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Integralidade e Atenção Primária à Saúde: avaliação sob a ótica dos usuários

Integralidade e Atenção Primária à Saúde: avaliação sob a ótica dos usuários

Autores:

Carla Silvana de Oliveira e Silva,
Adélia Dayane Guimarães Fonseca,
Luís Paulo Souza e Souza,
Leila das Graças Siqueira,
Angélica Gonçalves Silva Belasco,
Dulce Aparecida Barbosa

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123

Ciênc. saúde coletiva vol.19 no.11 Rio de Janeiro nov. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320141911.14122013

ABSTRACT

This study sought to evaluate the comprehensive nature of Primary Health Care (PHC), from the standpoint of the users of the Family Health Strategy (FHS) and users of others services of PHC. It involved a cross-sectional, analytical and quantitative study conducted in Montes Claros in the Brazilian state of Minas Gerais. For data collection, the adult version of a validated Primary Care Assessment Tool questionnaire was applied to 373 adult service users, of which 124 (33.6%) reported attendance by the FHS and 249 (66.4%) reported attendance by other services. Scores were assigned for the eight dimensions of the instrument, though only three were used for this study, namely first contact, accessibility, and longitudinality. The results showed that in relation to the comprehensive nature of PHC, there was a better evaluation by the population that uses the FHS compared to those who use other services. The first contact, accessibility and longitudinality attributes obtained higher scores in the FHS care provided in comparison with other services, with statistical significance for all attributes. The conclusion drawn is that it is of fundamental importance to assess the attributes of PHC in order to improve the quality of services provided.

Key words: Comprehensive care; Primary health care; Evaluation; Users of health services

Introdução

A inserção de programas inovadores de assistência à saúde no Brasil, durante a década de 1990, elevou a Atenção Primária à Saúde (APS) a uma posição de destaque1. A Atenção Primária à Saúde é definida como o primeiro nível de assistência dentro do sistema de saúde, caracterizando-se, principalmente, pela continuidade e integralidade da atenção, além da coordenação da assistência dentro do próprio sistema, da atenção centrada na família, da orientação e participação comunitária e da competência cultural dos profissionais2.

O conceito da APS foi sistematizado por Bárbara Starfield2 através de atributos denominados essenciais: acesso de primeiro contato, que é a acessibilidade e uso do serviço a cada novo problema ou novo episódio de um problema2; a longitudinalidade, que pressupõe a existência de uma fonte regular de atenção e seu uso ao longo do tempo2; a integralidade, que implica fazer arranjos para que o paciente receba todos os tipos de serviços de atenção à saúde2 e a coordenação, que é a disponibilidade de informações a respeito de problemas e serviços anteriores e o reconhecimento daquela informação na medida em que está relacionada às necessidades para o presente atendimento2. Além desses, a autora também define três atributos derivados: a orientação familiar, decorrente da consideração do contexto familiar na atenção integral; a orientação comunitária, que procede do reconhecimento das necessidades sociais; e a competência cultural, que envolve a atenção às necessidades de uma população com características culturais especiais.

A persistência do modelo biomédico e a lacuna que se observa sobre a adesão aos atributos da APS tornam imprescindível a discussão sobre a formação de recursos humanos para o Sistema Único de Saúde (SUS), buscando melhores alternativas para se ter garantias de que as práticas atendam aos desafios necessários para a implementação de uma APS de qualidade2.

Estudos apresentam evidências sobre a associação entre o maior grau de orientação à APS e o aumento da efetividade dos sistemas de saúde, satisfação dos usuários, promoção da equidade, integralidade e eficiência3. Apesar de a maior parte dos estudos terem sidos realizados em países desenvolvidos, também existem evidências do impacto positivo da APS nos países em desenvolvimento, notadamente nos latino-americanos4,5.

A estratégia adotada pelo Ministério da Saúde no Brasil para a expansão da APS e reorientação do SUS é a Estratégia Saúde da Família (ESF), criada em 1994. O financiamento para a expansão da ESF vem crescendo, assim como o número de equipes implantadas6. Desse modo, várias iniciativas com foco na avaliação da ESF vêm sendo desenvolvidas no Brasil desde sua criação1,7.

