versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.22 no.4 Rio de Janeiro 2018 Epub 14-Nov-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0237
As diferentes abordagens que representam as organizações sociais no campo da Saúde têm sido amplamente discutidas no campo da Saúde, observando o contexto das práticas complexas nas quais os profissionais operam as tecnologias em Saúde. A Metodologia de Formação e Apoio Paidéia, para a cogestão do trabalho e das redes de saúde, operam a partir da práxis, como uma possibilidade democrática de compartilhamento de poder em espaços coletivos.1,2 Trata-se de uma forma de construir condições para a reflexão dialógica a partir de concepções de mundo distintas. Propõe o aumento da capacidade de compreensão e intervenção dos sujeitos sobre um determinado contexto, refletindo sobre os outros e sobre si mesmos, com vistas à democracia e ao bem-estar social.1-4
No envolvimento entre os segmentos de ensino e serviço, no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS), considera-se o Apoio Paidéia uma excelente estratégia de cogestão do espaço intercessor entre os mundos do fazer e do saber em Saúde, nesse nível assistencial.2 Essa metodologia aumenta a capacidade do sujeito para compreender e agir a partir de uma rede de interdependências, colocando o conflito em análise e pactuando a construção de propostas interdisciplinares, a fim de qualificar a formação e o desenvolvimento profissional na área da Saúde.1,5 Ao tornar possível a articulação entre teoria e prática, a integração ensino-serviço coloca-se a serviço da reflexão para transformação da realidade, mobilizando um esforço permanente de percepção crítica sobre o mundo, com vistas à solução adequada e ao compromisso com a resolução de problemas (educação problematizadora).6,7
No Brasil, a participação dos usuários em instâncias de decisão na área da Saúde é um direito garantido por lei. Mediante ação denominada "controle social", ela é exercida, em especial, em conselhos gestores, os quais recebem influência de fatores socioculturais e históricos, como a falta de tradição participativa e fragilidades na cultura cívica e política.8,9 Espera-se que esses espaços, com representações dos diferentes atores sociais envolvidos, possam operar como lócus de compartilhamento do poder decisório, mediante diálogo e responsabilidade geral. No âmbito da reorientação do processo formativo em Saúde, pesquisadores8 defendem o "Prisma da Formação em Saúde" como uma figura representativa da construção e gestão da educação no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). O ideário de tal figura pressupõe que cada um dos atores envolvidos no processo formativo estabeleça movimentos específicos, mediante uma interação inovadora entre interlocutores, com diferentes pontos de vista e compreensões, refletindo acerca de diferentes possibilidades, a partir das conexões estabelecidas (como se fosse um prisma, cuja luz branca que nele penetra reflete de forma multicolorida). Isso envolve, necessariamente, o diálogo entre representações do controle social, da atenção, da gestão e do ensino em Saúde, considerando os desdobramentos desses segmentos (estudantes, professores, trabalhadores, profissionais, gestores, apoiadores, entre outros). No Prisma da Formação, os níveis de envolvimento dos diferentes sujeitos das instâncias envolvidas são determinantes para a formação de redes de atenção, nas quais os atores envolvidos se impliquem e constituam relações de integração entre o ensino e o serviço.5,8
Nesse contexto, o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde), criado em 2005, por meio da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, do Ministério da Saúde (MS), em parceria com a Secretaria de Educação Superior, do Ministério da Educação, teve como propósito fomentar a articulação entre instituições de ensino e serviços de saúde, a fim de realizar o planejamento e o desenvolvimento de práticas de saúde coerentes com a realidade loco-regional.5,10 Nessa realidade, estão inseridos os segmentos educativos e assistenciais, o que contribui para a formação de profissionais, alinhada às diretrizes do SUS.5 Para tanto, o Pró-Saúde envolveu professores e estudantes de Instituições de Ensino Superior (IES) e profissionais dos serviços de saúde locais, considerando a interação ensino-serviço como elemento fundamental no desenvolvimento de estratégias que superem os desafios organizacionais da formação profissional em Saúde.5,10,11
O Pró-Saúde instituiu, em nível nacional, uma Comissão Executiva e uma Comissão Executora, além de um Conselho Consultivo para acompanhamento da implementação dos projetos, incluindo representantes governamentais dos órgãos profissionais, dos dirigentes das instituições de ensino e das entidades estudantis. Em nível estadual, além dessas três instâncias, foi prevista a criação da Comissão de Acompanhamento e, em nível municipal, a Comissão de Gestão e Acompanhamento Local, para monitorar e avaliar os projetos no território. Esta inclui um coordenador do projeto e as seguintes representações: do gestor municipal de saúde, do Conselho Municipal de Saúde (CMS), dos profissionais do SUS, dos educadores e dos estudantes dos cursos da IES executora que participa do projeto.5
A partir do panorama apresentado, questiona-se: como acontece a gestão do Pró-Saúde em instâncias que são espaços de encontro entre os atores que representam o ensino e o serviço em Saúde?
