Compartilhar

Integração de rede e coordenação do cuidado: o caso do sistema de saúde do Chile

Integração de rede e coordenação do cuidado: o caso do sistema de saúde do Chile

Autores:

Patty Fidelis de Almeida,
Suelen Carlos de Oliveira,
Lígia Giovanella

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.7 Rio de Janeiro jul. 2018

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018237.09622018

Introdução

A fragmentação do cuidado em saúde representa um dos principais obstáculos para o alcance de melhores resultados no acesso, qualidade, uso racional e eficiente de recursos e satisfação dos usuários, entre outros aspectos1. A busca por cuidados integrados é um componente central para o enfrentamento do aumento da carga de doenças crônicas, em contexto de restrição de investimentos públicos2. Ademais de sua relevância, há certo consenso sobre a relativa insuficiência de instrumentos, metodologias e indicadores e reconhecimento da complexidade que representa a transição de “cuidados fragmentados” para “cuidados integrados” em todos os seus componentes: desenho, implementação e avaliação2.

Alinhado ao conceito de redes regionalizadas de sistemas públicos, a Organização Pan-Americana da Saúde1 desenvolveu um marco conceitual para a operacionalização das Redes Integradas de Serviços de Saúde (RISS) nos países latino-americanos, conduzidas pela Atenção Primária à Saúde (APS). Não menos relevante, é a forma como o cuidado integrado é projetado e implementado para se ajustar a contextos e necessidades locais2.

Os resultados das reformas organizacionais e estruturais para um melhor desempenho das RISS são escassos e ainda pouco explorados nos sistemas de saúde da Região, assim como seu impacto sobre a coordenação entre níveis assistenciais3,4. Neste sentido, reafirma-se a relação inequívoca entre constituição de redes integradas e coordenação do cuidado – que pode ser tomada como um dos resultados intermediários para a análise do desempenho das RISS3.

A coordenação do cuidado pode ser definida como a articulação entre diversos serviços, ações e profissionais na atenção à saúde, de forma que, independente do local onde seja prestada, esteja sincronizada, voltada ao alcance de um objetivo comum e sem conflitos5,6. Sustenta-se na existência de ações integradas entre prestadores e profissionais, conformados em rede, guiadas pela APS7. O cuidado integrado pode ser considerado um princípio e um meio para alcançar o cuidado centrado no usuário, mais eficiente e seguro2.

Na América Latina, com poucas exceções, como Cuba e Costa Rica, as redes de atenção à saúde se constituíram de forma paralela, para grupos populacionais segregados8. Os altos níveis de segmentação nos sistemas de saúde latino-americanos complexificam a concepção e o escopo da coordenação entre níveis assistenciais, diante da necessidade de incorporar à análise, a dimensão de coordenação entre os diversos subsistemas9.

A experiência do sistema de saúde chileno é paradigmática e complexa, na medida em que se apresenta como a primeira da Região a seguir a receita proposta por organismos multilaterais (FMI e Banco Mundial) para países em desenvolvimento e que, posteriormente, foram sistematizadas no Consenso de Washington, constituindo-se como um campo de experimentação das políticas neoliberais mais ortodoxas10. Não obstante tenha constituído, durante os anos de 1950, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) com base no modelo inglês, sendo a segunda experiência mundial deste tipo11, mudança radical foi produzida com a ditadura militar nos anos de 1980, com a privatização do asseguramento e impulso à atenção médica privada12. Labra11 destaca que mesmo as reformas neoliberais mais austeras dos anos de 1980 não conseguiram extinguir o legado institucional constituído diante da expansão do direito nos anos 1950. Um legado que se expressa na permanência de uma potente rede de hospitais públicos até os dias atuais (2016): 68% dos leitos hospitalares chilenos são públicos13.

Após o fim do regime militar nos anos de 1990, a coalizão de centro-esquerda inicialmente não implementou reforma expressiva no sistema de saúde ainda que tenha promovido expressivo aumento do financiamento público, especialmente para os hospitais14. Posteriormente, a reforma setorial, durante o governo Lagos (2000-2006), fortaleceu o sistema público, todavia, manteve-se a configuração dual do sistema com o componente de seguro público – Fondo Nacional de Salud (Fonasa), e o privado, constituído pelos Institutos de Salud Previsionales (Isapres), empresas privadas lucrativas de intermediação entre compra e venda de planos de saúde15, em geral, para os grupos com menores riscos e alta renda, descapitalizando o setor público16.

A busca de maior integração e articulação da rede representou um dos principais pilares da reforma do sistema de saúde chileno, sendo a definição das garantias Garantias Explícitas em Saúde (GES) para toda a população a principal bandeira8. Entre os elementos chave que viabilizaram a Reforma GES esteve a definição de estratégias de priorização clínica, a vinculação com as sociedades de especialistas e a garantia de financiamento e coordenação ao interior da rede assistencial17.

Além das garantias de acesso, o país promoveu intensa reforma no modelo de APS. Com destacada centralidade na agenda política, o Modelo de Atención Integral de Salud Familiar y Comunitário incorporou explicitamente elementos da abordagem ampliada de Alma Ata, base para a constituição de um sistema de saúde centrado nas pessoas, famílias e comunidades e de cuidados integrais e contínuos18.

Tomando o alcance de cuidados integrados como um dos componentes dos processos de reforma e objetivo precípuo dos sistemas de saúde, o presente artigo analisa aspectos da implementação de redes integradas e estratégias e instrumentos para coordenação do cuidado pela APS no esteio de um sistema segmentado e dual no qual se circunscreve o modelo chileno. Espera-se que este estudo, a partir de um caso específico, contribua para a apreensão de lições que possam ser debatidas e analisadas em contextos similares.

Metodologia

Trata-se de estudo qualitativo de caráter exploratório e descritivo-interpretativo tendo como fontes de informação entrevistas semiestruturadas com informantes-chave, complementadas por análise documental temática e revisão bibliográfica. Conill et al.19 destacam a importância de se analisar a coerência entre as ações nos níveis macro, que incluem as decisões políticas acerca dos direitos, financiamento e macrorregulação; meso ou de gestão com a implementação dos mecanismos operativos que dão suporte às práticas; e no nível microssocial no qual se efetiva o cuidado para a compreensão global da dinâmica dos sistemas de saúde. Neste sentido, foram realizadas entrevistas com policymakers do nível macro (MC) (6), meso (M) (4), micro (MI) (5), além de quatro representantes da academia (Quadro 1). As 19 entrevistas foram realizadas nos respectivos locais de trabalho com duração aproximada de uma hora, gravadas e transcritas.

Quadro 1 Informantes-chave entrevistados – Chile, 2017. 