Muitas pesquisas8-12 mostram o impacto positivo da ESF em relação aos outros serviços da APS sobre o sistema de saúde brasileiro, todavia, os estudos que levam em conta a satisfação do usuário dos serviços da APS (ESF e demais serviços) ainda são escassos e não dispõem de instrumentos de fácil aplicação para uso rotineiro, apesar do incentivo do Ministério da Saúde a pesquisas voltadas para avaliações dos serviços de saúde, objetivando nortear a elaboração e a reorientação de políticas e programas na avaliação da ESF desde a perspectiva dos usuários7.

Para a avaliação da APS, a literatura científica dispõe de alguns instrumentos, enfatizando a aferição da presença e extensão dos atributos essenciais e derivados da atenção primária à saúde13,14. Dentre os instrumentos, tem-se o Primary Care Assessment Tool (PCATool), que foi criado nas versões Child Consumer/Client Survey e Adult Consumer/Client Survey, aplicáveis aos usuários para a avaliação da atenção à saúde da criança e do adulto, respectivamente, e Facility/Provider Survey, aplicável aos profissionais de saúde, cujo objetivo é medir a presença e a extensão de cada atributo da APS2. O instrumento já foi validado no Brasil15 e produz escores para cada atributo e também os Escores Essencial e Geral, possibilitando mensurar o grau de orientação à APS em diferentes serviços e sistemas de saúde2.

A realização de pesquisas que avaliem os serviços da Atenção Primária à Saúde, levando em conta a ótica dos usuários, é essencial e contribui para a institucionalização da avaliação e reorganização dos serviços, além de se constituir em uma ferramenta para a participação popular7.

Assim, o objetivo deste estudo foi avaliar o processo de integralidade da Atenção Primária à Saúde em um município ao norte de Minas Gerais, Brasil, a partir de seus atributos, sob o ponto de vista dos usuários da Estratégia Saúde da Família e dos demais serviços da APS. Procede-se, complementarmente, à comparação dos serviços na APS presente no município estudado entre os dois grupos avaliados.

Métodos

Trata-se de uma investigação transversal, exploratória, analítica e quantitativa16. A pesquisa foi realizada através de um inquérito junto à população atendida pela Estratégia Saúde da Família e demais serviços de APS no município de Montes Claros, ao norte do estado de Minas Gerais, Brasil. Montes Claros é uma cidade polo, com população estimada em 365.000 habitantes. No que tange aos serviços de Atenção Primária à Saúde, à época da coleta de dados (fim de 2012 e início de 2013), o município dispunha de 76 equipes de saúde da família, 10 localizados na zona rural e 66 na urbana; uma unidade de saúde com o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e 15 Centros de Saúde, sendo estes últimos responsáveis pela assistência à população sem cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF).

A população estudada foi constituída por usuários residentes e cadastrados nas áreas de abrangência das equipes da ESF do município e demais unidades de APS. Foram incluídas apenas as equipes localizadas na zona urbana por limitações logísticas. Os critérios de elegibilidade dos sujeitos para a aplicação do questionário foram: ser usuário há mais de um ano dos serviços de APS (ESF ou outros serviços); ser maior de 18 anos; aceitar participar do estudo. Os usuários foram selecionados através de amostragem aleatória simples. Inicialmente atribuiu-se um número a cada família. Em seguida, procedeu-se ao sorteio, a partir da tabela de números aleatórios e do número de usuários definido pelo cálculo amostral.

O cálculo amostral foi realizado tendo como base uma população finita, com a seguinte fórmula: n = N.p.q.z2/[p.q.z2+(N-1).e2], em que "n" é o tamanho da amostra, "N" é o tamanho da população; "p" é igual a 0,5 (proporção populacional de indivíduos que pertence à categoria que estamos interessados em estudar); "q" é igual a 0,5 (proporção populacional de indivíduos que NÃO pertence à categoria que estamos interessados em estudar (q = 1 - p); "Z" é igual a 1,96 (valor crítico que corresponde ao grau de confiança desejado); "E" é igual a 0,05 (5%) (margem de erro ou erro máximo de estimativa, que identifica a diferença máxima entre a proporção amostral e a verdadeira proporção populacional [p]).

