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Inquietudes, da minha parte

Inquietudes, da minha parte

Autores:

Emerson Elias Merhy

ARTIGO ORIGINAL

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762

Interface (Botucatu) vol.22 supl.2 Botucatu 2018

http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622018.0481

Ricardo é um pensador e um autor que tenho, para mim, como alguém que sempre me surpreende com suas ofertas de pensamento. Considero-o um intercessor dos mais criativos no campo da Saúde Coletiva, em especial quando caminha na interface Saúde e Educação, mas também quando ousa não respeitar territórios definidos de saberes e práticas, quando vaza dos campos de práticas, quando opera em linhas de fuga e devir. Diria que, por ser um dos meus intercessores, sempre me leva a ter que produzir pensamento, a criar novas possibilidades nas minhas marcas, no meu pensamento-como-imagem, funcionando como um dispositivo a agenciar para um devir pensamento-sem-imagens. Vou tentar trazer para esse meu texto algumas das inquietudes que o seu trabalho acabou me provocando, sem nenhuma pretensão de esgotá-las. Por isso, destacarei só algumas que permitam construirmos uma pauta para conversa, acreditando que não se esgotará aqui, mas terá continuidade em modos bem menos formais que o da escrita em réplicas e tréplicas.

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Uma, que de modo imediato chamou minha atenção, foi sobre a criação da interprofissionalidade como uma agenda para uma discussão sobre a construção de um Sistema Único de Saúde (SUS) mais efetivo, como se os vários interessados nisso tivessem problematizado e afirmado que agora temos que enfrentar essa problemática para podermos avançar na sua implementação. Vejo que essa agenda tem sido protagonizada por várias forças do campo da Saúde, em especial, por meio de articulações que passam por fora dos arranjos que temos tido no nível nacional, para enfrentar as questões que têm dificultado a construção do SUS, como efetivamente se imagina, segundo os princípios constitucionais que o instituem e as forças internas contrárias a sua existência real.

As agências internacionais, como a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e a Organização Mundial de Saúde (OMS), há muito procuram interferir nas agendas nacionais com questões que nascem em outros lugares e que carregam vários outros tipos de interesses. Não é de hoje que assistimos isso. Vejo algo parecido nessa questão da interprofissionalidade: uma agenda inventada por forças do campo da Saúde, com peso importante dos componentes internacionais, que procuram tratar desse tema como se fosse algo que foi gerado pela natureza própria dos problemas, que temos vivido no campo da saúde e do SUS, no Brasil de hoje. Porém, isso não é estranho na nossa história, o que me leva a ver em outros momentos algo semelhante sendo criado e que se constitui como estratégia de governar nossos agires no contexto brasileiro, procurando buscar em nossos processos institucionais a criação de uma agenda que nos desloque de problemas gerados pelos nossos próprios processos de construção do SUS e que são em geral bem distintos daqueles constituídos em alguns outros países. Isto é, há invenção de problemas no campo da Saúde para a produção de agendas governamentais que, de fato, não nos pertencem, não somos os seus protagonistas; ao contrário, constituímos outro conjunto de problemas bem peculiares para a construção do SUS, sendo que muitos deles não têm equivalente fora de nosso processo social e político específico.

Várias vezes vivemos formulações que eram oferecidas como fundamentais para nossos processos político-institucionais que, inclusive, viraram moda e, depois, se esgotaram em suas impossibilidades por não terem sido boas respostas aos problemas que construíamos na busca da efetivação de novos modos de se produzir o cuidado em saúde, no Brasil, tendo como eixo central que qualquer brasileiro tem direito à saúde e cabe ao Estado realizá-lo. Aqui, em um país que estava remando contra a maré neoliberal, até então. Em épocas, até anteriores, podemos identificar situações parecidas, pois foi assim contra a fragmentação das práticas de cuidado em saúde, a partir da excessiva especialização que as profissões seguiram, e foi assim também com a noção de que a prática curativa em si não abarcava todo campo possível do cuidado em saúde, e que deveríamos apostar na institucionalização da Medicina preventiva, baseada na limitada visão da “História Natural da Doença” e nos vários níveis de prevenção.

Desde Alma Ata, vimos crescer apostas na Atenção Primária em Saúde, como se de maneira quase exclusiva aí houvesse uma solução definitiva para os problemas no modo de organizar as práticas de saúde e de enquadrá-las como ações efetivas e impactantes nas situações de saúde. Agora, nesse momento, outras modas vêm procurando se instalar, que, inclusive, vão virando jargão no linguajar do próprio campo da Saúde Coletiva, indicando, hoje, que falar em inovação e interprofissionalidade é estar com o casco afiado para achar a solução de alguns de nossos reais problemas, na construção e implementação de nossas apostas na saúde. Do mesmo modo, há alguns anos vem também se batendo na tecla, como moda, da construção da Medicina de Família e de seus correlatos, como estratégia central para mudar os modos pouco efetivos de se cuidar em saúde, até então praticados.

É isso: parece que se investirmos nesses novos campos de ação, abriremos para a criação de soluções que as outras apostas não permitiram ou, no mínimo, contribuir para acharmos soluções para a baixa potência das anteriores. Vejo que a experiência brasileira vem sendo bem mais criativa quanto àquilo que as agendas internacionais vêm criando para a produção de modos de agir no campo da Saúde. As ofertas que temos recebido são carregadas por paradigmas que, por aqui, já foram bem interrogados e analisados. Diria até que superado no campo de pensamentos bem mais abrangentes, como os inventados no campo da Saúde Coletiva brasileira, que a muitos anos, de modo criativo e inédito, vem produzindo novas visões e teorias para o campo da Saúde, diante do desafio que tinha como parte fundamental o movimento gerador da luta pela Reforma Sanitária brasileira.