Nível Função N
Macro - Ministério da Saúde – Minsal Divisão de APS 1 E1
Secretaria de Redes Assistenciais 1 E2
Secretaria de Atenção Especializada 2 E3, E4
Diretoria de APS 1 E5
Gestor da Rede de Urgência 1 E6
Meso – Servicios de Salud Diretoria de Serviço de Saúde 1 E7
Gestão de Redes 1 E8
Representante CIRA 1 E9
Gestão de APS e Hospitais 1 E10
Micro Municípios/Serviços de APS Diretoria de Saúde 1 E11
Sub-Diretoria de Saúde 1 E12
Diretoria CESFAM 1 E13
Diretoria CECOSF 1 E14
Profissional CESFAM 1 E15
Universidade Representantes universidades 4 E16, E17, E18, E19
Total 19

Para a análise documental foram selecionadas as principais leis e marcos regulatórios do processo de reforma do sistema de saúde chileno de 2003 a 2017, sumarizados no Quadro 2.

Quadro 2 Documentos analisados: leis e marco regulatório do sistema de saúde chileno – 2003 a 2017. 

Documento/Norma/Lei Assunto Ano e responsável
Lei do Financiamento Nº 19.888 Institui o aumento do valor do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) para o financiamento de políticas sociais prioritárias como a Reforma da Saúde. 2003, Ministério da Fazenda
Lei da Autoridade Sanitária e Gestão Nº 19.937 Reorganiza as funções do Ministério da Saúde, cria os Servicios de Salud, Fundo Nacional de Saúde, o Instituto Nacional de Saúde Pública do Chile e a Central de Abastecimento do Sistema Nacional de Serviços de Saúde. Divide as funções de regulação (SEREMI) e de provisão (Servicios de Salud). 2004, Ministério da Saúde
Lei Regime de Garantias Explícitas em Saúde (GES) Nº 19.996 Garantia de acesso, qualidade, proteção financeira e oportunidade com determinação de prazo máximo para a concessão das prestações de saúde determinadas. 2004, Ministério da Saúde
Lei das Instituciones de Salud Previsional - ISAPRE Nº 20.015 Regula a liberdade das Isapres para determinar aumento dos preços dos planos e estabelece a segurança dos direitos, custos e benefícios em caso de fechamento; introduz o Fundo de Compensação Solidário entre Isapres; inclui o Auge nos planos privados; evita a discriminação entre beneficiários de um mesmo plano; amplia a atuação da Superintendência de Saúde na fiscalização do cumprimento das normas. 2005, Ministério da Saúde
Lei de Direitos e Deveres em Saúde Nº 20.584 Regula os direitos e deveres das pessoas relativos às ações de atenção à saúde, nos prestadores públicos ou privados. Dentre os principais direitos estão a prestação das ações de promoção, proteção, recuperação e reabilitação, direito à informação e à participação. Define como deveres que o usuário deverá informar-se a respeito do funcionamento e oferta dos serviços de saúde e dos canais de reclamações institucionalizados. 2012, Subsecretaria de Saúde Pública; Ministério da Saúde
Atenção Primária à Saúde
Estatuto da Atenção Primária em Saúde Lei Nº 19.378 Normatiza a administração, financiamento e coordenação da APS, relativos aos estabelecimentos sob responsabilidade das municipalidades, regula o exercício profissional, a carreira funcional e deveres e direitos dos trabalhadores da APS. 1995, Ministério da Saúde
Orientações para a Planificação e Programação em Rede Orienta o planejamento e a programação em rede dos municípios e dos diferentes programas de saúde que compõem a rede sanitária do país e colabora para a integração entre os diferentes níveis de atenção, baseados na lógica das Redes Integradas de Serviços de Saúde (RISS). 2017, Subsecretaria de Redes Assistências/Ministério da Saúde
La Atención Primaria de Salud como puerta de entrada al sistema de salud; posibilidades y límites – el caso de Chile Documento realizado em países latino-americanos para descrever e analisar as principais características da APS bem como as fortalezas e debilidades enfrentadas para consolidação da porta de entrada e eixo estruturante dos sistemas de saúde. 2008, EuroSocial Salud; Fiocruz; Governo do Chile
La Atención Primaria en Chile Descreve e analisa o modelo de atenção integral de saúde, familiar e comunitária desenvolvido no país. 2014, ISAGS

Fonte: Elaboração própria a partir das informações extraídas do sítio eletrônico da Biblioteca del Congreso Nacional de Chile23, 2017; Minsal, 2017; EuroSocial Salud/Fiocruz, 200824; ISAGS, 201425.

Para a produção dos resultados, procedeu-se a análise temática de conteúdo de todo o material com suas respectivas etapas de categorização, descrição e interpretação. Embora tenha sido utilizado o referencial analítico das RISS desenvolvido pela OPAS1 e de estudos que desenham certo modelo lógico para o atributo da coordenação do cuidado20, em uma perspectiva indutiva, buscou-se captar categorias que emergiram da experiência dos sujeitos envolvidos. Buscou-se garantir a qualidade e a validade dos achados triangulando-se as informações da análise documental e bibliográfica à percepção dos diferentes grupos de informantes dos três níveis do sistema de saúde.

A apresentação dos resultados inicia com breve caracterização do sistema de saúde chileno e dos marcos da Atención Integral de Salud Familiar y Comunitária, já aprofundados em outras publicações21,22, destacando-se a percepção dos atores sobre temas que afetam diretamente a discussão sobre as RISS e a coordenação. Em seguida, analisam-se as iniciativas para a integração da rede e os principais instrumentos e estratégias de coordenação do cuidado, desenvolvidas no âmbito do subsistema público.

Contexto – O sistema de saúde chileno

O sistema de saúde chileno é caracterizado por dualidade na modalidade de afiliação à proteção, com possibilidade de escolha pelos trabalhadores formais entre contribuir para seguros privados (Isapres) ou para o seguro público (Fonasa) por meio de contribuições sociais obrigatórios de 7% de seus salários. Todavia, a grande maioria da população é afiliada ao Fonasa e acessa a rede de serviços públicos (Quadro 3).

Quadro 3 Características do sistema de saúde e indicadores sociodemográficos e de saúde selecionados – Chile, 2018. 

Características/Indicadores Descrição
População total (2017) 18.055.000
Organizacão político-administrativa Estado Unitário; 15 regiões; 53 províncias e 346 comunas
Estrutura do sistema de saúde
  • Subsistema público – Sistema Nacional de Serviços de Saúde, que contempla o Ministério da Saúde (MINSAL) e suas Subsecretarias de Saúde Pública e Subsecretaria de Redes Assistenciais; o Fondo Nacional de Salud (Fonasa); as Secretarias Regionais Ministeriais de Saúde (SEREMI) responsáveis pelas ações de saúde pública; e os Servicios de Salud (SS);

  • Subsistema privado composto pelas Isapres.

