versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.10 Rio de Janeiro out. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320172210.02462017
A segurança alimentar e nutricional (SAN) é “a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis”1. Em nível domiciliar a segurança alimentar (SA) está relacionada às condições de acesso aos alimentos e estando diretamente relacionada com a renda familiar, escolaridade, acesso a outras necessidades básicas e condições de vida2,3. A Insegurança Alimentar (IA) tem consequências para a saúde, estado nutricional e o bem-estar, que podem expressar-se em consequências físicas, biológicas e psicológicas4. No Brasil, no ano de 2013, havia 22,6% dos domicílios brasileiros vivendo em IA, sendo que esta prevalência historicamente é maior nas regiões Norte e Nordeste do país. Na Paraíba, neste mesmo ano, 36,5% das famílias estavam nesta situação3.
A avaliação da situação de segurança e insegurança alimentar tem sido feita utilizando-se a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), que foi adaptada e validada à realidade brasileira no ano de 20035-7. A partir das respostas aos 14 itens da escala, cada domicílio é classificado em 4 grupos: Segurança Alimentar, Insegurança alimentar leve, Insegurança alimentar moderada e Insegurança alimentar grave. A EBIA tem sido utilizada para avaliar a prevalência de SAN e dos diferentes níveis de IA no Brasil, assim como identificar grupos vulneráveis que necessitem de políticas sociais específicas3.
Pessoas vivendo com HIV/Aids (PVHA) se configuram em um grupo específico e vulnerável que se encontra em tratamento permanente, servindo-se de uma terapêutica complexa e de alto custo. No Brasil, as Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos referem-se à importância da alimentação saudável como forma de fornecer os nutrientes necessários ao funcionamento do organismo, preservar o sistema imunológico, melhorar a tolerância aos antirretrovirais, favorecendo sua absorção e prevenindo os efeitos colaterais, além de ajudar a promover a saúde e melhorar o desempenho físico e mental8.
Estudos realizados no Canadá mostraram que entre as pessoas com acesso à terapia antirretroviral (TARV) na Columbia Britânica, a prevalência de IA chegava a 48%, sendo que um pouco menos da metade destes apresentavam relato de fome. Estes indivíduos eram, em sua maioria, mulheres, aborígenes, pessoas que viviam com crianças, com menor nível educacional, com história de uso de drogas e álcool e moradia instável9. Posteriormente, um estudo de acompanhamento, também realizado nesta localidade observou que a situação de IA havia contribuído com a evolução clínica insatisfatória destes indivíduos – a IA foi associada com uma maior mortalidade e piores desfechos clínicos durante o acompanhamento da amostra10,11.
Na Paraíba as PVHA são acompanhadas no Complexo Hospitalar de Doenças Infecto-Contagiosas Clementino Fraga (CHCF) em João Pessoa (PB), serviço de referência, que atende a maioria dos pacientes portadores do vírus HIV do estado. Considerando que a IA pode atingir altas prevalências em grupos populacionais com piores condições de vida3 e que as PVHA são reconhecidamente vulneráveis, este estudo se dedicou a mensurar a prevalência de IA e sua associação com os fatores sociodemográficos e de saúde nesta população. Embora a EBIA seja um instrumento validado para a população brasileira em geral, a PVHA compõem grupo específico, portador de uma doença grave, desta forma faz-se necessário avaliar a validade interna e o comportamento das respostas à EBIA pelas pessoas deste grupo, uma vez que a preocupação e os cuidados com a doença podem influenciar outras, como o acesso aos alimentos, dimensão da IA avaliada pela EBIA.
Foi realizado um estudo seccional envolvendo PVHA em acompanhamento no Complexo Hospitalar de Doenças Infecto-Contagiosas Clementino Fraga em João Pessoa – PB. Foram selecionadas por conveniência todas as pessoas que compareceram ao serviço durante os períodos de 25 de março até 27 de maio e de 2 de setembro até 23 de dezembro de 2015. Estes meses de coleta de dados foram escolhidos ao acaso e são independentes de qualquer planejamento do serviço, sendo, em ambos os casos, períodos de atividades de rotina do Hospital. Utilizando esta estratégia foram recrutadas 796 PVHA, sendo 399 provenientes do primeiro período e 397 do segundo.
