versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.2 no.4 São Paulo out./dez. 2019 Epub 02-Dez-2019
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20190069
A chikungunya (CHIK) é uma condição de saúde dolorosa ocasionada pela picada do mosquito Aedes infectado com o vírus da chikungunya (CHIKV)1. Após o ano 2000 foi observado uma expansão geográfica do CHIKV1-4. Os principais sintomas são: poliartralgia, febre alta nos primeiros dias, fadiga, edema, cefaleia, entre outros5,6. Na condição aguda, a população relata dificuldades para se locomover e realizar suas atividades da vida diária e laboral, somando-se a prejuízos nas relações interpessoais7,8. Existem relatos de manutenção das limitações no estágio crônico9. Devido aos sintomas dolorosos e incapacitantes, a CHIK tornou-se um importante problema de saúde pública10.
No âmbito de uma análise holística da pessoa, buscando não ter a doença como foco principal, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF)11. Esse instrumento promove uma abordagem da funcionalidade e incapacidade no contexto biopsicossocial12. Propõe uma nova abordagem que incrementa fatores ambientais, pessoais, participação e atividade no entendimento da situação do indivíduo13.
A CIF apresenta os seguintes domínios: condição de saúde, funções e estruturas do corpo, atividade, participação, fatores ambientais e pessoais. Existe uma relação dinâmica entre esses domínios, apresentando-se como uma rede de correlações11,14. O conceito de funcionalidade trazido pela OMS é uma interação complexa entre a condição de saúde e os fatores contextuais por meio de uma linguagem única e padronizada da saúde11.
Este estudo teve como objetivo estudar os instrumentos utilizados para mensurar a funcionalidade em indivíduos acometidos com a CHIK e verificar sua consistência com o modelo da CIF, buscando detectar se esses instrumentos apresentam relação com a CIF, ajudando na escolha mais adequada para a mensuração da funcionalidade na prática clínica e nas pesquisas. Além disso, verificar se a funcionalidade está sendo abordada segundo o modelo proposto pela CIF.
Estudo de revisão sistemática da literatura, realizada no período de maio a julho de 2018. Foram utilizadas as bases de dados Scielo, Pubmed, Scopus, LILACS, PEDro e Cochrane nos idiomas inglês, português e espanhol.
Utilizou-se os seguintes descritores para a busca: incapacidade, desempenho funcional, funcionalidade, capacidade funcional, deficiência, febre chikungunya, vírus chikungunya, em inglês, português e espanhol. Sendo aplicada a combinação da seguinte forma: [(“Incapacidade” OR “Desempenho Funcional” OR “Funcionalidade” OR “Capacidade Funcional” OR “Deficiência”)) AND (“Febre Chikungunya” OR “Vírus Chikungunya”)].
Os critérios de inclusão para a seleção dos artigos foram publicações a partir de 2001 (ano de publicação da CIF) e que fizessem a avaliação da funcionalidade em indivíduos acometidos com a CHIK. Foram excluídos artigos de revisão, teses e dissertações.
A busca e seleção dos estudos foram realizadas por dois pesquisadores de maneira independente, havendo um terceiro pesquisador para casos de discordância, o qual não foi solicitado. Os pesquisadores encontraram 783 e 1579 artigos, respectivamente. Fizeram uso das mesmas bases de dados e descritores, porém um utilizou os filtros no momento da busca e o outro não, por isso a diferença do número encontrado.
Primeiramente foram retirados os estudos duplicados. Logo após realizou-se a triagem por meio dos títulos e resumos. Em seguida, foram lidos os artigos na íntegra e realizada uma seleção dos elegíveis. Todas as etapas foram realizadas de forma individual. Ao final, os dois encontraram os mesmos artigos, sendo cinco no total. Muitos estudos avaliavam a capacidade funcional ou qualidade de vida e não a funcionalidade, como era o desfecho esperado, por isso foram retirados. Soma-se ainda que alguns artigos traziam a funcionalidade nos aspectos microbiológicos dos mosquitos. O processo de seleção está descrito na figura 1.
Os estudos selecionados foram avaliados segundo a qualidade metodológica por meio do Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation (GRADE). Um sistema desenvolvido com o objetivo de obter uma unificação que seja sensível para graduar a qualidade das evidências15,16. As publicações podem ser graduadas em 4 níveis de evidência científica: alto, moderado, baixo, muito baixo. Dentre os artigos encontrados, 4 apresentaram baixa evidência e 1, moderada (Tabela 1).