O cálculo amostral definiu a necessidade de alocação de 373 usuários, considerando-se um erro amostral de 5% e nível de confiança de 95%, a partir de uma prevalência do evento estudado de 50% (utilização do serviço de saúde). Esse valor é habitualmente tomado como uma estimativa conservadora, pois aumenta o número da amostra.

O questionário utilizado em sua versão adulto constitui-se em uma adaptação dos instrumentos componentes do Primary Care Assessment Tool, elaborado na Universidade de John Hopkins, aplicado inicialmente no Brasil em 200417, e utilizado posteriormente em estudo realizado no Estado do Rio de Janeiro18.

Nessa perspectiva, a qualidade da atenção à saúde está sendo entendida, no presente estudo, como a presença e a extensão dos atributos considerados essenciais e derivados da APS2. O PCATool mede a presença e a extensão dos quatro atributos essenciais e dos três derivados da atenção primária e o grau de afiliação do usuário ao serviço de saúde. Esse instrumento, originalmente formado por 77 perguntas (itens) sobre os sete atributos da atenção primária à saúde, possibilita, por meio de respostas tipo Likert, construir escores de Atenção Primária à Saúde com intervalo de 1-4 para cada atributo. O escore final de cada um destes atributos é dado pela média das respostas de seus itens, que também variam de 1-4. Alguns atributos são formados por subdimensões, como acesso (primeiro contato e utilização), integralidade (serviços recebidos e serviços disponíveis) e coordenação (sistema de informação e fluxo de usuários)19.

Os dados obtidos a partir dos questionários de usuários foram consolidados com a finalidade de calcular as proporções de respostas positivas (sempre); intermediárias (quase sempre, muitas vezes e algumas vezes, quase nunca) e negativas (nunca), estabelecendo comparações entre as modalidades de organização das ações em saúde: usuários vinculados a uma equipe da ESF e usuários sem vínculo com a ESF (usuários de outros serviços de APS).

Foi calculado o escore geral da APS (valor médio dos atributos essenciais e derivados e o do grau de afiliação). O processamento e a análise dos dados foram realizados através do software SPSS for Windows, versão 18.0. Após a consolidação dos dados relativos a cada atributo, os valores foram transformados em uma escala contínua, variando entre zero e dez, utilizando a fórmula a seguir:

• Escore ajustado = [(escore obtido -1) / (4-1)] x 10.

• Valores de escores > 6,6 foram definidos como elevados e equivalentes ao valor três ou mais na escala Likert19. Valores < 6,6 foram considerados baixos.

Para verificar a significância estatística nas comparações entre proporções, foi realizado o teste de qui-quadrado, com tolerância de erro ao aceitar as diferenças significantes de até 5%. Utilizou-se, ainda, o teste t de student para as médias dos escores dos domínios abordados nos questionários na tabela dos usuários. A descrição dos resultados foi sistematizada, segundo as categorias de análise: primeiro contato, acessibilidade e longitudinalidade.

Os questionários foram aplicados nos domicílios por três enfermeiros previamente treinados. Os usuários foram informados quanto aos objetivos da pesquisa e solicitados a ler e assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O presente trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo.

Resultados

Foram entrevistados 373 usuários das unidades de APS incluídas no estudo, sendo que 124 (33,6%) se referiram a atendimento pela modalidade de ESF, enquanto 249 (66,4%) fizeram referência ao uso de outros serviços de APS.

A Tabela 1 traz a proporção de usuários que responderam positivamente (sempre) às perguntas do questionário nas categorias de primeiro contato, acessibilidade e longitudinalidade, conforme o modelo das ações de Atenção Primária à Saúde.

Tabela 1 Número e Proporção (%) de usuários que responderam positivamente (sempre) às perguntas do questionário nas categorias de primeiro contato, acessibilidade e longitudinalidade, conforme o modelo das ações de APS, Montes Claros, 2012. 