O presente estudo objetiva analisar a gestão do Pró-Saúde a partir de um espaço dialógico intersetorial de integração ensino-serviço. Buscou-se a compreensão dos representantes de diferentes segmentos que compõem essas instâncias sobre a integração ensino serviço, suas potencialidades e fragilidades, tendo por base esse movimento democrático.
Com o debate, pretende-se contribuir para a ampliação do construto teórico e da aplicabilidade da integração ensino-serviço como práxis de gestão,2 tomando por base a organização da rede de serviços do SUS e a APS como coordenadora.
Trata-se de um Estudo de Caso,12 desenvolvido com representantes dos segmentos educação (ensino) e trabalho (serviço), cujos atores e suas expressões conformam o Prisma da Formação em Saúde, em instâncias intersetoriais de gestão dos processos de reorientação da formação na área da saúde, existentes na Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), localizada no Oeste do estado de Santa Catarina (SC), Sul do Brasil. O Pró-Saúde da Unochpecó desenvolve-se numa parceria com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e a Gerência Regional de Saúde (GERSA) de Chapecó/SC. Tais projetos tiveram como fóruns gestores de acompanhamento local o Comitê Gestor Local (CGL) e a Comissão Coordenadora Geral (CCG).10
Coerente com as diretrizes do Programa Pró-Saúde, o CGL era, na época, composto por 16 integrantes titulares, representantes dos segmentos de gestão, atenção, ensino e controle social. A CCG era composta por representantes do ensino e do serviço, contando com 23 integrantes titulares. Essas estruturas se reuniam em assembleias mensais, majoritariamente na sede da IES, constituindo-se em espaços de planejamento e acompanhamento da implementação das atividades propostas pelo Projeto. Eram encontros para relatar dificuldades, perceber possibilidades, revelar iniciativas, tomar decisões e definir encaminhamentos sobre programas relacionados aos dispositivos interministeriais.5
Para a produção e registro das informações, foram realizadas entrevistas focadas5,10,12 e observação direta, entre os meses de outubro de 2012 e fevereiro de 2013. As entrevistas foram realizadas com seis participantes (três representantes do ensino e três representantes do serviço), escolhidos, intencionalmente, pelos pesquisadores. As perguntas focaram em como os membros das instâncias intersetoriais de gestão das ações de reorientação da formação percebiam a integração ensino-serviço, a partir da existência desse espaço de discussão; as potencialidades e as fragilidades desta integração, na perspectiva do diálogo intersetorial. Foi utilizado o critério de saturação dos dados13 quando se observou a caracterização de um determinado padrão nas falas que expressava a suficiência de informações para o estudo e, então, era suspensa a produção das informações.5,10
Na observação direta, o estudo contou com 25 participantes, identificados no período de coleta de informações como participantes nas instâncias, e que estavam presentes nos momentos de observação das reuniões. Foram critérios de inclusão: ter participado de uma das instâncias intersetoriais de gestão e representar um dos segmentos de ensino ou serviço, no período de 2006 a 2012. Foram excluídas do grupo as pessoas que estavam aposentadas ou afastadas (licença médica, férias, entre outras) no período da coleta das informações.5,10
Realizaram-se seis momentos de observação de reuniões das instâncias, totalizando 18 horas, registrados em Diário de Campo. Esse instrumento de observação pré-elaborado continha: Notas de Observação Descritivas (NOD), pelas quais foram registrados aspectos relevantes de organização, planejamento e dinâmica das reuniões e Notas de Observação Reflexivas (NOR), que continham os processos de diálogo, participação, conflitos e outras observações do entrevistador. Cumpre destacar que, pela dinâmica e número de participantes presentes (média de 12), não houve necessidade de mais de um observador.5,10
As informações foram tratadas a partir da análise de dados qualitativos,13 sendo definidas categorias: a) espaço de ação-reflexão-ação: vigília do cotidiano e mobilização dos sujeitos; b) lugar de exposição de pontos de vista e alteridade: reconhecendo papéis. Posteriormente, as informações foram discutidas sob a ótica da Metodologia de Formação e do Apoio Paidéia, também conhecida como Método da Roda, proposta por Campos e colaboradores.1-4