Todos os pacientes foram submetidos a uma entrevista face a face, realizada por uma equipe de pesquisadores previamente treinados. Os critérios de inclusão foram ter idade igual ou superior a 18 anos, ter diagnóstico de HIV/Aids superior a seis meses, fazer uso de TARV, não apresentar distúrbios neurológicos ou psiquiátricos e não estar gestante, para aquelas do sexo feminino. Todos os participantes aceitaram participar da pesquisa e assinaram previamente um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
As perguntas feitas aos entrevistados, sempre que possível, foram feitas de forma aberta e depois categorizadas para realizar as análises de associação com a variável dependente IA. Utilizaram-se as seguintes categorias para as variáveis estudadas: a) Sexo: feminino ou masculino; b) idade em anos completos: número absoluto, como também categorizado até a mediana e maior ou igual à mediana; c) ocupação: com ocupação/ativo (empregado, autônomo, estudantes), sem ocupação (desempregado, do lar, aposentado ou pensionista), ou informação não disponível; d) situação conjugal: convive com companheiro, não convive com companheiro; e) escolaridade: até ensino fundamental incompleto, ensino fundamental completo ou mais; f) renda familiar: soma total de todos os rendimentos da família; g) número de moradores no domicílio: valor absoluto, bem como categorizado em até 3 moradores, ou 4 ou mais moradores no domicílio, h) renda per capita (obtida pela razão da renda familiar pelo número de moradores) em valor absoluto e categorizada até ½ Salário Mínimo (SM) ou maior que ½ SM.
Foi feita a aferição do peso e altura em 479 indivíduos, utilizando balança eletrônica com capacidade para até 150 kg e precisão de 0,1kg. A altura foi aferida com o auxílio de uma fita métrica inelástica fixa na parede, seguindo as recomendações do Ministério da Saúde12. O restante da amostra teve seu peso e altura autorreferidos e posteriormente corrigidos por uma equação gerada pelos valores referidos e aferidos de 20% da amostra com a finalidade de se obter maior precisão das medidas e diminuir o viés devido a dois métodos distintos de coleta de dados, parte aferida e outra referida13. O Índice de Massa Corporal (IMC) foi calculado dividindo-se o peso, em kg, pela altura, em metros, ao quadrado. Os valores obtidos foram categorizados em baixo peso, peso normal, sobrepeso ou obesidade14.
O tempo de doença foi considerado a diferença entre a data do diagnóstico e a data da entrevista, assim como o tempo de uso da TARV foi a diferença da data de início do uso registrada no prontuário e a data da entrevista. Estas medidas de tempo foram categorizadas em tercis.
A EBIA é uma escala com 14 itens para famílias compostas por adultos e pessoas menores de 18 anos e com oito itens para famílias compostas exclusivamente por adultos. Todas as respostas são dicotômicas e avaliam desde a preocupação com a falta de alimentos, a redução da qualidade da alimentação até a falta de comida para a família. Cada resposta afirmativa soma um ponto ao escore total da escala e os domicílios foram classificados em: segurança alimentar (nenhum ponto); IA leve (de um a cinco pontos para domicílios com menores de idade ou de um a três pontos em domicílios somente com adultos); IA moderada (de seis a nove pontos para domicílios com menores de idade ou de quatro a cinco pontos em domicílios somente com adultos) e; IA grave (de 10 a 14 pontos para domicílios com menores de idade ou de seis a oito pontos em domicílios somente com adultos).
A validade interna da EBIA foi feita utilizando-se o Modelo de Rasch com as medidas de severidade e de ajuste – infit15. A severidade é a medida logarítmica da chance de um domicilio responder positivamente a um item, enquanto que o ajuste corresponde à razão do quadrado da diferença entre as estimativas esperadas e as observadas e são identificadas como médias do quadrado dos resíduos, tendo valor aceitável entre 0,5 e 1,516. A razão infit compara o padrão de respostas nos dados empíricos e o modelo teórico, ou seja, permite discernir se um item mais fácil recebe mais respostas corretas do que um item mais difícil17. As duas estatísticas e o número de respostas afirmativas para cada questão foram calculados. A análise de Rasch foi realizada com o auxílio do programa WINSTEPS versão 3.72. Para as análises de Rasch a amostra foi estratificada em dois grupos: famílias composta somente por adultos e famílias compostas por adultos e menores de 18 anos, em função da forte associação observada entre a composição familiar e a situação de segurança alimentar ou os diferentes níveis de IA.