Dimensão APS ESF Outros serviços  
n % n % p
Primeiro Contato          
  Quando você necessita de uma consulta de revisão (consulta de rotina, check-up), você vai ao seu "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/enfermeiro" antes de ir a outro serviço de saúde? 51 41,8 61 25,0 0,005
  Quando você tem um problema de saúde, você vai ao seu "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/enfermeiro" antes de ir a outro serviço de saúde? 51 42,1 52 21,3 0,001
  Quando você tem que consultar um especialista, o seu "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/enfermeiro" tem que encaminhar você obrigatoriamente? serviço de saúde/ ou nome do médico/enfermeiro" tem que encaminhar você obrigatoriamente? obrigatoriamente? 33 21,5 40 16,5 0,014
Acessibilidade          
  O "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/enfermeiro" fica aberto no sábado ou no domingo? 25 20,5 52 21,3 0,000
  O "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/enfermeiro" fica aberto pelo menos algumas noites de dias úteis até às 20 horas? 32 26,4 48 19,7 0,000
  Quando o seu "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/ enfermeiro" está aberto e você adoece alguém de lá atende você no mesmo dia? 47 38,8 53 21,8 0,000
  Quando o seu "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/ enfermeiro" está aberto, você consegue aconselhamento rápido pelo telefone se precisar? 28 23,1 28 11,5 0,064
  Quando o seu "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/ enfermeiro" está aberto, existe um número de telefone para o qual você possa ligar quando fica doente? 39 32,3 50 20,5 0,013
  Quando o seu "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/ enfermeiro" está fechado no sábado e no domingo e você fica doente, alguém deste serviço atende você no mesmo dia? 27 22,3 29 11,8 0,000
  Quando o seu "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/ enfermeiro" está fechado e você fica doente durante a noite, alguém deste serviço atende você naquela noite? 31 25,8 24 9,8 0,000
  É fácil marcar hora para uma consulta de revisão (consulta de rotina, "check-up") neste "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/ enfermeiro"? 41 33,9 30 12,3 0,014
  Quando você chega no seu "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/enfermeiro", você tem que esperar mais de 30 minutos para consultar com o médico ou enfermeiro (sem contar triagem ou acolhimento? 45 37,5 111 45,7 0,027
  Você tem que esperar por muito tempo, ou falar com muitas pessoas para marcar hora no seu "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/enfermeiro"? 21 17,4 69 28,3 0,018
  É difícil para você conseguir atendimento médico do "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/enfermeiro" quando pensa que é necessário? 14 11,6 61 25,1 0,000
  Quando você tem que ir ao "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/enfermeiro", você tem que faltar ao trabalho ou à escola para ir ao serviço de saúde? 43 35,5 89 36,8 0,339
Longitudinalidade          
  Quando você vai ao seu "nome do serviço de saúde/ ou nome do médico/enfermeiro", é o mesmo médico ou enfermeiro que atende você todas as vezes? 10 8,1 8 3,3 0,070
  Você acha que o seu "médico/enfermeiro" entende o que você diz ou pergunta? 18 14,6 14 5,7 0,012
  O seu "médico/enfermeiro" responde suas perguntas de maneira que você entenda? 20 16,4 23 9,3 0,096
  Se você tiver alguma pergunta, pode telefonar e falar com o médico ou enfermeiro que melhor conhece você? 12 9,8 9 3,7 0,072
  O seu "médico/enfermeiro" lhe dá tempo suficiente para falar sobre suas preocupações ou problemas? 51 43,2 41 17,4 0,000
  Você se sente à vontade contando suas preocupações ao seu "médico/ enfermeiro"? 52 44,1 41 17,4 0,000
  O seu "médico/enfermeiro" conhece mais você como pessoa do que somente como alguém com um problema de saúde? 34 28,8 28 11,8 0,001
  O seu "médico/enfermeiro" sabe quem mora com você? 37 31,1 27 11,4 0,000
  O seu "médico/enfermeiro" sabe quais problemas são mais importantes para você? 22 18,6 17 7,2 0,002
  O seu "médico/enfermeiro" conhece sua história clínica (médica) completa? 35 29,4 21 8,9 0,001
  O seu "médico/enfermeiro" sabe a respeito do seu trabalho ou emprego? 35 29,9 26 11,1 0,011
  O seu "médico/enfermeiro" saberia de alguma forma se você tivesse problemas em obter ou pagar por medicamentos que você precisa? 17 14,5 25 10,6 0,004
  O seu "médico/enfermeiro" sabe a respeito de todos os medicamentos que você está tomando? 33 28,2 31 13,2 0,000
  Você mudaria do "nome do serviço de saúde/ ou nome médico/ enfermeiro" para outro serviço de saúde se isto fosse muito fácil de fazer? 30 25,6 82 34,5 0,009