A formação e Apoio Paidéia trata-se de uma concepção teórico-metodológica, cujo propósito busca favorecer a democratização da gestão nas organizações, por meio da formação de coletivos organizados, incentivando a participação dos sujeitos na gestão dos seus processos de trabalho. Nessa lógica, almeja-se a reforma das organizações de saúde com base na cogestão, ou seja, no estabelecimento de relações dialógicas, com compartilhamento de conhecimentos e de poder.1-3,14 Essa proposta critica o modelo de referência e contra-referência, pois considera esse tipo de relação vertical, hierarquizada, burocrática e pouco dinâmica, na qual se acentua a diferença de autoridade entre quem encaminha um caso e quem o recebe. Esta lógica, vivenciada em diferentes contextos de saúde,14,15 implica a indissolubilidade da atenção e da gestão e pondera a respeito da necessidade do apoio à gestão como uma face da função de apoio, também presente no Apoio Paidéia. O apoio, como dispositivo de democratização, busca a participação de gestores, trabalhadores e usuários na formulação, execução, avaliação do trabalho em Saúde, promovendo gestão democrática do serviço.
Destaca-se que foram atendidos os aspectos éticos, como a aquisição da permissão das instâncias envolvidas, bem como o parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sob o número 242.966/2012, atendendo aos critérios da Resolução nº 466/2012.5,10 Após apresentação formal dos objetivos do estudo, os convidados que aceitaram participar do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A fim de garantir o anonimato, os participantes foram identificados por números correspondentes às entrevistas, seguidos de letra do segmento representado (Ensino - E; Serviço - S), como, por exemplo: entrevista nº 01 - E; entrevista nº 02 - S, e assim sucessivamente.
No momento da produção das informações, os participantes das instâncias, em sua maioria, eram mulheres, oriundas de diferentes áreas de formação em Saúde e com tempo médio de envolvimento nas instâncias de dois anos e meio. Considerando o total de participantes de ambas as estruturas, os participantes das instâncias CGL e CCL eram representantes do segmento de ensino (14, entre estudantes e professores); cinco do segmento de atenção (profissionais de saúde); quatro gestores (coordenadores de setores da APS, designados pelo gestor municipal para participarem das reuniões) e dois representantes do controle social (profissionais da saúde que participavam do CMS).5,10
O processo de interlocução era organizado da seguinte forma: os participantes se dispunham em torno da mesa, a coordenadora expunha a pauta e mediava o movimento dialógico; cada um se inscrevia para emitir as considerações sobre o ponto. As reuniões tinham duração de três horas, em média. Foi possível registrar, ainda, momentos de estudo de portarias interministeriais; exposição ou resultados de projetos; marcante participação de alguns professores e profissionais; pouca participação de estudantes, representantes do controle social e gestores; e algumas discussões mais conflituosas entre os segmentos de ensino e serviço.
Os diálogos que se estabelecem durante as reuniões dos gestores do Pró-Saúde se desenvolvem ordenadamente, fomentam novas ideias, momentos de estudo e reflexões dos atores que pertencem aos diferentes segmentos representados sobre o Pró e também sobre o Pet-Saúde1 como possibilidades de reorientação da formação em Saúde. Também são observados momentos de negociação, por vezes, conflituosas (NOR - pesquisadora).
Das seis reuniões observadas, foi possível constatar a presença de dois diferentes representantes da gestão nas reuniões, ora exercendo a função de titulares, ora suplentes, ora novos integrantes, e nem sempre compreendiam seu papel e a qual segmento pertenciam, como fica claro nas notas de observação a seguir:
Representante do gestor: meu nome é [refere nome], trabalho na [instituição de saúde], é a primeira vez que estou comparecendo, a pedido do [Secretário de Saúde] ficarei mais para escutar, pois não conheço exatamente o Pró-Saúde (NOD - segmento gestor).