Todas as variáveis foram descritas através de tabelas de frequência. Para as variáveis contínuas também foram calculadas as medidas de tendência central, médias e medianas, e de dispersão, desvio padrão, bem como os intervalos de confiança 95%. A variável dependente do estudo, situação de segurança ou IA foi categorizada em grupo 1 (segurança alimentar e IA leve) e grupo 2 (IA moderada e grave) para comparar a situação de segurança alimentar ou insegurança leve, quando ocorre a preocupação ou a diminuição da qualidade da alimentação com as situações mais graves onde também ocorre restrição na quantidade de alimento disponível e até a vivência da situação de fome no domicílio. Com isso pode-se identificar problemas nutricionais mais graves entre as PVHA.
Foi testada a associação da IA com as demais variáveis do estudo utilizando-se o teste qui-quadrado com nível de significância de 5%. Para a construção do modelo múltiplo, as variáveis independentes que tiveram p-valor menor ou igual a 0,20 foram incluídas em um modelo de regressão de Poisson para se estimar os efeitos independentes – razão de prevalência – de cada variável com relação à situação de maior IA moderada ou grave comparado com a situação de segurança ou IA leve. O modelo final foi composto somente pelas variáveis que obtiveram significância estatística (p-valor menor que 0,05).
No caso de uma variável perder significância no modelo múltiplo, ela é analisada novamente em composição com outras variáveis explicativas, formando uma nova variável – variável de interação – com o número de categorias equivalente ao produto do número de categorias das variáveis que lhe deram origem. As possíveis variáveis de interação repetem o procedimento descrito anteriormente e, mantendo significância estatística, p-valor menor que 0,05, permanecem no modelo final18.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da UFPB. Foram observadas todas as considerações éticas previstas na Resolução 466/1219, sobretudo por tratar-se de grupo especial, respeitando-se rigorosamente o sigilo e o anonimato. Os pesquisadores declaram não ter conflitos de interesse com os resultados da pesquisa.
Participaram da pesquisa 796 PVHA das quais 312 (39,2%) eram do sexo feminino e 484 (60,8%) do masculino. A idade registrada variou de 19 a 87 anos, sendo a média de 44,3 anos (DP = 10,7 anos), e a mediana de 43 anos. A maioria tinha escolaridade inferior ao ensino fundamental (52,4%) e 66,3% referiram não ter ocupação, declarando-se inativos. A renda per capita calculada teve muita variação, sendo a média de R$ 632,07 (DP = R$ 735,41). O número médio de moradores no domicílio foi de 3,0 indivíduos e 62,2% dos entrevistados residiam em domicílios constituídos apenas por adultos.
A prevalência de IA nesta amostra foi de 66,5%, sendo que a distribuição da segurança e dos diferentes níveis de IA apresentou associação estatística com o fato dos domicílios serem compostos somente por pessoas adultas ou terem também a presença de pessoas menores de 18 anos. As diferenças observadas na distribuição das frequências destes dois grupos mostraram que apesar da segurança alimentar ser maior nos domicílios somente com adultos, a prevalência de IA grave também foi maior neste grupo (Tabela 1).
Tabela 1 Prevalências de segurança alimentar e dos diferentes níveis de IA em domicílios de 796 PVHA em função da sua composição. João Pessoa, 2015.
Composição do Domicílio* | Segurança Alimentar | IA Leve | IA Moderada | IA Grave | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
| ||||||||
n | % | n | % | n | % | n | % | |
Domicílios somente com adultos | 193 | 39,0 | 123 | 24,8 | 78 | 15,8 | 101 | 20,4 |
Domicílios com adultos e menores de 18 anos | 74 | 24,6 | 122 | 40,5 | 66 | 21,9 | 39 | 13,0 |
Total | 267 | 33,5 | 245 | 30,8 | 144 | 18,1 | 140 | 17,6 |
*A diferença na apresentação da segurança alimentar e níveis de insegurança alimentar, de acordo com a composição do domicílio, foi estatisticamente significante (p < 0,001).
Para as análises psicométricas da escala foram considerados estes mesmos dois estratos. Os resultados do modelo de Rasch respondem adequadamente ao modelo teórico do constructo de IA segundo os valores de severidade dos itens e ao ajuste infit de cada item nos dois grupos avaliados (Figura 1). Os itens de menor gravidade, “diminuir a qualidade”, “diminuir a variedade” e “ter preocupação”, apresentaram menor severidade, seguidas das questões: “diminuir a quantidade”, “faltar comida” e “diminuir o número de refeições”. As questões de maior gravidade “sentir fome” e “ficar sem comer” apresentaram maior severidade, conforme o esperado. Os valores de infit para os itens mantiveram-se dentro do intervalo esperado de 0,7 e 1,3, com exceção do item “ter preocupação” que obteve infit de 1,36 e 1,38 para famílias somente com adultos e famílias com adultos e menores de 18 anos, respectivamente. Estes resultados mostram que a escala tem o comportamento esperado e apresenta validade interna quando aplicado à população de PVHA.