* Teste do qui-quadrado para proporções. Proporção dos usuários que afirmaram COM CERTEZA SIM na utilização dos referidos serviços (n e %).

No questionamento acerca do Primeiro Contato, nota-se que os percentuais de respostas positivas são maiores no modelo da ESF em todas as três questões, com significância estatística para todas (p = 0,005; p = 0,001; p = 0,014) (Tabela 1).

Em relação à Acessibilidade, a maior parte das questões obteve percentuais mais elevados de respostas positivas para os usuários da ESF. As questões que obtiveram percentuais maiores de respostas positivas para os usuários de outros serviços foram as relacionadas a "serviço de saúde ficar aberto no sábado ou no domingo" (ESF = 20,5%; outros serviços = 21,3% [p = 0,000]); "usuário ter que esperar mais de 30 minutos para consulta quando chega no seu serviço de saúde" (ESF = 37,5%; outros serviços = 45,7% [p = 0,027]); "usuário ter que esperar por muito tempo, ou falar com muitas pessoas para marcar hora no seu do serviço de saúde" (ESF = 17,4%; outros serviços = 28,3% [p = 0,018]); "dificuldades em conseguir atendimento médico do serviço de saúde quando pensa que é necessário" (ESF = 11,65%; outros serviços = 25,1% [p = 0,000]); "ter que faltar ao trabalho ou escola para ir ao serviço de saúde" (ESF = 35,5%; outros serviços = 36,8% [p = 0,339]) (Tabela 1). Essas questões sugerem que o tempo para o acesso a atendimentos nos outros serviços da APS pode ser maior, se comparado ao acesso à ESF, na visão dos usuários.

Quando analisadas as questões sobre a Longitudinalidade (Tabela 1), destaca-se que apenas uma questão recebeu maior percentual de respostas "sempre" para os usuários de outros serviços, que perguntava sobre "mudar do serviço de saúde para outro serviço de saúde se isso fosse muito fácil de fazer" (ESF = 25,6; Outros serviços = 34,5 [p = 0,009]).

A Tabela 2 apresenta as respostas dos usuários, segundo escores, às questões relacionadas aos atributos primeiro contato, acessibilidade e longitudinalidade.

Tabela 2 Número e Proporção (%) de usuários que responderam, segundo escores, às perguntas do questionário nas categorias de primeiro contato, acessibilidade e longitudinalidade, conforme o modelo das ações de APS, Montes Claros, 2012. 

  ESF   Outros serviços  
  Baixo escore Alto escore   Baixo escore   Alto escore  
Atributo da APS (< 6,6)   (≥ 6,6)   (< 6,6)   (≥ 6,6) p
  n %   n %   n %   n %  
Primeiro Contato 36 42,9   48 57,1   142 54,8   117 45,2 0,037
Acessibilidade 50 58,8   35 41,2   131 50,2   130 49,8 0,104
Longitudinalidade 41 50,0   41 50,0   189 75,3   62 24,7 <0,001

Teste qui-quadrado de Pearson.

Com relação ao atributo primeiro contato, observa-se que entre os usuários da ESF há um percentual significativamente maior de avaliações com alto escore (57,1%) do que entre os de outros serviços (45,2%) (p = 0,037). Entretanto, no que diz respeito à acessibilidade, foi observado um percentual de avaliações com alto escore, maior entre usuários de outros serviços (49,8%), quando comparado aos usuários da ESF (41,2%).

Quanto ao atributo longitudinalidade, também observou-se um percentual significativamente maior de avaliações de alto escore entre usuários da ESF (50,0%), quando comparado aos de outros serviços de APS (24,7%) (p < 0,001).