  • Subsistema das Forças Armadas, regulado pelo Ministério da Defesa - residual

Principal responsável pela formulação da política de saúde Ministério da Saúde
Principal responsável pelo financiamento do sistema de saúde Ministério da Saúde (Fonasa)
Principal responsável pela prestação de serviços de saúde Servicios de Salud e municípios
Cobertura populacional segundo subsistema de saúde (2015) 78,6% Fonasa. Por grupos: A – 24,7; B – 26,5; C – 12,9;
D – 9,9; Sem grupo definido: 4,6;
15,1% Isapres;
2,9 % Forças Armadas
3,1% sem cobertura
Níveis de atenção Atenção primária e atenção hospitalar
Composição Equipes de APS Médicos, enfermeiras, matronas, técnicos paramédicos - responsáveis por até 5.000 mil hab.
Equipes transversais Psicólogos, nutricionistas, assistentes sociais, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e odontólogos.
PIB per capita US$ (valor ppp) 22.727 (2016)
Gasto público em saúde como % do PIB 3,9 (2014)
Gasto privado em saúde como % do PIB 3,9 (2014)
Gasto out of pocket como % do gasto total em saúde 31,5(2014)
% da população com 65 anos ou + 11 (2017)
Taxa global de fecundidade 1,8 (2017)
Esperança de vida ao nascer 79,7 (2017)
Homens 77,2
Mulheres 82,1
Taxa de Mortalidade Infantil por 1000 nascidos vivos 6,9 (2015)
Mortalidade menores de 5 anos por 1000 nascidos vivos 7,9 (2015)
Razão de Mortalidade Materna por 100 mil nascidos vivos 15,5 (2015)
Três principais causas de morte (2014) Doenças do sistema circulatório (29%)
Câncer (25%)
Doenças do sistema respiratório (11%)
Partos hospitalares 99,7 (2015)
Leito Hospitalar (1000 habitantes) 2,1(2015)
Recursos Humanos em Saúde (1000/hab) (2014)
Médicos 2,2
Enfermeiros 2,2
Dentistas 1,0

Fonte: Indicadores Básicos, Situación de Salud en las Américas OPS/OMS, 201729; OECD, 201730; Encuesta Casen, 201531.

O Sistema Nacional de Serviços de Saúde, conforme o Quadro 3, conforma o subsistema público de saúde. A responsabilidade pela formulação e implementação das políticas de saúde é do Ministério da Saúde, que no âmbito da Subsecretaria de Redes Assistenciais estabelece as orientações aos municípios e aos Servicios de Salud26. O sistema público é unitário, centralizado e organizado em 29 SS, com orçamento próprio, responsáveis pela prestação e gestão dos serviços especializados e hospitalares, bem como pelas estratégias de integração da rede. Correspondem aos territórios regionais, nos quais se articulam hospitais e centros de saúde, estes gerenciados pelos municípios. No país, também estão estabelecidas seis macro redes, conformadas por mais de um SS, na qual se prevê resolução integral dos agravos em saúde. Os respectivos diretores dos SS são a autoridade local para a provisão de serviços assistenciais, porém a SEREMI representa a autoridade sanitária.

A principal reforma setorial pós-ditadura foi a definição, em 2004, do Regime de Garantias Explícitas, que garantiu acesso oportuno e proteção financeira para uma lista de agravos específicos (Quadro 2). Antes de sua criação o acesso estava condicionado à proximidade dos hospitais ou julgamento do profissional de saúde na definição de prioridades (E6). A partir do GES foram criados, de forma incremental, protocolos e definidos tempos para atenção oportuna. As garantias explícitas são bem avaliadas pelos usuários, sobretudo pela garantia jurídica do acesso e seguimento do cuidado, com canais específicos, nos serviços de saúde, para “reclamar” as prestações (E6, E10). Não obstante, destacou-se que a lógica GES, do ponto de vista do modelo, reforça a fragmentação e toma como alvo a resolução de uma patologia, sem uma abordagem mais ampla de seus determinantes (E6).

Os beneficiários do sistema público, filiados ao Fonasa, podem eleger duas modalidades de atendimento: Modalidade Institucional prestada pelos estabelecimentos públicos; e Modalidade de Livre Eleição, com acesso direto a estabelecimentos privados conveniados ao Fonasa, mediante copagamento. Neste caso, não há mecanismo de gatekeeper pela APS. Pela possibilidade da livre eleição, muitos usuários utilizam acesso direto ao especialista como primeiro contato, o que fortalece a manutenção de modelos concorrentes. Falas ilustrativas das contradições no uso de serviços de livre eleição são apresentadas no Quadro 4.

Quadro 4 Falas representativas dos atores-chave, Chile, 2017. 