Figura 1 Estatísticas do Modelo de Rasch. (1) Valores de infit para domicílios com apenas indivíduos adultos. (2) Valores de severidade dos itens para os domicílios com apenas adultos. (3) Valores de infit para domicílios com menores de 18 anos. (4) Valores de severidade dos itens para os domicílios com menores de 18 anos. João Pessoa, 2015.
O tempo médio de diagnóstico soropositivo para HIV entre os participantes foi de 7,4 anos com um desvio padrão de 5,3 anos, o tempo mínimo foi de seis meses (estabelecido como critério de inclusão) e o tempo máximo observado de 35 anos. O tempo mediano de diagnóstico foi de 6,2 anos. Considerando o uso de TARV, o tempo médio observado foi de 6,5 anos, com desvio padrão de 5,09 anos e mediana de 5 anos.
A descrição detalhada das variáveis sociodemográficas, econômicas e de saúde em função da situação de segurança e IA estão apresentadas na Tabela 2, conforme a dicotomização em Segurança alimentar ou IA Leve (Grupo 1) e IA Moderada ou IA grave (Grupo 2).
Tabela 2 Distribuição das frequências das variáveis sociodemográficas, econômicas e de saúde em PVHA em função da situação de Segurança Alimentar. João Pessoa, 2015.
Variáveis sócio-demográficas, econômicas e de saúde | Segurança Alimentar + IA Leve | IA Moderada + IA Grave | Amostra Total | p-valor* | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
| |||||||
n1 | % | n2 | % | n | % | ||
Idade | |||||||
Até 43 anos (mediana) | 236 | 60,0 | 157 | 40,0 | 396 | 100,0 | 0,013 |
Maior que 43 anos | 276 | 68,5 | 127 | 31,5 | 403 | 100,0 | |
Sexo | |||||||
Feminino | 171 | 54,8 | 141 | 45,2 | 312 | 100,0 | < 0,001 |
Masculino | 341 | 70,4 | 143 | 29,6 | 484 | 100,0 | |
Renda Per Capita | |||||||
Até ½ Salário mínimo | 229 | 52,9 | 204 | 47,1 | 433 | 100,0 | < 0,001 |
Mais que ½ Salário mínimo | 283 | 78,0 | 80 | 22,0 | 363 | 100,0 | |
Escolaridade** | |||||||
Até fundamental incompleto | 219 | 52,5 | 198 | 47,5 | 417 | 100,0 | 0,001 |
Fundamental incompleto ou mais | 292 | 77,4 | 85 | 22,5 | 377 | 100,0 | |
Situação conjugal ** | |||||||
Convive com o companheiro | 331 | 66,1 | 170 | 33,9 | 501 | 100,0 | 0,177 |
Não convive com o companheiro | 179 | 61,3 | 113 | 38,7 | 292 | ||
Ocupação ** | |||||||
Com ocupação/ativo | 209 | 79,5 | 54 | 20,5 | 263 | 100,0 | < 0,001 |
Sem ocupação/inativo | 302 | 57,2 | 226 | 42,8 | 528 | ||
Nº de moradores no domicílio | |||||||
Até 3 moradores | 345 | 65,6 | 181 | 34,4 | 562 | 100,0 | 0,297 |
4 ou mais moradores | 167 | 61,8 | 103 | 38,2 | 270 | ||
Tempo de diagnóstico | |||||||
Até 4 anos | 164 | 60,5 | 107 | 39,5 | 271 | 100,0 | 0,107 |
Maior que 4 anos | 348 | 66,3 | 177 | 33,7 | 525 | 100,0 | |
Tempo de uso de TARV*** | |||||||
Até 3 anos | 166 | 60,8 | 107 | 39,2 | 273 | 100,0 | 0,135 |
Maior que 3 anos | 346 | 66,2 | 177 | 33,8 | 523 | 100,0 | |
IMC** | |||||||
Baixo peso | 17 | 58,6 | 12 | 41,4 | 29 | 100,0 | 0,337 |
Peso normal | 262 | 64,7 | 143 | 35,3 | 405 | 100,0 | |
Sobrepeso | 175 | 67,0 | 86 | 33,0 | 261 | 100,0 | |
Obesidade | 52 | 55,9 | 41 | 44,1 | 93 | 100,0 | |
Composição familiar | |||||||
Somente adultos | 316 | 63,8 | 179 | 36,2 | 495 | 100,0 | 0,715 |
Adultos e menores de 18 anos | 196 | 65,1 | 105 | 34,9 | 301 |
*teste qui-quadrado. **variáveis sem informação: escolaridade: 2 casos; Situação conjugal: 3 casos; ocupação: 5 casos; IMC (Índice de Massa Corporal): 8 casos. *** Terapia antirretroviral.