Ao se apresentarem, os participantes da gestão que comparecem pela primeira vez na instância, manifestam não compreender, exatamente, qual o seu papel naquele espaço e do que se trata. Possivelmente, ao receber a convocação, o gestor titular encaminha suplente e, na falta deste, um novo representante, sem explicar do que se trata (NOR - pesquisadora).
A observação das reuniões permitiu compreender a organização e o movimento dos espaços gestores, como eram organizados os diálogos, a participação, os conflitos, entre outras impressões, a partir da perspectiva dos pesquisadores; e as entrevista focadas permitiram fazê-lo, mediante o ponto de vista dos participantes. A seguir, apresentamos as categorias que compuseram os resultados:
Tomadas na dimensão de reconstrução das práticas dos sujeitos, quanto à impressão dos espaços intersetoriais de gestão dos dispositivos indutores da reorientação da formação, as falas expressam a mobilidade produzida do serviço, a partir das possibiliades de mudança no cotidiano do trabalho, com a presença e influência do ensino, denominada de "impacto". Trata-se, a partir da sua ótica, de um espaço articulador:
[...] eu acho bem importante essa instância, com membros da Universidade e da Secretaria de Saúde, então se consegue planejar e estudar sobre o andamento do Pró-Saúde e seu impacto no serviço, ter essa noção do que muda [...] o papel é esse: fazer essa articulação (Entrevista 01 - S).
Os representantes do segmento de ensino ressaltam os aspectos pedagógicos e de integração entre ensino e serviço, com vistas a consolidar dispositivos indutores da reorientação da formação, como o Pró-Saúde. A integração processa-se na problematização, no diálogo e, sobretudo, no movimento transformador: da instância colegiada em um lugar de ensino-aprendizagem, da teoria em prática e dos espaços de saúde em "material escrito vivo". Essa transformação traduz-se, também, nos sujeitos que compõem aquela instância.
Esse é um espaço que faz a gente pensar mais sobre a importância disso [integração ensino-serviço], por estar nesse lugar, fica mais ligado, mais preocupado com as ações, e em fazer, em tomar esse cuidado [...] se problematiza como os projetos [do Pró e Pet-Saúde] podem ser implementados, a partir de como cada espaço tem visto, como o ensino vê, como que o serviço vê, eu acho que a gente avançou nesse processo (Entrevista 02 - E).
[...] um local de estudo, um local parceiro no processo de reorientação da formação [...] acaba sendo um espaço pedagógico, e não tem nada mais interessante para transformar ações de prestação de serviços ou de formação, do que transformar instâncias em espaços pedagógicos vivos, em que se possa aprender continuamente [...] (Entrevista 03 - E).
É apontada a possibilidade de refletir, entre outras coisas, tanto sobre as relações no âmbito do ensino, quanto sobre sua implicação no serviço, num pensar constante, o qual monitora - "vigia" - o processo de trabalho e modifica o cotidiano:
[...] [a instância intersetorial] facilita esse cuidado [...] com a relação ensino-serviço. Possibilita esse olhar mais atento, como se, de alguma forma, fosse uma vigilante do próprio trabalho [...] acho que são espaços que fazem a gente pensar (Entrevista 02 - E).
As instâncias intersetoriais são compreendidas como cenários pedagógicos, que, por meio da dialogicidade dos participantes, provocam movimentos na formação (ensino) e na atenção (serviço), revelando a confluência de forças advindas dos sujeitos, com outras, da realidade social na qual estão inseridos.
Do ponto de vista da disputa de poderes que vigora no mundo do ensino e do serviço, os participantes do estudo reconhecem a teoria e a prática como ferramentas dessas organizações. Consideram, entretanto, uma complementariedade entre elas. Nessa direção, as instâncias gestoras oferecem um espaço de reflexão sobre o que se faz.
[...] aí vem aquela história, que prática é muito diferente do que a teoria [...] precisa de que todas as pessoas estejam realmente pensando daquela forma (Entrevista 04 - S).
[...] espaço que faz a gente pensar mais sobre a importância da universidade, por estar nesse lugar tu fica mais ligado, mais preocupado nas tuas ações, em fazer [...] refletir [...] (Entrevista 05 - E).
Durante as reuniões das instâncias, manifestações semelhantes são expressas pelos representantes dos diferentes segmentos, a partir de avaliações solicitadas pela coordenação do processo:
Os participantes que representam o segmento ensino referem que as instâncias são espaços deliberativos, nos quis cada um precisa ter clareza sobre o papel que representa (NOD - segmento de ensino).