GES
(...) são duas miradas: uma mirada do ponto de vista do que é financiado e a outra mirada mais integral e social da enfermidade e da pessoa dentro de um contexto social. Então há atritos entre a visão do sistema e do GES (E6).
Livre eleição
Se é uma enfermidade que requer muitos custos, usam o sistema público. Pois pelo setor privado sai muito caro. Quando é um problema mais simples, uma dor de cabeça, por exemplo, preferem utilizar a livre eleição, pois caso contrário, têm que ir a um médico geral, fazer uma interconsulta no hospital, que pode demorar muito tempo... Na livre eleição, o pagamento da consulta é viável financeiramente. Mas a hospitalização o custo é muito alto (E1).
(...) por diversas razões, algumas ideológicas: é melhor que não haja comunicação entre setor público e privado, o setor público se sinta ameaçado, poderia incentivar mais uso do privado e menos investimento no público... é um sistema complexo... Outra questão que muitas vezes, o médico da rede pública é o mesmo da rede privada. Então se puder oferecer todos medicamentos na rede privada, por que ficar na rede pública? Por esta razão, não se criam estes incentivos cruzados... (E1).
Segue crescendo o setor privado, tanto ambulatorial quanto hospitalar. Muitas clínicas privadas vivem, vivem da livre eleição do Fonasa. Ou seja, é uma transferência de recursos de seguros públicos a clínica privadas. A isto soma-se que nos hospitais públicos quando não têm capacidade de leitos críticos, também se compram do privado. A própria característica do sistema chileno, um sistema misto, proporciona o incremento do sistema privado (E10).
Proposta de reformas do sistema de saúde
As Isapres se utilizam da seguridade pública, mas coloca condições, ou seja, seleciona clientela. Isto não mudou. No governo Bachelet (2014-2018) houve muito investimentos nos centros de saúde e também em hospitais. Uma reforma que bloqueia a saída de recursos públicos é fundamental. O país está num momento complicado para reformas (E10).
Modelo de Atención Integral de Salud Familiar y Comunitário
(...) um é o tema da família e o outro é o tema da comunidade. E desde 2005 em diante se formou no Ministério fortemente essa visão. Temos visto que esse modelo de saúde integral com ênfase familiar e comunitária com as redes se constituiu no modelo de atenção primária (E5).
Definição do papel da APS
(...) a atenção primária em nosso país está municipalizada, porém administrativamente depende do Ministério. Eles não aplicam qualquer coisa, não inventam qualquer norma. Eles aplicam as normas que são geradas pelo Ministério da Saúde (E2).
Agentes Comunitários de Saúde voluntários
(...) pagar por uma pessoa que faz este trabalho geraria problemas na relação com a própria comunidade. Somos reticentes nessa questão dos agentes (E10).
Concorrência de modelos na APS
O que passa é que o modelo de saúde familiar é contra cultural. Há uma concorrência de concepção. Apesar dos esforços, a população prefere um modelo que não é em rede, de acesso aos especialistas. Quando têm a oportunidade, compram um bônus de atenção na livre-eleição (E10).
Existem muitas pessoas que chegam a morrer na atenção primária porque gastaram todo o dinheiro para pagar um câncer ou o que seja e chegam na atenção primária porque não tem mais possibilidade de gastar com sua enfermidade. O problema do Chile é esse que muitas pessoas não conhecem os benefícios da atenção primária (...) É o mesmo Fonasa que promove a segmentação (E16).
Protagonismo dos hospitais nas RISS
A rede é conformada ao redor dos hospitais, o próprio território não se estruturou com base em características dos centros de saúde, mas pela referência dos hospitais. Para conformar as redes estão os hospitais para os quais se deriva e não outras características do território. Isto também faz com que o modelo tenha uma perspectiva curativa. É uma reflexão feita pela equipe (E10)
O hospital é encarregado de resolver todas as solicitações que chegam da APS. Alguns Servicios de Salud se preocupam que os hospitais trabalhem mais perto dos consultórios (centros de saúde), daí enviam especialistas, junto com os médicos para revisar os casos, mas são experiências pontuais (E1).
Quando nós colocamos uma garantia GES ou uma garantia explícita em saúde no sistema estamos já transpassando a responsabilidade para o hospital (E11).
Consejos de Integración de Redes Asistenciales - CIRA
E aí tem que ter uma boa liderança, um bom gestor para ter a capacidade de poder fazer essas mudanças e que muitas vezes são anticulturais e que tem que romper com o que já estou acostumado a fazer (E6).
O tema das listas de espera, da falta de especialistas não temos o poder para resolução, mas podemos dizer por que estes temas estão aparecendo. Como os Servicios, em alguns casos, se pode organizar melhor e definir estratégias por meio de um melhor diagnóstico. Por isto é importante incorporar a comunidade, na medida em que começa a se dar conta, que a falta de especialista não depende só da vontade, então aqueles que têm maior poder de vocalização, começam a pressionar pela garantia dos recursos (E9).
Centralidade da APS nas redes
Neste país há um sistema público e privado que é segmentado. Não se comunicam entre si, somente através do paciente. E no sistema de saúde a atenção primária segue sendo como o parente pobre. (...) O grande tema é quantos mais hospitais vamos construir no Chile. Quando já se sabe a nível mundial que não são mais hospitais o que necessitamos (E16).
Ainda se entende o trabalho em saúde, em redes como uma coisa bastante vertical. O hospital está aqui a APS, lá. No discurso, o que se coloca é que a APS é a mais importante, mas o que se passa com a maioria dos recursos e dos temas é que estão no hospital. Isto inclui também a valorização social (E9).
Protocolos de Atenção à Saúde
Então, quando criaram esse programa fizeram um protocolo muito bem estabelecido e os pacientes que então tinham problemas crônicos que moram praticamente no hospital começaram a fazer sua reabilitação na atenção primária (E8).
Então, o que a gente faz é protocolizar tudo. E revisar a lista de espera, definir as patologias que têm mais demandas que não são Auge, quem não têm protocolo e define o protocolo para cada patologia (E8).
Compartilhamento de cuidados
Eles não se conhecem. Quando vão do hospital à atenção primária conhecer a realidade deles e a atenção primária ao hospital, conhecer a realidade do hospital que eles estão pensando que o especialista, por exemplo, não quer ver os pacientes, reconhecem os problemas de cada nível. Então isso aí facilita muito o processo (E8).
Liderança para metas de coordenação
Um diretor de um serviço de saúde que diga ‘não tenho nada a ver com a APS’, hoje em dia não é aceitável. Há cinco anos se escutava, hoje em dia não é aceitável. E, portanto, toda a sua equipe. Essa é uma primeira linha de estratégia que é chave (E2).
Referência e contrarreferência
(...) o paciente, quando recebe alta hospitalar, a contrarreferencia não se faz, mesmo os fluxos estando protocolizados. O médico da atenção especializada não faz a contrarreferência. Temos menos de 30% dos pacientes com a contrarreferência. O sistema não apoia a contrarreferência. O seguimento do paciente hospitalizado é irregular (E10).

Fonte: Elaboração própria com base nas entrevistas.

A reforma da APS no país foi iniciada em 2005 com a implementação do Modelo de Atención Integral de Salud Familiar y Comunitário, que caracteriza-se por três princípios: centrado nas pessoas, capaz de prover cuidados integrais e garantir continuidade27. A operação do modelo passou pela transformação dos consultórios e centros de saúde tradicionais em Centros de Salud Familiares (CESFAM) e em Centros de Salud Comunitarios (CECOSF), estruturas menores e com maior proximidade territorial; fortalecimento das equipes básicas; trabalho em rede e intersetorial; gestão local; e participação social26, com valorização das dimensões “família” e “comunidade” na concepção do sistema (E5).

A responsabilidade pela formulação e implementação das políticas de APS é do Ministério da Saúde. Os municípios são autônomos na gestão e prestação, em acordo com o marco legal28. O financiamento central, repassado aos SS e destes para os municípios, representa a quase totalidade do financiamento da APS e confere ao gestor nacional grande poder indutor na condução das redes e da APS (E2). A carteira de serviços da atenção primária é regulada por lei nacional e não há copagamentos.

Há duas estratégias para o atendimento de urgência na APS. Os Serviços de Urgência em Atenção Primária (SAPU) e, a partir de 2014, os Serviços de Atenção Primária de Emergência de Alta Resolução (SARS), de maior resolutividade, com especialistas e apoio diagnóstico. A insuficiente integração dos serviços de urgência e os centros de saúde, embora ambos estejam no âmbito da APS, foi mencionada, assim como iniciativas de integração por meio do monitoramento das entradas de usuários nos serviços de urgência, para evitar que se tornassem uma opção de busca regular de cuidado.

Busca-se fortalecer a equipe de APS (equipos de cabecera) como responsável pela saúde da população, mesmo porque há grande rotatividade de médicos. Nos CESFAM também atuam equipes “transversais”, reforçando as ações de promoção da saúde e prevenção (Quadro 3). Além das equipes de apoio, alguns centros contam com serviços de oftalmologia, que servem de referência para outros, estratégia avaliada positivamente em relação à melhoria do acesso e aumento da comunicação interprofissional.

Em alguns centros de saúde atuam de forma voluntária membros ou lideranças comunitárias com papel semelhante a um “agente comunitário de saúde”. Não há consenso quanto à manutenção do caráter voluntário destes agentes (E10) (Quadro 4). Historicamente, havia no país tradição em agentes voluntários, experiência interrompida na ditadura, e reativada, mais recentemente, com os CESCOF.

O país enfrenta dificuldades para a provisão de médicos (Quadro 3), operando com cerca de 50% de médicos estrangeiros em alguns centros de saúde, segundo informante do Minsal. Em 2016, no país havia 41.623 médicos inscritos na Superintendência de Saúde, dos quais 15% eram estrangeiros, proporção que aumentou nos últimos anos, principalmente com a vinda de profissionais da Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia e Cuba. Cerca de 45% do total de médicos atua no sistema público13. Desde 2008, para atuação no sistema público foi instituída a obrigatoriedade de realização do Exame Médico Nacional.