O teste de associação entre a variável dependente, situação de IA, dicotomizada nos dois grupos, e as demais variáveis do estudo encontrou associação com idade, sexo, renda, escolaridade e ocupação das PVHA. Assim, estar na faixa etária menor ou igual a 43 anos (p = 0,013), ser do sexo feminino (p < 0,001), ter renda per capita menor que meio salário mínimo (p < 0,001), ter escolaridade até ensino fundamental incompleto (p < 0,001), ou não ter ocupação (p < 0,001) são características associadas à maior prevalência de IA moderada e grave. Estas variáveis significativamente associadas juntamente às variáveis situação conjugal, tempo de diagnóstico da doença e tempo de uso da TARV foram incluídas em um modelo de regressão de Poisson para serem estimados os efeitos (razões de prevalência) independentes de cada uma destas variáveis. Somente idade, renda per capita, escolaridade e ocupação mantiveram significância estatística dentro do modelo. A variável sexo da PVHA perdeu significância estatística dentro do modelo múltiplo e quando foi testada sua associação com as demais variáveis mostrou-se associada com renda, escolaridade, ocupação, número de moradores no domicílio, IMC e composição do domicílio. Como a variável número de moradores no domicilio também apresentou associação com a composição do domicílio – ter somente adultos ou adultos e pessoas menores de 18 anos – foram feitas duas variáveis de interação: sexo x IMC e sexo x composição do domicilio, sendo esta última com associação significativa com a IA, tanto isoladamente como ajustada no modelo (Tabela 3).
Tabela 3 Resultado da regressão múltipla de Poisson - variáveis independentemente associadas à IA Moderada ou Grave na amostra total, com a Razão de Prevalência e Intervalo de Confiança. João Pessoa, 2015.
Variável | Categoria | RP ajustada | Intervalo de Confiança (95%) | |
---|---|---|---|---|
| ||||
Menor | Maior | |||
Sexo x composição do domicílio | Feminino com família somente de adultos Masculino com família somente de adultos Feminino com família com adultos e menores de 18 anos Masculino com família com adultos e menores de 18 anos | 2,191 1,857 1,632 1 | 1,449 1,247 1,083 | 3,314 2,765 2,460 |
Idade | ≤ 43 anos > 43 anos | 1,459 1 | 1,143 | 1,862 |
Escolaridade | Até Fundamental Incompleto Fundamental completo ou mais | 1,640 1 | 1,237 | 2,174 |
Ocupação | Não ter ocupação Com ocupação | 1,592 1 | 1,156 | 2,192 |
Renda per capita | ≤ 1/2 Salário Mínimo > ½ Salário Mínimo | 1,831 1 | 1,373 | 2,442 |
Os resultados do modelo de regressão múltipla de Poisson na amostra de 789 casos de PVHA que apresentaram informações completas das variáveis selecionadas para o modelo indicam que a prevalência de IA moderada ou grave entre pessoas com menos de 43 anos é 1,46 vezes a prevalência entre as pessoas de maior idade, o que indica que na medida em que diminui a idade da PVHA aumenta a chance dela ter IA moderada e grave. Da mesma forma, a menor escolaridade aumenta em 64% a prevalência deste agravo, não ter ocupação ou ser inativo aumenta em 59,2% e a renda per capita inferior a meio salário mínimo aumenta em 83,1% a prevalência de IA moderada ou grave.