O texto do Ricardo em relação a essa conversa passa batido, não contextualiza a construção de oferta da interprofissionalidade e as várias forças que possam estar atravessando esse processo. Gostaria de ver na sua elaboração uma conversa sobre a criação de modismos, que são importados.

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Outro instigamento passa pelo fato de que o seu caminho no texto não valora um diálogo suficiente com as criações que por aqui já se fizeram sobre algumas questões centrais que aborda e procura contribuir. Senti falta, não por minha relação de autoria, mas pelo campo de problematização, de uma conversa mais aberta com a temática do trabalho vivo em ato e as invenções e criações nos encontros-acontecimentos, que povoam o mundo do cuidado em saúde.

Vou além sobre essas questões, pois vejo que apostar no deslocamento do próprio campo instituído, como modo de agir na saúde, é poder trazer para a cena a imanência que há no campo da micropolítica do trabalho vivo em ato pelo operar nos territórios tecnológicos, dentro de uma inscrição, que é a das tecnologias leves relacionais, que carregam em sua constitutividade elementos que podem se abrir em fuga do próprio campo da saúde e de suas amarrações tecnológicas. Ou seja, há nisso a necessidade de se conversar com os agires tecnológicos que se inscrevem como devires não tecnológicos na produção dos modos de viver, nas inventividades e nas criações de novos sentidos inclusive para o sofrimento, no chamado “ponto gris”, descrito em seu texto. Não percebo, no apelo ao raciocínio sobre o artista, algo que contribui com isso, pois o fazer em saúde cria um campo de trabalho que tem várias características distintas, apesar de algumas semelhanças na força instituinte do encontro necessário para se produzir o cuidado.

Fiquei muito na dúvida sobre uma possível construção de encharcamento do agir em saúde de uma maneira tão direta que o interprofissional torna-se “ponto gris”, pois, para mim, isso pressupõe poder estar desamarrado das forças de contextualização que permitam dar como substantivo o agir como sendo da saúde, ato impossível a partir de uma posição que não fosse na imanência da constituição do próprio agir e que não se inscreve na construção das profissões como máquinas de Estado, o que efetivamente são. Pareceu-me na sua aposta que se pode invadir de fora esse território instituído das profissões, como força modificadora, por uma certa imposição de exercício soberano sobre esse campo do fazer - o profissional - quando considero que essencialmente essa possibilidade se dá no agir micropolítico instalado no mundo do cuidado, lugar que as profissões procuram tomar como de seu domínio, na intenção de matar a força clandestina do trabalho vivo em ato, nos encontros, construídos antes de tudo por trabalhadores e não por artistas, esses sim desamarrados de certas maquinarias que no caso do agir em saúde é uma impossibilidade. Vir por fora não cria.

O trabalhador de saúde, como profissional, antes de tudo não é um artista tipo Paul Klee; até pode ser no sentido de que todos somos artistas por estarmos inseridos na produção das nossas próprias vidas como obra de arte, diria Foucault, mas é só nessa dimensão. Diferentemente do artista Klee, o trabalhador de saúde, como profissional, é um instituído que pode, a partir de si, criar no encontro com os outros novos territórios de existência que não sejam inclusive mais do campo da saúde, mas que não consegue, ao preservar esse campo como imperativo para si, criar-se como se não pertencesse a esse lugar, inclusive o da profissão, que tem forças muito bem definidas para a sua constitutividade como campo de saberes e práticas e máquina de Estado.

Causou-me confusão a aposta do Ricardo, daí essa inquietude, pois quando procura passar uma certa noção de que os movimentos de modificações, para inventar algo novo, estão mais no plano de certas individualidades do que no campo dos agenciamentos coletivos de enunciação e da produção do desejo. Campo de dispositivos que não são do mundo da razão, nem instrumentais a operarem no mundo de certos quereres, como algo do tipo que a tomada de consciência de alguém, a partir de uma produção cognitiva, possa efetivamente instituir algo bem desterritorializante sobre o seu próprio fazer, já demarcado. Só a presença do outro1, nas intensividades micropolíticas aí inscritas, pode abrir linha de fuga no já instituído como um campo bem definido do fazer em saúde. Posso não ter entendido a formulação do autor sobre isso, mas vejo uma importância muito relevante na sua proposta sobre a categoria do indivíduo e suas vontades de fazer diferente. Gostaria de saber mais sobre isso.

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Apesar dessas questões, fica para mim a força de certas passagens, mesmo que ainda faça aliança com a consciência, como: “Esse é um lugar precípuo à educação permanente em saúde por conexão com o andar do trabalho e pela não segregação entre espaço da formação e espaço do trabalho. Todavia, a baixa familiaridade com esta potência torna difícil sua apropriação no cotidiano das práticas”.

“A forma é fim, morte. A formação é vida”. A formação é movimento, ação. Diz o artista para “não pensar na forma, mas na formação: interessam mais as forças formadoras do que as formas finais”. Essa é a condição ética da educação permanente em saúde e proponho que para a educação interprofissional.

REFERÊNCIAS

1. Foucault M. A hermenêutica do sujeito. 2a. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2006.