versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.46 no.1 São Paulo 2020 Epub 02-Mar-2020
http://dx.doi.org/10.1590/1806-3713/e20200019
O corpo humano preocupa-se principalmente com a estabilidade do pH. Os pulmões são os órgãos responsáveis por manter uma PaCO2 adequada para o nível de produção de CO2 (VCO2), evitando reduções críticas na PaO2. A maioria dos testes de função pulmonar, no entanto, explora anormalidades potenciais em uma etapa que precede a troca gasosa alveolar, ou seja, a ventilação (VE). É importante notar que a gasometria arterial é influenciada não apenas pela integridade da membrana alveolocapilar, mas também por fatores hemodinâmicos (por exemplo, má perfusão tecidual periférica levando a baixa pressão venosa mista de O2) e alterações no drive ventilatório (por exemplo, hipoventilação levando a hipercapnia e hipoxemia), entre outras.1 Devido às consequências sistêmicas nefastas da troca gasosa pulmonar comprometida, os testes que abordam seus aspectos multifacetados são pertinentes à prática da Pneumologia.
Uma mulher fumante com 71 anos de idade foi encaminhada à clínica de pneumologia devido à progressão da dispneia ao esforço (escore da escala modificada do Medical Research Council = 3/4), apesar de apresentar resultados de espirometria, volumes pulmonares e TC de tórax com contraste normais. Sua dispneia era atribuída ao estilo de vida sedentário e à anemia grave por mieloma múltiplo. Um teste de caminhada de seis minutos confirmou sua baixa tolerância ao exercício, com dispneia grave e hipoxemia ao esforço. Os testes que avaliaram as trocas gasosas mostraram: a) baixa DLCO corrigida pela hemoglobina e coeficiente de transferência de monóxido de carbono (KCO) com ventilação alveolar (VA) e razão VA/CPT normais; b) PaO2 levemente reduzida e eucapnia; e c) gradiente alveoloarterial de O2 (P(A-a)O2), fração de shunt (em 100% de O2), espaço morto fisiológico, gradiente arterioalveolar de CO2 ao final da expiração [P(a-ET)CO2] e razão VE/VCO2 em repouso elevados. O padrão de troca gasosa pulmonar comprometida (Figura 1, em vermelho), shunt e distribuição VE preservada na ausência de enfisema ou fístula arteriovenosa pulmonar levantaram a suspeita de má perfusão pulmonar secundária a um shunt extrapulmonar. De fato, um ecocardiograma transesofágico com microbolhas mostrou um pequeno forame oval patente cuja dimensão aumentou acentuadamente mesmo com esforço leve. A ausência de hipertensão pulmonar em repouso não impediu um shunt direita-esquerda (mecanismos putativos descritos no estudo de Vitarelli).2
A taxa de troca gasosa alveolar pode estar substancialmente prejudicada apesar do parênquima pulmonar preservado. Se a hipoxemia não puder ser explicada pela hipoventilação - PaCO2 e pressão parcial alveolar de CO2 (PACO2) elevadas, levando a baixa pressão parcial alveolar de O2 (PAO2) - ou por baixa pressão inspirada de O2 (por exemplo, alta altitude), a perfusão pulmonar comprometida deve ser considerada como a explicação mais provável. No presente caso, o shunt direita-esquerda diminuiu a perfusão pulmonar, diminuindo a superfície funcional da transferência alveolocapilar (DLCO).3 Como a VE estava relativamente bem distribuída (relação VA/CPT normal),4 o KCO diminuiu. A alta relação VE/perfusão aumentou a PAO2 - e a P(A-a)O2 e a PaO2 estavam baixas - e a fração do volume corrente era “desperdiçada” no espaço morto.5 Assim, a tensão de CO2 ao final da expiração (PETCO2) foi substancialmente menor que PACO2 (estimada pela PaCO2) porque foi diluída pela PCO2 a partir de alvéolos que não foram adequadamente expostos ao sangue venoso rico em CO2 [P(a-ET)CO2].6 Uma maior VE era então necessária para manter a ventilação alveolar ( razão VE/VCO2; Figura 1, em azul).
Uma análise integrada dos gases sanguíneos arteriais (com medições indiretas da distribuição de VE e da combinação VE-perfusão) e da capacidade de transferência pulmonar - à luz dos dados clínicos - é invariavelmente útil para desvendar os mecanismos e as consequências de trocas gasosas pulmonares comprometidas.