Com relação à variável de interação sexo da PVHA e composição da família residente no domicílio, foi observado que a melhor situação são os casos de PVHA do sexo masculino que vivem em famílias compostas por adultos e menores de 18 anos. A prevalência de IA moderada e grave aumenta 63,2% quando a pessoa de referencia é do sexo feminino em famílias com adultos e menores de idade, 85,7% quando a pessoa é do sexo masculino, mas vive em uma família composta somente por adultos e a pior situação é quando a pessoa de referencia é do sexo feminino vivendo somente com adultos, quando a prevalência de IA moderada ou grave é mais que o dobro do grupo de referencia (119,1%).
O presente trabalho apresentou os resultados da validação da EBIA aplicada a PVHA, as medidas de prevalência da IA e os fatores associados a este agravo. PVHA compõem um grupo vulnerável, portador de uma doença grave que, embora sem cura, pode ser controlada com tratamento adequado, permitindo sobrevida equivalente à população geral20,21. Além da própria enfermidade e de outros graves problemas vivenciados pelas PVHA como o preconceito social, a necessidade e a complexidade do tratamento, observou-se neste estudo que a IA, nas suas formas mais severas, também acomete grande parcela desta população. A EBIA mostrou-se adequada para ser aplicada neste grupo populacional apresentando bons resultados de validade interna, segundo os testes realizados na análise de Rasch. Os valores de ajuste entre a resposta estimada com a esperada, valores de Infit, aceitáveis devem estar entre 0,5 e 1,5. Por se tratar de uma escala unidimensional, são adequados os ajustes entre 0,7 e 1,3 e entre 0,8 e 1,2, são considerados ótimos16. Neste estudo nos domicílios somente com adultos o maior valor observado de infit foi 1,36 e nos domicílios completos foi de 1,38, em ambos os casos para o item “ter preocupação que falte comida” que é o primeiro item da escala, sendo neste caso, aceitável algumas diminuições de ajuste nos itens extremos, primeiro ou último.
Os resultados positivos da validação são importantes para confirmar o comportamento adequado da escala neste grupo populacional específico. Características como a vulnerabilidade biológica das PVHA, os riscos relacionados às práticas sexuais e sua consequente implicação na estruturação familiar, as mudanças na percepção dos sabores e no apetite devido à TARV, entre outras características, poderiam ser fatores que alterassem o comportamento das respostas aos itens da EBIA comprometendo sua validade. Estudo realizado com famílias residentes no interior do Estado da Paraíba confirmou a validade interna e externa da EBIA escala, bem como sua consistência quando aplicada a domicílios somente com adultos ou com moradores adultos e menores de 18 anos. No estudo de validação, as famílias somente com adultos tinham menos integrantes e contabilizavam maior renda per capita, tendo, portanto, maior segurança alimentar que aquelas com adultos e menores de 18 anos (66,6% vs 38,1%) e substancialmente menor IA grave (3,1% vs 15,4%)22. Neste estudo foi observado resultado semelhante de maior prevalência de segurança alimentar em famílias de PVHA sem a presença de menores de idade. Entretanto esta mesma composição familiar apresentou maior prevalência de IA grave. Este comportamento poderia ser melhor estudado, uma vez que pode ser um importante fator de risco para a situação de IA grave, porém o presente estudo não coletou dados com esta finalidade.
Também o diferente comportamento da distribuição das prevalências de segurança e dos três níveis de IA em função da composição familiar justifica a estratificação das famílias em função desta característica para a realização da análise de validação. O resultado, como foi apresentado, permite o uso da EBIA em famílias de PVHA independente da sua composição.
Com relação aos resultados das prevalências observadas, os valores encontrados neste estudo com PVHA foram quase que o dobro do observado para a população em geral do estado da Paraíba, no ano de 2013, 36,5% segundo o IBGE3 e 66,5% neste estudo. Do total da amostra estudada, 17,6% dos casos foram classificados em IA grave, o que representa, segundo a EBIA, experiência vivida de fome nos últimos três meses. Este resultado mostra um problema muito grave que reflete uma grande desigualdade social vivenciada pela população acometida pelo vírus do HIV tratada no principal serviço público de atendimento a doenças infecciosas do Estado da Paraíba. As prevalências de IA moderada e grave conjuntamente, neste grupo populacional, são maiores que esta mesma situação entre moradores de rua ou vivendo em domicílios precários em São Francisco (EUA), onde 25% foram classificados em IA grave e outros 24% em IA leve ou moderada23. É importante considerar que a escala utilizada nos EUA faz referência a eventos ocorridos no último ano24, enquanto a escala utilizada no Brasil faz referência somente aos três últimos meses.