Os participantes que representam o segmento gestão consideram que os fóruns são oportunidades de aproximação do serviço com o ensino em Saúde (NOD - segmento de gestão).
Os participantes que representam o segmento atenção acreditam na possibilidade de colocar-se no lugar do outro e exercer a representação com responsabilidade, por meio da participação nos fóruns gestores (NOD - segmento de atenção).
O movimento de pensar sobre o que se realiza também fomenta o reconhecimento dos papéis de cada setor e de cada participante. Para além de reconhecerem-se no processo, as instâncias gestoras provocam o exercício de colocar-se no lugar do outro, numa expressão de alteridade.
A partir das reuniões, eu acho que se problematiza [...] como os projetos podem ser implementados, a partir de como cada espaço tem visto, como o ensino vê, como o serviço vê, assim, eu acho que a gente avançou nesse processo (Entrevista 05 - E).
Contudo, para alguns participantes dos fóruns gestores, o processo de reconhecimento dessas possibilidades requer tempo para se apropriar dessa estrutura de gestão e, gradativamente, aprender a gerir conflitos entre os mundos do fazer e do saber em Saúde. Além disso, carece de um encaminhamento mais acertado em relação à forma de definição quanto à representação exercida no espaço gestor. No discurso a seguir, o representante do segmento serviço se manifesta quanto ao período de tempo necessário até que compreenda seu papel na instância:
Eu acho que é falta de conhecimento mesmo! O que eu estou fazendo aqui? Tanto que quando eu verbalizei isso, outras pessoas também disseram! [...] a Universidade, por ser o representante do saber, às vezes também se coloca assim: "olha, eu te instrumentalizo, porque eu sei!" (Entrevista 06 - S).
A nota confirma essa perspectiva e também sinaliza a importância do envolvimento do gestor no processo, a partir de uma fala sua que foi assim traduzida:
O representante do gestor, presente na reunião, assegura que cada um tem um tempo diferente para compreender a proposta dos fóruns, bem como do Pró-Saúde e que, ao tentar exercer sua representação repassando informações para o gestor, nem sempre consegue convencê-lo da importância dessa integração (NOD - representante do segmento de gestão).
O exercício da gestão compartilhada está subentendido nas falas dos participantes das instâncias, pois há distintos níveis de saber e de poder. Já são perceptíveis movimentos de negociação, mediação de conflitos e composição articulada de projetos em que a diferença de papéis e de poder entre os distintos atores sociais se traduz em integração e alteridade. Nesse movimento, se considera um passo importante compreender como representante de um segmento, não somente como porta-voz de outra pessoa ou grupo, mas sendo escutado, como sujeito, em um dado tempo histórico.
A participação, como motor da transformação e da democratização dos sujeitos, ocorre por meio da práxis. Ela pode ser compreendida como uma atividade concreta, na qual o sujeito se reconhece no mundo, modificando-se continuamente a realidade objetiva de maneira reflexiva, articulando teoria e prática.6,17 Ao propor ultrapassar a esfera da apreensão da realidade para uma esfera crítica da tomada de consciência, Freire explica que a conscientização não pode existir fora da práxis, ou seja, sem a ação-reflexão, pois essa unidade dialética constitui, permanentemente, a maneira de ser ou a possibilidade de transformar o mundo que caracteriza as pessoas, tendo em conta a sua natureza complexa e interativa.6,18 Com essa mesma perspectiva, a coprodução é um dos conceitos-chave do Método Paidéia. Consiste na possibilidade de ver o mundo a partir de forças advindas de valores internos e externos, reconhecendo o caráter contraditório e inacabado do sujeito, com vistas à autonomia.1,2 Compreender a realidade exige posicionamento diante dela e frente ao mundo; em favor ou contra uma determinada situação. Nos processos democráticos, isso significa optar pela descentralização, em oposição à centralização do poder como forma de participação ativa no processo de decisão.