Os profissionais de saúde são funcionários públicos, com plano de carreiras definido no Estatuto da APS28. Há iniciativas para a formação de especialistas em medicina de família e comunidade, que partem, sobretudo, do Ministério da Saúde. Uma delas é a Etapa de Destinação e Formação para alocação de médicos em zonas remotas com garantia de pontos adicionais em residências (E16). Para a fixação e a atração de profissionais, o gestor nacional realizou uma classificação de risco para as áreas do país, que implica em melhores salários e ajustes per capita.

Para ser atendido em um serviço de APS é necessária inscrição ativa do usuário, que determina o repasse de recursos e o monitoramento das metas. Entrevistados avaliaram que a inscrição ativa e voluntária gera desassistência para o pequeno percentual de população mais vulnerável (em situação de rua, barreiras culturais, educacionais).

A clientela da APS segue sendo a população mais pobre, dos grupos de estrato de renda mais baixos A e B do Fonasa e os idosos. Os grupos C e D (estratos de renda um pouco mais elevados), que incluem os trabalhadores, muitas vezes optam pelos serviços de livre eleição. Além da concorrência pelos recursos, a livre eleição estabelece uma concorrência de modelo assistencial (E10), seja pelas prescrições, não submetidas às normas e protocolos do sistema público; ou pelo agravamento de alguns casos, cujo seguimento se torna inviável pela livre eleição em função do copagamento e da impossibilidade de continuidade na rede pública (E16). Falas ilustrativas são apresentadas no Quadro 4.

Há dois grandes instrumentos de avaliação da APS: as metas sanitárias e o Índice de Atividade da Atenção Primária (IAAPS), o qual gera o repasse de recursos aos municípios. As metas sanitárias são acordadas com as corporações e geram pagamento por desempenho aos profissionais quando cumprem 90%. Há também um mecanismo associado de pagamento por desempenho relacionado à avaliação do “Trato com os usuários”. Os incentivos são definidos conforme prioridades estabelecidas, todavia podem levar ao direcionamento das ações e processo de trabalho ao cumprimento das metas e não aos princípios e objetivos do modelo.

As reformas do sistema de saúde nos últimos anos foram avaliadas, de forma geral, positivamente. Em relação à APS, destacam-se a implementação do Modelo de Atención Integral de Salud Familiar y Comunitário, orientado às pessoas; melhorias na infraestrutura dos centros de saúde; alcance de resultados satisfatórios em relação aos indicadores de saúde; qualidade das guias e protocolos. Não obstante, foi relatado que almeja-se uma “reforma da reforma”, discussão cada vez mais presente na agenda dos distintos atores, com criação de vários espaços de participação e mobilização, a fim de promover “valor social” em torno da APS.

Redes Integradas de Serviços de Saúde

A reforma da APS seguiu pari passu a medidas para a construção de redes assistenciais integradas, operadas pelos Servicios de Salud. Desde o Estatuto da Atenção Primária28 está prevista a elaboração pelo gestor nacional de um marco normativo para a programação e o planejamento das redes. Entre os compromissos de gestão firmados entre Minsal e SS no período 2014-2017, destaca-se o objetivo de integrar os serviços de saúde em rede nas áreas assistencial, de governança, financeira e de recursos humanos. As propostas mais recentes são fortemente influenciadas pela proposição opasiana das Redes Integradas de Serviços de Saúde32.

O território das redes são os Servicios de Salud, por meio da figura do gestor de redes, ao qual compete a definição da referência e contrarreferência para a garantia da continuidade assistencial, monitoramento das metas e promoção de coordenação entre APS e atenção especializada, estas últimas consideradas as mais desafiantes (E10).

Os SS, a depender da população adscrita podem dividir-se em microrredes, que se organizam ao redor de seus respectivos hospitais de referência, em sua grande maioria, públicos. O Minsal também possui uma central nacional de leitos, com serviços nacionais de referência de alta complexidade (Institutos).

Há centralidade dos hospitais no desenho das redes e microrredes, que parecem se organizar ao redor destas instituições, que inclusive protagonizam a proposição de estratégias para a integração da rede, mais desenvolvidas a depender do porte da instituição hospitalar (E1; E10, E11, Quadro 4). Tal arranjo ratifica um modelo de atenção à saúde de forte cunho curativo, do ponto de vista simbólico e financeiro (E10). O hospital recebe todas as referências da APS, chamadas “interconsultas”, e se responsabiliza por resolvê-las e manejar as listas de espera (E1).

A partir de 2002, foram criados os Consejos de Integración de Redes Asistenciales (CIRA) (Quadro 5) com o papel de contribuir para a articulação dos atores, diagnóstico e propostas de trabalho para a integração da rede. Alguns Diretores de SS ampliaram a participação e integraram representantes da sociedade civil e lideranças comunitárias neste conselho. Contudo, não há participação da SEREMI, autoridade sanitária do território.

Quadro 5 Integração da rede e estratégias e instrumentos para a coordenação do cuidado, Chile, 2017. 

Estratégia/Instrumento Função Avaliação dos atores
Consejos de Integración de Redes Asistenciales (CIRA) Instância de caráter assessor e consultivo para articulação interinstitucional das redes assistenciais com representantes dos setores público e privado e gestores de todos os níveis do sistema de saúde. Espaço estratégico, que tem que avançar no caráter mais propositivo e nas discussões sobre o modelo assistencial e não apenas ser pautado pelo tema das listas de espera.
Mapa de derivação Esquema com a definição dos fluxos e referências de acordo com a patologia e localização geográfica, definidos pelos SS Positiva pois estabelecem os fluxos e a arquitetura das redes e são amplamente conhecidos pelas equipes. A rotatividade de profissionais na APS exige constante processo de atualização acerca dos mapas.
Monitoramento das filas de espera para atenção especializada e hospitalar (Não-GES) Criação de repositório nacional de filas de espera, alimentado pelos municípios e monitorado pelos SS e pelo Minsal Promoveu um movimento em todo o sistema de saúde para a análise das listas e motivou a implementação de critérios para definição de prioridades clínicas também para os usuários não GES.
Monitoramento das referências Monitoramento dos percentuais de referência entre APS e atenção especializada Recomendação abaixo dos 10%, com média de 7 a 8%, considerada satisfatória.
Médico gestor da demanda Manejo das prioridades clínicas por médicos das equipes de APS com base nos protocolos, fluxos e mapas de derivação Satisfatória para qualificar as referências da APS e fortalecer as atividades de regulação no nível micro.
Protocolos de atenção em saúde Adaptações das recomendações e orientações das diretrizes clínicas com definição dos fluxos de atendimento e recomendações de acordo com o perfil epidemiológico da população e dos recursos disponíveis. Valorado como a mais sólida das inciativas do Minsal para garantia do cuidado e definição das trajetórias assistenciais. Pode gerar certos graus de desmotivação pela excessiva normatização do trabalho na APS.
Telemedicina Estratégias de teledermatologia, teleradiologia, tele-eletrocardiograma, tele-oftalmologia e experiências mais recentes na atenção de urgência hospitalar Experiências mais incipientes de uso da telemedicina para segunda opinião ou consultoria para a APS. Mais restrita aos hospitais.
Compartilhamento de cuidados e capacitações entre APS e hospital Compartilhamento do cuidado de crianças com problemas crônicos entre hospitais e CESFAM com equipes de reabilitação. Capacitação para pequenas urgências promovidas por profissionais dos hospitais para a APS Consideradas as mais potentes para melhorar a coordenação do cuidado. Lideradas por alguns hospitais, avaliou-se que estas experiências não são generalizadas e funcionam melhor em hospitais de médio porte.
Liderança de gestores Liderança e envolvimento da direção dos SS e de alguns hospitais para definição das metas de coordenação Elemento estratégico para disparar processos para a melhor integração da rede e coordenação do cuidado. Atualmente indispensável na agenda de qualquer gestor de SS.
Guias de referência e contrarreferência Guia de referência manual para compartilhamento de informação clínica entre APS e hospitais Pouco efetiva, pois a troca de informação clínica fica sob responsabilidade do usuário. A contrarreferência é irregular e pouco usual.
Sistemas de referência e contrarreferência informatizadas Sistema informatizado para compartilhamento de informação clínica entre APS e hospitais Experiência ainda incipiente, implementada em algumas áreas e hospitais.

