasalidade de 20 indivíduos, utilizando a mesma metodologia, encontrando seis (30%) participantes com hiponasalidade após a cirurgia, associada a queixas respiratórias. Os autores apontaram como causa uma possível sobrecorreção da insuficiência velofaríngea3.
Há que se considerar que no período pós-operatório imediato ocorre o edema cirúrgico, que pode provocar obstrução respiratória momentânea e sintomas como a ressonância hiponasal, os quais, de modo geral, desaparecem nas primeiras duas a seis semanas depois da cirurgia28. No presente estudo, os indivíduos foram avaliados, em média, 14 meses após a realização da cirurgia e ainda apresentavam hiponasalidade, permitindo concluir que se tratava de um sintoma permanente após a cirurgia, dado o longo prazo.
Vários estudos avaliaram os efeitos, a longo prazo, do retalho faríngeo no que se refere às queixas respiratórias e à obstrução nasal. Um deles mostrou que a obstrução nasal resultante do retalho faríngeo pode causar mudanças no modo respiratório e na fala, como o aparecimento da hiponasalidade10. Em outro estudo, as autoras verificaram o aparecimento de queixas respiratórias após a cirurgia de retalho faríngeo em 36% dos casos estudados, aproximadamente um ano após a cirurgia11.
De acordo com a experiência clínica, observa-se que uma alteração da ressonância da fala com a presença de hiponasalidade pode ser um fator indicativo de obstrução respiratória, devendo ser investigada. A literatura mostra que o aparecimento de queixas respiratórias como consequência da obstrução das vias aéreas é a principal causa para a indicação de revisão cirúrgica do retalho faríngeo, sendo muitas vezes necessária a ressecção do retalho faríngeo3 11.
Os achados perceptivos do presente estudo identificaram 14% dos indivíduos com resultados de hiponasalidade após a cirurgia de retalho faríngeo, enquanto que o método instrumental identificou 20%. Esta diferença pode ser explicada pela subjetividade do método perceptivo que se contrapõe à maior precisão do objetivo. A interferência de outras variáveis relativas ao padrão de fala como entonação, velocidade, pitch , loudness , tipo articulatório e até mesmo a possibilidade de uma ressonância mista (hipernasalidade e hiponasalidade na mesma emissão) podem confundir o avaliador na determinação de uma característica específica como a hiponasalidade. Portanto, o uso combinado dos métodos torna-se fundamental, mesmo quando a avaliação perceptiva é realizada por profissionais experientes.
Esta proporção de indivíduos com hiponasalidade deve ser acompanhada por meio de avaliações periódicas quanto às queixas e sintomas respiratórios, visto que as queixas respiratórias podem refletir uma condição de apneia obstrutiva do sono, devendo ser investigada, inclusive utilizando medidas objetivas como a polissonografia11.
Ao se comparar os valores de nasalância obtidos no presente estudo àqueles de normalidade, observa-se que, mesmo após a cirurgia, o valor médio dos 159 indivíduos manteve-se acima de 43%, considerado como limite inferior de normalidade. Já para os indivíduos detectados perceptivamente com hiponasalidade pós-operatória, este valor médio foi reduzido para 44% (variação de 50 e 44%), muito próximo ao limite de normalidade. Tal resultado fala a favor, mais uma vez, do uso do método instrumental como uma confirmação da percepção do ouvinte.
Apesar da existência de alta correlação entre os métodos de avaliação para identificação da hiponasalidade, a nasometria mostrou-se mais sensível na identificação deste sintoma, reforçando a importância de sua utilização como um instrumento na detecção de uma possível obstrução respiratória por meio da fala, especialmente após a cirurgia de retalho faríngeo, antes da indicação de exames mais invasivos. Os fonoaudiólogos devem estar atentos a este sintoma de fala, mesmo que não seja perceptível ao paciente, e os indivíduos devem ser acompanhados de forma criteriosa, já que a alteração de ressonância pode sugerir obstruções respiratórias mais graves.
A cirurgia de retalho faríngeo influenciou na produção dos sons nasais, causando hiponasalidade na fala de uma ampla parcela dos indivíduos. A presença deste sintoma de fala pode ser ainda um indicador de obstrução das vias aéreas superiores, provocada pelo retalho faríngeo, que deve ser investigada de forma objetiva e criteriosa no pós-operatório.