A análise das instâncias intersetoriais de gestão que configuram o caso demonstra estruturas que operam como espaço intercessor pela sobreposição entre o mundo do ensino e do serviço, o que favorece o processo de educação voltado à transformação social.6 Cumpre destacar que a formação efetiva - com vistas à transformação - não pode ocorrer sem levar em conta as reais necessidades dos sujeitos sociais na esfera do seu contexto histórico e social.6,17 Essa dimensão está bem evidente na posição crítica que assumem os sujeitos, representantes dos diferentes segmentos, ao exporem sua impressão sobre o Pró-Saúde e sobre as instâncias. São, aliás, essas percepções críticas que fazem deles protagonistas do processo, caracterizando o Prisma da Formação em Saúde.5,8,10 Além disso, é preciso considerar as relações entre teoria e prática num primeiro plano, em que a primeira depende da segunda, esta resulta da primeira e ambas dão sentido à realidade social, brotando delas o progresso do conhecimento.19 Como lócus de gestão, esses espaços intercessores têm estimulado o exercício de levar em conta a complexidade e a pluridimensionalidade dos sujeitos e das relações entre eles, bem como o papel dos diferentes segmentos ali representados.
Em relação à representação dos diferentes segmentos, há uma concepção de que, nos conselhos gestores, em geral, grupos nomeados agem no interesse de públicos pré-definidos. Neste caso estudado, percebe-se a necessidade de um tempo para apropriação efetiva do processo por parte dos sujeitos representantes; que eles se sintam "escutados" naquele espaço.
Ao considerar-se uma filosofia da prática, o tema da intervenção, certamente, é elemento fundamental. A teoria sem a prática se apresenta como uma concepção ingênua do mundo, cuja trama de conceitos, sem as devidas relações e modos de aplicabilidade à realidade, não teria sentido.6,17 No caso analisado, há uma tendência salutar em diminuir as diferenças entre universidade e serviços de saúde, entre acadêmicos e trabalhadores. A cogestão vigora como um modo de articular saberes, com vistas à realização de ambas as estruturas e à produção da saúde de qualidade.
Outra dimensão, perceptível a partir da possibilidade de aproximação entre ensino e serviço nas instâncias intersetoriais, nessa perspectiva de apoio e cogestão, está na possibilidade de transformação das relações sociais, a qual implica modificações nos modos de pensar e de agir dos sujeitos, um processo de conversão e conformação de novos valores.1,2 Assumindo-se como cidadãos, trocando a postura de expectadores pela de sujeitos/protagonistas, os representantes dos diferentes segmentos que se percebem nessa condição assumem responsabilidades, comprometem-se, participam e desenvolvem o senso de pertencimento, ultrapassando a esfera de simples "porta-vozes" dos representados.
Contudo, a falta de profissionais que representem todos os segmentos que compõem os fóruns implica a descontinuidade das representatividades. Ao assumir a estrutura colegiada, se aposta na mudança, uma vez que as hierarquias organizacionais tradicionais desfavorecem o compartilhamento do poder decisório. No caso das instâncias de gestão do Pró-Saúde, a efetividade da estrutura organizacional ainda depende da capacidade de negociação e da efetiva transformação dos sujeitos envolvidos. Assim, é possível considerar que, embora existam progressos significativos, as responsabilidades de cada segmento permanecem duvidosas, afinal, o ensino e o serviço são dois mundos supostamente articulados, mas operando com lógicas ainda distintas.
A Metodologia Paidéia não concebe a organização social sem a disputa do poder, mas, ao contrário, considera essa disputa essencial à democracia. Preconiza, contudo, assegurar a resolução de conflitos mediante a utilização de instrumentos de convencimento e de negociação. Assim, investe na existência de projetos compartilhados a partir da gestão que fomente a saída de si mesmo, sem, contudo, abandonar a si mesmo. A mesma demanda um processo no qual os sujeitos possam expressar seus interesses e desejos, repensando-os a partir dos interesses e desejos dos outros, de acordo com o contexto e imposições institucionais.2-4,14 Pressupõe-se, assim, que as funções de gestão se exerçam entre sujeitos com distintos níveis de saber e de poder, lidando com afetos mediante a negociação, a alteridade, a mediação de conflitos, participando, ativa e efetivamente.