Fonte: Elaboração própria, construída a partir das entrevistas e análise documental.

O desenho dos CIRA é considerado estratégico, não obstante, alguns conselhos teriam assumido um papel burocrático, tornando-se um espaço informativo. Um maior empoderamento do conselho é dependente da liderança exercida pelo gestor de redes (E6) e da busca de maior legitimidade por meio da elaboração de planos de trabalho com propostas concretas (E9). Ainda que não tenha poder decisório e de execução, o CIRA vem se constituindo como importante dispositivo para fortalecer a participação social (Quadro 4).

Afirmou-se categoricamente que as listas de espera foi o tema mais discutido pelos CIRA, assim como o processo de referência e contrarreferência. Identificaram-se avanços na integração dos dois mundos – APS e hospitais – mas que o tema da lista de espera prevalece, com pouco espaço para a discussão do modelo assistencial. Em áreas cuja referência são grandes hospitais (com mais de 400 leitos), a integração é mais difícil, pois estes serviços apresentariam uma dinâmica mais autônoma, que não permite visualizar a importância da APS. A tensão pelo cumprimento dos tempos de espera que incide sobre os hospitais também colabora para que funcionem de forma autocentrada, com pouca capacidade para atuação sistêmica.

Em relação à centralidade da APS nas redes, destacou-se que faz parte da retórica ministerial, mas não se apoia na realidade, ainda que o fortalecimento do modelo de saúde familiar tenha contribuído para a mudança de paradigma do modelo assistencial. As falas do Quadro 4 ratificam fortemente esta assertiva.

Estratégias e instrumentos para a coordenação do cuidado

Os Servicios de Salud estabelecem os “mapas de derivação” (Quadro 5). Para o encaminhamento dos pacientes há um sistema informatizado no qual é possível desde o centro de saúde localizar a oferta no hospital de referência, ainda que a coordenação e o seguimento dos usuários pela APS não aconteça de forma regular.

A rotatividade dos profissionais, sobretudo médicos na APS, implica constantes esforços de capacitação sobre o funcionamento da rede, mapa de derivação, fluxos e protocolos clínicos. Tecnologias de Informação e Comunicação buscam minimizar problemas relativos à rotatividade, com a disponibilização das guias de prática clínica e mapas de derivação nos computadores dos consultórios, além de proporcionar coordenação informacional.

As filas de espera não GES passaram a ser monitoradas de forma mais sistemática por meio da criação de um repositório nacional, com informações dos tempos de espera, alimentados e monitorados pelos SS. São reconhecidas filas para especialidades em todo território, o que torna necessária a definição de prioridades clínicas, em geral, realizadas pelos hospitais.

Para a gestão das duas filas (GES e não GES) há equipes e tempos diferenciados (maiores não GES), o que prejudica a visão do conjunto da assistência. Com o passar do tempo e as pressões políticas, nos diferentes governos, foram sendo incorporadas à cobertura GES patologias não prioritárias e prestações sem base em evidências científicas. Além disso, o paciente GES representa o maior percentual de financiamento dos hospitais.

O Minsal e os SS monitoram os percentuais de referência da APS, que são considerados satisfatórios (Quadro 5). Em alguns lugares com pior desempenho, chegaria a 15%. O “médico gestor da demanda” na APS foi uma iniciativa do gestor nacional para qualificação das referências. São médicos que já atuavam nas equipes e que recebem remuneração adicional para avaliação das referências da equipe.

Os protocolos de atenção em saúde foram avaliados como o principal instrumento para garantir a coordenação do cuidado, principalmente por estabelecer o fluxo de referência e contrarreferência para a garantia de acesso e coordenação das patologias não GES (E8) e definição das funções de cada nível do sistema. Um efeito adverso do alto grau de normatização seria uma certa “rotina”, repetição, que caracterizaria o trabalho na APS, tornando-o pouco atraente.

Iniciativas de telemedicina também são adotadas no país a cargo do Minsal (Quadro 5), como na atenção neurológica de urgência. Mas também identificam-se iniciativas nacionais e locais, promovidas pelos hospitais de referência, polo de desenvolvimento e incorporação de tecnologias para o sistema de saúde. Outra iniciativa, liderada por alguns hospitais, é o compartilhamento do cuidado com os CESFAM com reabilitação, por exemplo, de crianças com problemas crônicos e capacitação para pequenas urgências. Este tipo de ação está institucionalizada e incluída no plano de capacitação pactuado (E8) (Quadro 5).

A liderança de gestores para definição das metas de coordenação, sobretudo da direção dos SS e de alguns hospitais, foi mencionada como um elemento-chave para a coordenação (E2).

As guias de referência e contrarreferência são instrumentos considerados frágeis, sobretudo por não serem informatizadas na maioria dos casos. Em alguns lugares há uma ficha compartilhada, mas são poucos. O comum é a volta da informação pelo próprio usuário. Entrevistados reconhecem a insuficiente contrarreferência como um entrave à coordenação do cuidado (E10). Foram relatados avanços na padronização de um prontuário clínico único, que se comunique por meio dos sistemas informatizados.

Considerações finais

Este estudo buscou analisar aspectos da experiência de implementação das redes integradas e instrumentos de coordenação do cuidado no sistema de saúde chileno, destacando-se a reforma e o fortalecimento da APS, que representa uma das estratégias mais potentes para o alcance de um continuum assistencial33.