A prevalência de IA em PVHA é variável na literatura. No Brasil estudo realizado com 103 PVHA em Brasília avaliou IA nesta amostra e encontrou resultados melhores que os de João Pessoa, ou seja, prevalência de IA de 33,8% entre pessoas com HIV e de 36,8% entre aqueles com AIDS. Esta prevalência menor pode ser atribuída às características próprias da região, entretanto estes valores são muito maiores que os observados pela pesquisa nacional em 2013, em que a prevalência de IA no Distrito Federal na população em geral era de 13,3%25.
Estes resultados ainda são semelhantes com outras realidades em países desenvolvidos, como o Canadá, onde 71% de uma amostra de 457 PVHA em uso de TARV estavam em IA, independente do nível de gravidade10, ou a Índia, onde 50,9% dos pacientes em TARV de uma clínica vivenciavam algum nível de IA26, ou países pobres como a Etiópia, onde 63% de uma amostra de 319 PVHA também apresentavam IA27. A IA no contexto de PVHA pode ser um fator de risco importante para a ocorrência de desfechos negativos28. A IA tem sido associada com aumento de 1,3 vezes na chance para apresentar pior contagem de células CD4, de acordo com recente metanálise29, além de estar associada a sintomas depressivos, pior adesão ao tratamento e exacerbação de efeitos colaterais30. PVHA em IA tem apresentado 1,29 vezes mais chance de apresentar supressão incompleta da carga viral, e 1,48 vezes mais chance de não aderir ao tratamento31. Estudo de seguimento com PVHA desenvolvido na Índia encontrou que a IA moderada ou grave é fator de risco para depressão entre pacientes do sexo masculino, reforçando a ideia de que a assistência alimentar pode diminuir o estresse e causar benefícios importantes no tratamento de PVHA32.
A IA e o comprometimento do estado nutricional podem: acelerar a progressão de doenças relacionadas à AIDS, prejudicar a aderência e a resposta à TARV e exacerbar os impactos socioeconômicos do vírus. A própria infecção pelo vírus enfraquece a segurança alimentar e compromete o estado nutricional por reduzir a capacidade de trabalho, a produtividade e por colocar em risco os meios de subsistência dos domicílios ou agregados familiares33. PVHA em IA exacerbam sua autopercepção de fracasso social, conforme descrito em subgrupo recebendo assistência alimentar30.
As variáveis que se mostraram associadas à IA moderada e grave e que permaneceram no modelo final de regressão múltipla de Poisson foram a escolaridade até ensino fundamental incompleto, idade menor que a mediana (43 anos), renda per capita menor que meio salário mínimo, estar inativo ou não ter ocupação e famílias residentes em domicílios compostos somente por adultos, em especial quando a pessoa contaminada com o HIV é do sexo feminino. Como a escala mede o acesso aos alimentos, estes resultados são bastante consistentes e atendem ao marco teórico da IA onde as desigualdades sociais têm relação direta com o fenômeno da IA, ou seja, quanto pior as características socioeconômicas das famílias, maior a prevalência e a intensidade da IA, de acordo com resultados de outros estudos sobre IA em PVHA34,35. Estas relações são bem conhecidas em estudos realizados com outros grupos populacionais, regionais ou nacionais. Na Paraíba a validade externa da EBIA foi confirmada com a relação direta da diminuição da renda com o aumento da IA22. No Brasil, a falta de acesso a serviços públicos, menor renda domiciliar per capita, a mulher ser a pessoa de referencia do domicílio, menor escolaridade e piores condições de trabalho estavam associados a maior IA3. Estes resultados mostram que os efeitos negativos das desigualdades sociais estão diretamente relacionados com a percepção de IA36. É importante destacar que os fatores que mediam a ocorrência da IA em PVHA são semelhantes aos descritos na população geral, atuando de forma mais intensa entre aqueles indivíduos com situação socioeconômica mais vulnerável.
Na Etiópia, estudo mostrou que IA esteve associada à baixa renda familiar, ao baixo nível educacional e à ocupação. Um maior nível educacional proporciona às PVHA oportunidades maiores de se envolverem em atividade de geração de renda de forma a diminuir a vulnerabilidade para IA27. No Brasil, também se demonstrou associação da IA com pior classe social e menor escolaridade em PVHA25.