Tabela 1 Distribuição geral dos artigos de acordo com o número de participantes, objetivos, instrumento de medida utilizado e escore de qualidade metodológica
Autores | Nº de participantes | Objetivos | Instrumentos de funcionalidade | Escores de qualidade |
---|---|---|---|---|
Sepúlveda-Delgado et al.17 | 10 | Avaliar a associação entre o envolvimento articular, incapacidade autorreferida e biomarcadores inflamatórios. | WHO Disability Assessment Schedule 2.0 | Baixo |
Rahim et al.18 | 3869 | Investigar os efeitos de sintomas reumáticos e musculoesqueléticos crônicos sobre o estado funcional de pessoas afetadas pela epidemia de chikungunya no distrito de Calicut, Kerala, sul da Índia em 2009. | Health Assessment Questionnaire (Modified - CRD pune version). | Baixo |
Moro et al.3 | 250 | Descrever o curso clínico e o resultado da infecção por chikungunya a longo prazo. | Recent-Onset ArthritisDisability (ROAD) | Moderado |
Bouquillard et al.19 | 307 | Analisar as características e a progressão das manifestações reumáticas em pacientes com dor articular pós-chikungunya. | Health Assessment Questionnaire | Baixo |
Heath et al.20 | 240 | Investigar o risco epidemiológico, demográfico, físico e comportamental. Fatores associados ao desenvolvimento de artralgia crônica relacionada ao vírus da chikungunya em Granada | Arthritis ImpactMeasurement Scale | Baixo |
Os artigos selecionados avaliaram a funcionalidade por meio de questionários, não havendo repetição de instrumentos. O segundo estágio da pesquisa consistiu na codificação desses instrumentos em concordância com os domínios da CIF. Esse processo consistiu na extração dos conceitos significativos considerando os desfechos dos artigos. A codificação de acordo com os domínios da CIF foi realizada por dois codificadores independentes levando em conta as regras estabelecidas e publicadas21. Os achados do processo foram comparados e as discrepâncias resolvidas com a supervisão do terceiro pesquisador. Os dados da codificação estão descritos na tabela 2 e figura 2.
Figura 2 Domínios da Classificação Internacional de Funcionalidade e Saúde que codifica a frequência total nos instrumentos incluídos
Tabela 2 Distribuição de frequências dos domínios da Classificação Internacional de Funcionalidade e Saúde contida em cada instrumento
Artigo | Instrumentos | Domínios CIF n (%) |
---|---|---|
Sepúlveda-Delgado et al.17 | WHO Disability Assessment Schedule 2.0 | Condição de saúde n:9 (11,54%) Função n:6 (7,7%) Estrutura do corpo n:1 (1,28%) Atividade n:39 (50%) Participação n:10 (12,88%) Fatores pessoais n:8 (10,25%) Fatores ambientais n:5 (6,41%) |
Rahim et al.18 | Health Assessment Questionnaire (Modified - CRD pune version). | Atividade n:46 (86,80%) Fatores ambientais n:7 (13,20%) |
Moro et al.3 | Recent-Onset Arthritis Disability (ROAD) | Função n:3 (13,04%) Estrutura do corpo n:1 (4,35%) Atividade n:18 (78,26%) Participação n:1 (4,35%) |
Bouquillard et al.19 | Health Assessment Questionnaire | Atividade n:31 (100%) |
Heath et al.20 | Arthritis Impact Measurement Scale | Função n:2 (4%) Atividade n:2 (48%) Participação n:8 (16%) Fatores pessoais n:9 (18%) Fatores ambientais n:7 (14%) |
A frequência em que os domínios aparecem nos instrumentos coletados foram: condição de saúde (3,86%), função (3,86%), estrutura do corpo (0,86%), atividade (67,82%), participação (8,15%), fatores ambientais (7,3%) e fatores pessoais (8,15%). Todos os domínios foram contemplados em pelo menos um dos instrumentos e apenas 1 contemplou todos os domínios.
Observou-se uma gama de artigos que se propuseram a avaliar a funcionalidade de pessoas acometidas com CHIK. Porém, ao fazer a análise dos estudos, a amostra final foi de cinco estudos. Esse reduzido número deve-se ao fato de que a maioria apresentava como desfecho a qualidade de vida e/ou a capacidade funcional, e não a funcionalidade.
Ao analisar os anos de publicação, observou-se um aumento de 2016 para 2018, fato esse que pode estar correlacionado com o aumento da distribuição geográfica do vírus1. O objetivo das publicações selecionadas está diretamente relacionado com a verificação do perfil da população acometida com CHIK, apresentando a funcionalidade como desfecho. Sendo coerente com o propósito da presente revisão.
Referente à avaliação metodológica dos estudos, as publicações, em sua maioria, têm qualidade baixa, mostrando que a elaboração metodológica necessita de um maior rigor na execução, de acordo com as diretrizes do sistema GRADE.
Dentre os artigos selecionados, não houve repetição de instrumentos para a análise da funcionalidade, não encontrando um consenso sobre qual ferramenta fazer uso para avaliar o determinado desfecho. Em contrapartida, Gomes, Buranello e Castro22 encontraram um teste físico utilizado em nove estudos, por meio de uma revisão dos instrumentos que avaliam a funcionalidade em idosos.
Observou-se que a população acometida com a CHIK apresenta dor e dificuldades de movimentar uma ou algumas articulações, sendo principalmente: tornozelos, punhos, mãos e joelhos3,18,19, comprometendo a funcionalidade dos indivíduos para a realização das suas atividades e nas relações interpessoais. Analisando a correlação dos instrumentos com a CIF notou-se um déficit no domínio estrutura, onde apenas um apresentava questões referente a esse desfecho, presente em uma questão.