Inicialmente, pretende-se retomar a configuração do sistema chileno, não para debater a já conhecida segmentação, reconhecida causa de fragmentação1, mas para destacar dois aspectos. As tentativas de estabelecer alguma regulação do setor privado baixo os princípios da seguridade social, no último mandato presidencial, findo em março de 2018, não obtiveram êxito. A crise política do próprio governo (2014/2015) criou cenário ainda mais hostil a mudanças mais estruturais na configuração do sistema de saúde34. Assim, a discussão das redes integradas e coordenação circunscrevem-se ao sistema público de saúde, mas não enfrenta a ausência de integração e coordenação entre subsistemas9.

Um segundo aspecto refere-se às camadas de fragmentação no interior do subsistema público. Muito se destacou a possibilidade de livre-eleição para usuários do Fonasa, que dialoga tanto com a manutenção de algum grau de liberdade de escolha, quanto com certa acomodação da demanda por consultas especializadas. Nesse sentido, debate-se a inadequação deste mecanismo pela drenagem de recursos públicos para a rede privada e pela introdução de mais um grau de fragmentação, inclusive simbólica. Usuários fazem um mix assistencial para consultas ambulatoriais, em um modelo que se distancia da perspectiva da APS renovada. Não menos importante, é a postergação do cuidado em estágios precoces de adoecimento, pelas tentativas de resolução dentro da livre-eleição até o esgotamento dos recursos financeiros próprios.

Nesta mesma perspectiva, outra camada de fragmentação reveste a principal ação reformista – as garantias explícitas. Análises sobre os resultados do GES podem ser realizadas desde variados aspectos35,36. Do ponto de vista da integração da rede, fragiliza a organização do sistema pela constituição e manejo de duas filas de espera, com atributos diferenciados. Embora também garanta acesso oportuno para patologias graves, não atua sobre os determinantes do processo de adoecimento.

Em relação ao modelo assistencial, os resultados foram sinérgicos na direção do protagonismo dos hospitais na estruturação das redes. Por mais que no discurso oficial a direção do sistema deva se dar a partir do Modelo de Atención Integral de Salud Familiar y Comunitario, as redes orbitam ao redor de grandes e potentes hospitais públicos, de onde parecem despontar as principais iniciativas de integração e coordenação com a APS, que embora promissoras, ratificam a hegemonia do paradigma hospitalocêntrico.

A análise da experiência chilena demonstra a necessidade de avanços no protagonismo da APS, contudo, destaca-se de forma positiva o incremento do setor público no país. Experiências com potencial para qualificar a atenção primária como apoio e presença de serviços especializados de alta demanda nos centros de saúde e o estruturado sistema de avaliação de desempenho foram estratégias mencionadas. Os serviços de urgência na APS apresentam potencial para o aumento de resolutividade e ampliação do acesso, a depender do grau de integração horizontal. A resolutividade da APS, conforme destaca Vergara37, só opera de forma abrangente se estiver conectada à rede.

Na análise das estratégias para a conformação das RISS, o gestor nacional configura-se como o principal ator, com base na proposição da OPAS1, e os Servicios de Salud como responsável pela organização e implementação. Nos SS se identifica a autoridade responsável pela arquitetura e liderança das redes, elementos que a literatura aponta como necessários para a coordenação do cuidado1. Não é uma função das equipes de APS ou de gestores locais desenhar o caminhar dos usuários e pactuar a oferta de serviços como observado em outros contextos38, ainda que tempos de espera elevados e problemas de coordenação do cuidado permanecessem presentes.

A falta de integração entre assistência e saúde pública, sob responsabilidade da SEREMI, constitui-se outro entrave à efetivação das redes1,39. Os CIRAs foram avaliados como espaços potencialmente inovadores para a cogestão das redes, fortalecimento da participação social na saúde e criação de uma cultura organizacional favorável à integração, particularmente importante em um contexto cujas diretrizes do sistema apresentam alto grau de centralização como no caso chileno.

Face à sistemática presença no discurso dos atores e relevância no processo de reforma do sistema chileno, destaca-se o tema da magnitude dos tempos de espera, problema frequente em sistemas públicos e privados de saúde19. O GES enfrenta este desafio, alinhado à concepção de acesso oportuno para patologias específicas. Não menos importante é sublinhar as disputas e os interesses de ordem econômica, política e corporativa que envolvem o tema, em função do apelo eleitoral19, como se observou nas pressões para ampliação da lista GES. O gerenciamento de listas não GES vem sendo aprimorado em período mais recente.

Não se observou a implementação de novas estratégias de coordenação, mas a institucionalização de instrumentos já amplamente reconhecidos como capazes de otimizar este atributo20,40. Protocolos parecem ser a estratégia mais consolidada, que somados aos rígidos sistemas de avaliação podem minimizar o potencial criativo das equipes de APS ou mesmo gerar efeitos de seletividade, deixando em segundo plano o atendimento às diversidades regionais e territoriais.

Por fim, é necessário destacar que as estratégias de enfrentamento da fragmentação do cuidado realizam-se em contextos específicos2, sendo a decisão de quais instrumentos adotar dependente dos problemas identificados e do grau de desenvolvimento das iniciativas em curso. Foi nesta perspectiva que o presente artigo procurou contribuir. A partir de uma experiência singular, buscou-se analisar elementos do contexto mais amplo do sistema de saúde e da APS no Chile que, de certa forma, condicionam os avanços e os impasses no desenvolvimento das estratégias de integração da rede e coordenação do cuidado na difícil travessia dos “cuidados fragmentados” para “cuidados integrados”.