Na análise univariada observou-se que as mulheres em tratamento HIV/Aids apresentavam maior prevalência de IA moderada ou grave, quando comparadas com os homens. Quando analisada esta variável em conjunto com a composição da família, esta relação se manteve significativa no modelo múltiplo. No Brasil a IA é maior nos domicílios onde a mulher é a pessoa de referência5, assim como também foi observado em outra pesquisa nacional que as mulheres em situação de IA grave apresentam maior chance de realizar comportamentos de risco que podem levar a contrair o vírus do HIV31. A distribuição de sexo observada neste estudo, onde quase 40% das PVHA eram do sexo feminino, confirma a necessidade de mais estudos que abordem a questão de gênero e seus impactos no tratamento e nas condições de vida das mulheres HIV positivas.
A relação observada de maior prevalência de IA moderada e grave entre as PVHA com menor renda (menos que ½ SM per capita) confirma este fenômeno observado em estudos de IA conduzidos com outros grupos populacionais, entretanto é possível que a restrição de renda em PVHA seja pior do que aquela vivenciada por famílias livre de doenças crônicas devido à demanda urgente das necessidades terapêuticas e das suas consequências37. Enfrentar a pobreza e os problemas de IA em PVHA pode ser um elemento de fundamental importância para obtenção de uma melhor adesão ao tratamento e melhores resultados clínicos com a TARV.
Este estudo identifica fatores associados com o aumento da prevalência de IA moderada e Grave em PVHA, porém faz-se necessário conhecer as consequências da IA tanto ao tratamento, adesão e eficácia, como os desfechos clínicos destes pacientes. Estas informações são importantes para a organização de políticas públicas adequadas tanto de acesso aos alimentos, como de assistência alimentar e apoio social para melhorar a sobrevivência e a qualidade de vida dos pacientes em uso de TARV10,38, garantindo a segurança alimentar e nutricional das PVHA27.
Algumas limitações desta pesquisa devem ser consideradas, especialmente por se tratar de um estudo transversal onde as relações de causalidade não podem ser investigadas. Também existe a possibilidade de vieses de seleção, tanto pela forma de recrutamento como pela realização do estudo tendo como fonte os casos do Hospital de Referência do Estado. O espaço amostral utilizado por este estudo utilizou dois períodos diferentes de tempo para o recrutamento de todos os pacientes que acessaram o serviço, sendo que durante os meses de coleta de dados não houve nenhuma ação, campanha ou atividade específicas do Hospital que pudesse enviesar a amostra. Assim, na impossibilidade de realização de uma amostra aleatória desta população, a opção utilizada obteve uma amostra grande o suficiente para garantir a validade interna dos resultados e com alta possibilidade representar as PVHA em tratamento no estado da Paraíba, uma vez que é um estado pequeno, com alta cobertura do SUS, a grande maioria dos casos são tratados neste hospital de referência. Também, por se tratar de uma doença grave, espera-se que a porcentagem de subregistro seja menor do que a de outras doenças de menor gravidade. Mesmo assim é importante destacar que o preconceito e os aspectos discriminatórios relacionados com a infecção pelo vírus HIV continuam sendo uma barreira para a identificação e o tratamento oportuno da doença39, sobretudo quando aliados à dificuldade de se perceber vulnerável à infecção, muitas vezes pelo receio do constrangimento, e ao atendimento precário nos centros de testagem e aconselhamento40.
O presente estudo demonstrou que a EBIA é um instrumento válido para medir a IA em pessoas vivendo com HIV/Aids. Também destaca que esta avaliação é muito importante, uma vez que foi encontrada uma alta prevalência de PVHA em tratamento no estado da Paraíba em situação de IA, atingindo 66,5% dessas pessoas. As formas mais severas da IA – moderada e grave, quando há restrição da qualidade, quantidade e até mesmo fome entre os integrantes dos domicílios – acometeram 35,7% das PVHA e estiveram associadas com piores condições socioeconômicas, confirmando o impacto negativo na saúde e alimentação devido às desigualdades sociais.
São necessários mais estudos para se conhecer os efeitos da IA na adesão e eficácia do tratamento HIV/Aids, nos desfechos clínicos e seu impacto na qualidade de vida destas pessoas. Os resultados deste trabalho mostram que as pessoas em tratamento para HIV/Aids, além da reconhecida vulnerabilidade biológica e social, ainda apresentam altas prevalências de IA. Promover políticas e ações facilitando o acesso a alimentos de qualidade, ou até realizar ações de assistência alimentar pode minimizar este problema trazendo impacto positivo no tratamento da doença e na qualidade de vida destas pessoas.