O WHODAS 2.0 foi um dos questionários escolhidos para fazer a análise da funcionalidade em indivíduos com a CHIK17. Quando analisada a correlação com a CIF, percebeu-se que abordava todos os domínios, sendo o único a apresentar essa característica, porém 50% das suas questões eram voltadas para atividades, não sendo homogêneo entre os domínios. Foi criado pela OMS com o objetivo de fazer uma análise dos níveis de saúde e deficiência fundamentado na CIF23,24. Apesar de não ser um instrumento validado para a CHIK, apresenta-se como genérico e de uso transcultural, proporcionando uma mensuração comum de funcionalidade para qualquer condição de saúde24.
Rahim et al.18 utilizaram o Health Assessment Questionnaire (Modified - CRD Pune version), versão do Stanfort Health Assessment Questionnaire validado e modificado para a população indiana25. Ferramenta muito utilizada para avaliação de pacientes reumáticos. O questionário tem foco na avaliação da função física e na qualidade de vida25, abordando apenas um dos aspectos relacionados à funcionalidade. A relação com a CIF revela questões referentes a atividades e fatores ambientais. Notando-se uma discordância entre o que o instrumento se propõe a avaliar e o que realmente está sendo considerado na sua estrutura, tratando a funcionalidade de forma limitada.
Outro instrumento utilizado é o Recent-Onset Arthritis Disability na versão validada e adaptada para pacientes italianos com artrite reumatoide26. Verificando a correspondência com a CIF percebeu-se que o instrumento aborda 4 domínios. Soma-se que 78,26% do questionário é referente à atividade, como o WHODAS 2.0, colocando os outros domínios em posição de inferioridade e abordando o desfecho de forma restrita. Encontrou-se o mesmo no Arthritis Impact Measurement Scale (AIMS), quando relacionado com a CIF, a sua abordagem é principalmente no domínio atividade.
O estudo de Bouquillard et al.19 utilizou o Health Assessment Questionnaire que avaliou o estado funcional através de 20 questões27. Ao correlacionar com os domínios da CIF, a ferramenta abordou somente o item de atividade, revelando a perspectiva biomédica presente, não abordando aspectos importantes da CIF.
Observa-se que apenas o WHODAS 2.0 respeita e aborda todos os conceitos teóricos apresentados pela CIF. Ele foi produzido pela OMS com esse objetivo, visto que a CIF não faz avaliação e sim classificação. A OMS recomenda a utilização desse instrumento para a mensuração da funcionalidade24. O AIMS foi a segunda ferramenta que mais contemplou os domínios, excluindo Estrutura e Condição de Saúde.
Notou-se discordância entre os instrumentos ao abordar a funcionalidade com o predomínio da atividade. Dessa forma, vê-se que a funcionalidade ainda é entendida de uma forma reducionista e simplificada, colocando a atividade em perspectiva de maior importância. Porém, a CIF busca tratar de forma igualitária seus domínios28.
Através da análise das pesquisas foram encontrados alguns dados relevantes: ausência de validação dos instrumentos para pessoas acometidas com o CHIKV (utilizados para a população em geral ou condições reumáticas) e um dos estudos apresentou uma amostra muito pequena. Soma-se que quase todos os artigos apresentaram baixa qualidade metodológica, de acordo com o GRADE.
Como limitação do presente estudo teve-se um reduzido número de artigos que fazem a avaliação do desfecho na CHIK. Atribui-se que seja devido à recente expansão geográfica do vírus, resultando em um limitado número de estudos que buscam avaliar as consequências dessa condição de saúde. Contudo, a funcionalidade se mostra um indicador que vem ganhando proporção nos últimos anos, tanto no campo da ciência como da saúde. Outra limitação é com relação aos idiomas das publicações, uma vez que a busca se deu apenas em três idiomas.
O estudo tem caráter de destaque, já que a funcionalidade está sendo vista como um dos importantes índices para avaliar a saúde da população29 e faz-se necessário um instrumento que consiga abordar esse desfecho de uma forma completa. Incluiu-se que a CHIK vem se tornando um importante problema de saúde púbica e necessita-se obter os dados dessa população para melhor manuseio clínico.
Os instrumentos de aferição de funcionalidade utilizados mostraram ter relação com o arcabouço conceitual da CIF, porém a maioria não contemplou a estrutura em sua totalidade. Destaca-se o WHODAS 2.0, que se apresenta como a opção mais fidedigna para a avaliação desse desfecho, pois consegue abranger todos os conceitos propostos pela classificação, mas contém limitações, demonstrando, assim, uma carência de ferramentas validadas que mostrem uma abordagem completa para a funcionalidade e que sejam validadas para a população com CHIK. Além disso, percebe-se que a escolha dos instrumentos para aferição da funcionalidade não está sendo feita levando em consideração a relação com a CIF.