REFERÊNCIAS

1. Organización Panamericana de la Salud (OPAS). La Renovación de la Atención Primaria de Salud en las Américas. Redes Integradas de Servicios de Salud. Conceptos, Opciones de Política y Hoja de Ruta para su Implementación en las Américas. Washington: OPAS; 2010.
2. European Union. Tools and methodologies to assess integrated care in Europe. Report by the Expert Group on Health Systems Performance Assessment. Luxembourg: Publications Office of the European Union; 2017.
3. Vázquez ML, Vargas I, Unger JP, De Paepe P, Mogollón-Pérez AS, Samico I, Albuquerque P, Eguiguren P, Cisneros AI, Rovere M, Bertolotto F. Evaluating the effectiveness of care integration strategies in different healthcare systems in Latin America: the EQUITY-LA II quasiexperimental study protocol. BMJ Open 2015; 5(7):e007037.
4. Vargas I, Mogollón-Pérez AS, De Paepe P, Ferreira da Silva MR, Unger JP, Vázquez ML. Barriers to healthcare coordination in marketbased and decentralized public health systems: a qualitative study in healthcare networks of Colombia and Brazil. Health Policy Plan 2016; 31(6):736-748.
5. Núñez RT, Lorenzo IV, Navarrete MLV. La coordinación entre niveles asistenciales: una sistematización de sus instrumentos y medidas. Gac Sanit [Internet]. 2006; 20(6):485-495. [acessado 2017 Dez 22]. Disponível em:
6. Almeida PF, Santos AM. Primary Health Care: care coordinator in regionalized networks? Rev Saude Publica 2016; 50:80.
7. Boerma WGW. Coordenação e integração em atenção primária europeia. In: Saltman RB, Rico A, Boerma WGW, organizadores. Atenção Primária conduzindo as redes de atenção à saúde: reforma organizacional na atenção primária europeia. Berkshire: Open University Press; 2010. p. 25-47.
8. Barrios OA, Devia OT, García AF, Hein AA, Herrera OA. Gobierno de redes asistenciales: evaluación de los Consejos Integradores de la Red Asistencial (CIRA) en el contexto de la reforma del sector salud en Chile. Salud Pública de México 2013; 55(6):650-658.
9. Haggerty JL, Yavich N, Báscolo EP, Grupo de Consenso sobre un Marco de Evaluación de la Atención Primaria en América Latina. Un marco de evaluación de la atención primaria de salud en América Latina. Rev Panam Salud Publica 2009; 26(5):377-384.
10. Meller P. Un siglo de economia política chilena (1890-1990). Santiago de Chile: Uqbar editores; 2016.
11. Labra ME. La reinvención neoliberal de la inequidad en Chile. El caso de la salud. Cad Saude Publica 2002; 18(4):1041-1052.
12. Goic AG. El Sistema de Salud de Chile: una tarea pendiente. Rev. Med. Chile 2015; 143:774-786.
13. Clínicas de Chile. Dimensionamiento del sector de salud privado en Chile. Actualización a cifras año 2016. Santiago de Chile: Clínicas de Chile A.G.; 2016.
14. Bossert TJ, Leisewitz T. Innovation and change in the Chilean Health System. N Engl J Med 2016; 374:1.
15. Cid C, Uthoff A. La reforma a la salud pendiente en Chile: reflexiones en torno a una propuesta de transformación del sistema. Rev Panam Salud Publica 2017; 41:e170.
16. Koch K, Johanna K, Pedraza CC, Schmid A. Out-of-pocket expenditure and financial protection in the Chilean health care system: A systematic review. Health Policy 2017; (121):481-494.
17. Urriola C, Infante A, Aguilera I, Ormeño H. La reforma de salud chilena a diez años de su implementación. Salud Publica Mex 2016; 58(5):514-521.
18. Vega Romero R, Acosta Ramírez N. Mapeo y analisis de los modelos de atención primária en salud en los países de América del Sur. Mapelo de la APS en Chile. Rio de Janeiro: Isags, 2014. [acessado 2018 Jan 2]. Disponível em:
19. Conill EM, Giovanella L, Almeida PF. Listas de espera em sistemas públicos: da expansão da oferta para um acesso oportuno? Considerações a partir do Sistema Nacional de Saúde espanhol. Cien Saude Colet 2011; 16(6):2783-2794.
20. McDonald KM, Schultz E, Albin L, Pineda N, Lonhart J, Sundaram V, Smith-Spangler C, Brustrom J, Malcolm E, Rohn L, Davies S. Care Coordination Atlas Version 4. Rockville: Agency for Healthcare Research and Quality; 2014.
21. Giovanella L, Ruiz G, Feo O, Tobar S, Faria M. Sistemas de salud en América del Sur. In: Giovanella L, Feo O, Faria M, Tobar S. Sistemas de salud en Suramérica: desafíos para la universalidad, la integralidad y la equidad. Rio de Janeiro: ISAGS; 2012. p. 21-69.
22. Giovanella L, organizadora. Atención primaria de salud em Suramérica. Rio de Janeiro: ISAGS; 2015.
23. Biblioteca del Congreso Nacional de Chile. [acessado 2017 Dez 28]. Disponível em:
24. EuroSocial Salud; Fiocruz; Governo do Chile. La Atención Primaria de Salud como puerta de entrada al sistema de salud; posibilidades y límites – el caso de Chile. Rio de Janeiro: Eurosocial Salud; 2008.
25. Instituto Sulamericano de Governo em Saúde (ISAGS). Rio de Janeiro, 2014. [acessado 2017 Dez 2]. Disponível em:
26. Vega Romero R, Acosta Ramírez N. La atención primaria em sistemas de salud basados en el aseguramiento: El caso de Chile, Colombia y Perú. In: Giovanella L, organizadora. Atención Primaria de Salud en Suramérica. Rio de Janeiro: ISAGS; 2015. p. 195-254.
27. Chile. Ministerio de Salud (MS). Modelo de atención integral en salud. Santiago de Chile: MS; 2005. [Serie cuadernos Modelo de Atención Nº1].
28. Chile. Ministerio de Salud (MS). Estatuto de la Atención Primaria en Salud. Lei Nº19378. Establece Estatuto de Atención Primaria de Salud Municipal. Chile: MS; 1995. [acessado 2017 Dez 28]. Disponível em:
29. Organización Panamericana de la Salud (OPAS), Organización Mundial de la Salud (OMS). Indicadores Básicos de Salud. Situación de salud en las Américas. Montevideo: OPAS/OMS; 2017.
30. Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD). Health at a glance 2017: OECD indicators. Paris: OECD Publishing; 2017.
31. Chile. Ministerio de Desarrollo Social. Encuesta Casen. Encuesta de caracterización socioeconómica Nacional. Santiago de Chile, 2015. [acessado 2018 Jan 3]. Disponível em:
32. Chile. Ministerio de Salud (MS). Orientaciones para la Planificación y Programación en Red. Santiago de Chile: MS; 2017.
33. Bodenheimer T. Coordinating Care - a Perilous Journey through the Health Care System. N Engl J Med 2008; 358(10):1064-1071.
34. Tetelboin C. Tendencias y contratendencias en el sistema de salud de Chile en el marco de la situación regional. In: Tetelboin C, Laurell C, organizadores. O direito universal à saúde: uma análise agenda latino-americana e controle. Buenos Aires: CLACSO; 2015. p. 75-97.
35. Parada M, Reyes C, Cuevas K, Ávila A, López P, Carrasco V, Moraga F, González JF, Riquelme P, Llancapichun L. Transformaciones del Sistema de Salud Público post Reforma AUGE-GES en Valparaíso. Rev Chil Salud Pública 2014; 18(2):127-139.
36. Frenz P, Delgado I, Kaufman JS, Harper S. Achieving effective universal health coverage with equity: evidence from Chile. Health Policy Plan 2014; 29(6):717-731.
37. Vergara IM. Propuesta de reformas a los prestadores públicos de servicios médicos en Chile: “fortaleciendo la opción pública”. Rev Med Chile 2015; 143(2):237-243.
38. Vargas I, Mogollón-Pérez AS, Unger JP, Silva MRF, De Paepe P, Vázquez ML. Regional-based Integrated Healthcare Network policy in Brazil: from formulation to practice. Health Policy and Planning 2015; 30(6):705-717.
39. Almeida PF, Fausto MCR, Giovanella L. Fortalecimento da atenção primária à saúde: estratégia para potencializar a coordenação dos cuidados. Rev Panam Salud Publica 2011; 29(2):84-95.
40. Aller MB, Vargas I, Coderch J, Calero S, Cots F, Abizanda M, Farré J, Llopart JR, Colomés L, Vázquez ML. Development and testing of indicators to measure coordination of clinical information and management across levels of care. BMC Health Serv Res 2015; 15:323.