As médias dos escores dos atributos da APS para a ESF e para os outros tipos de serviço estão dispostas na Tabela 3. A ESF apresenta valores de escores satisfatórios (> 6,6) para os atributos de primeiro contato (7,3) e longitudinalidade (6,9). Em contrapartida, os demais serviços de APS apresentam, em todos os atributos avaliados, escores insatisfatórios (< 6,6).

Tabela 3 Média de escores quanto às categorias de primeiro contato, acessibilidade e longitudinalidade, Montes Claros, 2012. 

Atributo da APS ESF   Outros serviços p
  Média DP   Média DP
Primeiro Contato 7,3 2,3   5,9 2,5 0,001
Acessibilidade 5,4 2,1   4,3 1,9 <0,001
Longitudinalidade 6,9 1,9   4,7 2,1 <0,001

Teste t de student.

Discussão

Neste estudo, privilegiou-se cada elemento que compõe as dimensões de integralidade analisadas, sendo estas consideradas a partir das respostas a cada uma das questões, e não a partir de um valor sintético de todas de uma mesma dimensão. Isso permitiu visualizar os diferentes aspectos envolvidos no exercício da integralidade e a percepção do usuário dos serviços da APS. Outros estudos17,20 realizados em São Paulo, Brasil, que também fizeram uso do PCATool, utilizaram estratégia diferente, chegando a um escore sintético de cada dimensão analisada.

De modo geral, a avaliação da integralidade pelos usuários da ESF se mostrou favorável nas questões que compõem o primeiro contato, a longitudinalidade e a acessibilidade, pois, mesmo nos questionamentos que obtiveram mais respostas positivas nas questões da acessibilidade para os usuários de outro serviço, sugeriu-se que o tempo para o acesso aos outros serviços da APS é maior do que o tempo na ESF. Corroborando, estudo realizado em São Paulo que encontrou o mesmo achado para essas dimensões21.

Ao analisar-se a acessibilidade, os resultados apontaram para as dificuldades de rápido acesso a outros serviços da APS, fato que pode impactar negativamente na avaliação do usuário sobre o serviço, em especial no que diz respeito à resolução de queixas agudas ou subagudas21.

Quanto aos escores calculados a partir da avaliação, notou-se que a ESF apresentou escores maiores em "primeiro contato", "acessibilidade" e "longitudinalidade" do que aqueles atribuídos às demais unidades de APS, assim como em outros estudos17,19,22.

No que diz respeito ao acesso aos serviços de saúde, a APS, como serviço de primeiro contato, articulado a outros níveis, pressupõe a constituição de uma rede integrada de serviços de saúde, funcionando como porta de entrada no sistema para o atendimento, ao longo do tempo, às necessidades e problemas de saúde das pessoas (não relacionados apenas à enfermidade), coordenando ou integrando os outros tipos de atenção, fornecidos em algum ponto do sistema de saúde. A garantia de atenção ao primeiro contato está relacionada ao uso da APS como a porta de entrada para as questões de saúde e à sua capacidade para lidar com problemas amplos, heterogêneos e fortemente influenciados pelo contexto social2.

Nesse ínterim, a dimensão do acesso traduz principalmente a maior ou menor facilidade da população para obter uma consulta. Ainda que não devamos reduzir a atenção primária à prestação de consultas médicas, ela não pode abdicar da atenção clínica prestada pelos profissionais de saúde22.

No presente estudo foi registrado um menor escore no que tange à acessibilidade (média de escore = 5,4), fato que constitui um enorme desafio na busca da integralidade da atenção à saúde17,20,23. Outros autores24 apontam em seus estudos que unidades de ESF, muitas vezes, apresentam desempenho semelhante ao modelo tradicional no que se refere à acessibilidade e porta de entrada, revelando diversidade na operacionalização do referido programa.

Estudos realizados no município de São Paulo20 e em outros acima de 100 mil habitantes no Estado de São Paulo17 também encontraram escores intermediários na avaliação da acessibilidade pelos usuários.