A análise dos discursos remete à potencialidade de um espaço que dá vida às angustias provenientes das redes existenciais, formadas por docentes, discentes, trabalhadores, gestores e usuários, por meio de seus representantes, gerando possibilidade de mudanças dos processos de trabalho, com vistas à resolubilidade da APS. O conceito de rede, aqui, deve ser compreendido no seu sentido mais amplo, em que cada nó é constituído de acordo com as suas conexões, e articulações com outros nós, a partir de uma perspectiva relacional e não individual ou unidirecional.20
Os representantes mencionam um espaço que dá voz ao que se executa, como um trabalho vivo. Nesse contexto, emerge também a aprendizagem significativa, o processo de aprender a aprender, em que os problemas do cotidiano são tomados como fonte de aprendizagem. Na lógica das metodologias ativas de ensino-aprendizagem, há espaço para referenciais pedagógicos inovadores e necessários para a promoção de mudanças, visando às práticas integradoras e democráticas.6,21,22
Ainda, novas perspectivas do trabalho em Saúde revelam que sua reorganização deve também passar pela implementação de processos educacionais e formativos da força de trabalho pautadas pela prestação de assistência, sendo essa capaz de dar acolhimento e/ou resolução às necessidades sentidas pelos usuários.23,24 Assim, a educação deve ser tomada como um motivador para fortalecer o sistema de saúde.25,26
Nessa direção, as instâncias também funcionam como potencializadoras de movimentos de Educação Permanente em Saúde, sobretudo ao fortalecer os atores do Prisma da Formação, para a resolutividade.5,11,16 Desse ponto de vista, a gestão pautada no apoio é um dispositivo democrático de discussão e de decisão que amplia os espaços de escuta, de troca e tomada de decisões coletivas nos processos de trabalho.23
Considerando os diferentes pontos de vista que foram destaque nessa análise e que, por conseguinte, geram conflitos, cumpre destacar que as controvérsias são um fenômeno complexo da vida coletiva. Sendo assim, situações nas quais os atores discordam, via de regra, começam quando eles descobrem que não podem ignorar uns aos outros e terminam quando conseguem elaborar um concreto compromisso de viverem juntos. Nessa direção, as controvérsias apresentam, em comum, o fato de envolverem todos os tipos de atores, serem dialogadas e prescindirem de conflitos.20,27
Portanto, parece profícuo que haja um espaço destinado a tais argumentações, com a proposição de uma dimensão pedagógica em que os atores oriundos do ensino e do trabalho em Saúde possam atuar, a partir do diálogo sobre suas práticas, no novo modelo de atenção. Esta dimensão deve combinar atributos de cada sujeito com o contexto do qual ele é oriundo, numa lógica integrada, a qual aproxima teoria e prática, além da incorporação de valores éticos.
A partir da investigação sobre a integração ensino-serviço e sua expressão em instâncias intersetoriais de gestão, foi possível perceber a potência da aproximação desses espaços (do saber e do fazer) na produção da saúde. Isso ocorre, sobretudo, pela possibilidade de materializar a teoria na prática e vice-versa, como processo vivo.
A gestão compartilhada dos processos de reorientação da formação para o SUS possibilita o pensar sobre a prática e o reconhecimento do sujeito e do seu papel nesse contexto. Analisam-se, assim, os espaços dialógicos de cogestão como lócus de aprendizagem e de transformação que podem impactar na produção qualitativa da saúde.
O Apoio Paidéia foi visualizado como método tangencial (mesmo não assumido) no caso observado, pois a cogestão do trabalho, a partir da práxis, apresentou-se como estratégia democrática de compartilhamento de poder - a universidade e o serviço. A reflexão dialógica, a partir de concepções de mundo distintas, parece fomentar a capacidade de compreensão e intervenção dos atores sociais sobre uma determinada realidade, na busca de um objetivo comum, reafirmando que espaços coletivos de cogestão e processos ágeis de comunicação viabilizam mudanças na formação e na atenção em Saúde.
Assim, a cogestão de processos indutores da reorientação da formação fomenta a interlocução entre ensino e serviço, promove a práxis, provocando diferentes sujeitos sobre o seu papel e potência no processo. Os espaços intersetoriais funcionam como uma rede de relações fecundas, cuja participação é produtiva e emancipatória, conferindo aos sujeitos uma subjetividade passível de transformação, própria do Método Paidéia. Compreende-se que o fortalecimento desses aspectos pode contribuir para o maior protagonismo dos profissionais no SUS.
Reconhece-se que o estudo de caso observa uma realidade específica e, pela própria composição das instâncias, não permitiu uma representatividade equânime de todos os segmentos, limite comum nas pesquisas que abordam a gestão e a formação em Saúde. Isso remete para a importância de outras pesquisas, com outras abordagens e em outros cenários.