Nesse contexto, a oferta de serviços e sua distribuição geográfica, a disponibilidade e a qualidade dos recursos humanos e tecnológicos, os mecanismos de financiamento, o modelo assistencial e a informação acerca do sistema são características da oferta que afetam o acesso17. A dimensão do acesso diz respeito principalmente à maior ou menor facilidade da população para obter uma consulta22.

Em relação ao atributo longitudinalidade, em que é avaliada, acima de tudo, a relação entre usuário e profissional, no presente estudo houve uma boa avaliação (alto escore) por parte dos usuários da ESF, sendo que o mesmo não é observado entre os usuários dos demais serviços de APS. É reconhecido na literatura que a produção da saúde demanda o estabelecimento de relações de intersubjetividade entre profissionais e usuários, abrindo-se a possibilidade de aproximação ao mundo da vida dos pacientes, portanto ao seu modo de adoecer e morrer22. Vale salientar, ainda, que a presença adequada da longitudinalidade é um fator essencial para o sistema de saúde, pois esse atributo tende a produzir diagnósticos e tratamentos mais precisos, além da redução dos encaminhamentos desnecessários para especialistas e para a realização de procedimentos mais complexos25.

Contudo, a melhoria dos serviços prestados nesse nível de atenção ainda é um desafio, apesar do avanço do Sistema Único de Saúde no processo de reorganização da atenção básica, inclusive com a ampliação da cobertura e implementação de novos modelos assistenciais. Nesse aspecto, posto que estudos relacionam a longitudinalidade/vínculo longitudinal com resultados positivos, o reconhecimento desse atributo como característica central da APS em nosso país é oportuno e deve ser almejado e avaliado26,27.

Ademais, algumas limitações podem ser reconhecidas neste estudo. O instrumento PCATool, inclusive, apresenta limitações. A primeira é considerar, para o cálculo dos Escores Essencial e Geral, que os atributos tenham os mesmos "pesos" na medida da orientação à APS. A segunda consiste no fato de o estudo ser conduzido em um único município. Por último, a APS foi avaliada sob a ótica dos usuários, e alguns autores28 salientam que há certa "naturalização" para a baixa qualidade na visão dos usuários, os quais terminam por reconhecer o serviço recebido como um favor ou doação e não como um direito, o que representa uma das diferentes interpretações para o gratuito. Além disso, esta é uma pesquisa avaliativa, transversal, sujeita às limitações próprias deste tipo de delineamento.

Os resultados apresentados neste estudo trazem importantes implicações para os serviços avaliados e também para as políticas públicas de atenção à saúde na microrregião. Porém, alguns atributos, como acessibilidade, na experiência dos usuários, precisam ser melhorados. Além disso, é registrada uma significativa diferença na avaliação feita pelos usuários da ESF, quando comparada aos dos demais serviços de APS.

Ademais, a avaliação da satisfação dos usuários dos serviços de saúde, em todos os âmbitos da atenção, constitui uma ferramenta importante que subsidia o processo de decisão compartilhada, de forma a se repensar as práticas profissionais, reorganizar o processo de trabalho desenvolvido, realocar recursos, readequar ações e redefinir objetivos que estejam coerentes com o projeto de saúde estabelecido.

Nesse sentido, os processos de avaliação da satisfação dos usuários nos serviços públicos de saúde ajudam na construção de uma nova perspectiva do cuidado e, além de monitorar as atividades desses serviços, podem fortalecer o controle social e a participação/inclusão dos usuários nos processos de planejamento. Os Processos de avaliação podem, então, contribuir para a construção de alternativas conjuntas - entre serviços de saúde e usuários - para intervenções mais adequadas que possam solucionar problemas presentes no cotidiano dos serviços, propiciando avanços no âmbito da produção de cuidados e gestão dos serviços de saúde.

Por conseguinte, o presente trabalho foi capaz de demonstrar a importância de se avaliar os atributos da APS nas distintas modalidades de cuidado sob a perspectiva do usuário, principalmente pela aplicabilidade prática do instrumento utilizado na condução do estudo, representando importante ferramenta para a melhoria da qualidade dos serviços de saúde.

REFERÊNCIAS

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