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Integrando medidas de troca gasosa pulmonar para responder a perguntas clinicamente relevantes

Integrando medidas de troca gasosa pulmonar para responder a perguntas clinicamente relevantes

Autores:

José Alberto Neder,
Danilo Cortozi Berton,
Denis E O’Donnell

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Brasileiro de Pneumologia

versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756

J. bras. pneumol. vol.46 no.1 São Paulo 2020 Epub 02-Mar-2020

http://dx.doi.org/10.1590/1806-3713/e20200019

CONTEXTO

O corpo humano preocupa-se principalmente com a estabilidade do pH. Os pulmões são os órgãos responsáveis por manter uma PaCO2 adequada para o nível de produção de CO2 (VCO2), evitando reduções críticas na PaO2. A maioria dos testes de função pulmonar, no entanto, explora anormalidades potenciais em uma etapa que precede a troca gasosa alveolar, ou seja, a ventilação (VE). É importante notar que a gasometria arterial é influenciada não apenas pela integridade da membrana alveolocapilar, mas também por fatores hemodinâmicos (por exemplo, má perfusão tecidual periférica levando a baixa pressão venosa mista de O2) e alterações no drive ventilatório (por exemplo, hipoventilação levando a hipercapnia e hipoxemia), entre outras.1 Devido às consequências sistêmicas nefastas da troca gasosa pulmonar comprometida, os testes que abordam seus aspectos multifacetados são pertinentes à prática da Pneumologia.

PANORAMA

Uma mulher fumante com 71 anos de idade foi encaminhada à clínica de pneumologia devido à progressão da dispneia ao esforço (escore da escala modificada do Medical Research Council = 3/4), apesar de apresentar resultados de espirometria, volumes pulmonares e TC de tórax com contraste normais. Sua dispneia era atribuída ao estilo de vida sedentário e à anemia grave por mieloma múltiplo. Um teste de caminhada de seis minutos confirmou sua baixa tolerância ao exercício, com dispneia grave e hipoxemia ao esforço. Os testes que avaliaram as trocas gasosas mostraram: a) baixa DLCO corrigida pela hemoglobina e coeficiente de transferência de monóxido de carbono (KCO) com ventilação alveolar (VA) e razão VA/CPT normais; b) PaO2 levemente reduzida e eucapnia; e c) gradiente alveoloarterial de O2 (P(A-a)O2), fração de shunt (em 100% de O2), espaço morto fisiológico, gradiente arterioalveolar de CO2 ao final da expiração [P(a-ET)CO2] e razão VE/VCO2 em repouso elevados. O padrão de troca gasosa pulmonar comprometida (Figura 1, em vermelho), shunt e distribuição VE preservada na ausência de enfisema ou fístula arteriovenosa pulmonar levantaram a suspeita de má perfusão pulmonar secundária a um shunt extrapulmonar. De fato, um ecocardiograma transesofágico com microbolhas mostrou um pequeno forame oval patente cuja dimensão aumentou acentuadamente mesmo com esforço leve. A ausência de hipertensão pulmonar em repouso não impediu um shunt direita-esquerda (mecanismos putativos descritos no estudo de Vitarelli).2

Figura 1 Estrutura simplificada para uma análise integrativa das trocas gasosas pulmonares com base nos testes de rotina de função pulmonar. Veja o texto para uma elaboração mais detalhada. Modificado, com permissão do editor.3 VA: ventilação alveolar; KCO: coeficiente de difusão (transferência) de monóxido de carbono; P(A-a)O2: gradiente alveoloarterial de O2; VD: ventilação do espaço morto; VT: volume corrente; P(a-ET)CO2: gradiente arterioalveolar de CO2 ao final da expiração; VE: ventilação; e VCO2: produção de CO2. *Uma VA normal pode coexistir com obstrução ao fluxo aéreo em um indivíduo com limitação leve ao fluxo aéreo no qual as anormalidades distributivas não são graves o suficiente para diminuir a VA. A VA ainda pode estar na faixa normal, apesar de uma VA/CPT baixa em um paciente com hiperinsuflação grave (CPT alta). 

A taxa de troca gasosa alveolar pode estar substancialmente prejudicada apesar do parênquima pulmonar preservado. Se a hipoxemia não puder ser explicada pela hipoventilação - PaCO2 e pressão parcial alveolar de CO2 (PACO2) elevadas, levando a baixa pressão parcial alveolar de O2 (PAO2) - ou por baixa pressão inspirada de O2 (por exemplo, alta altitude), a perfusão pulmonar comprometida deve ser considerada como a explicação mais provável. No presente caso, o shunt direita-esquerda diminuiu a perfusão pulmonar, diminuindo a superfície funcional da transferência alveolocapilar (DLCO).3 Como a VE estava relativamente bem distribuída (relação VA/CPT normal),4 o KCO diminuiu. A alta relação VE/perfusão aumentou a PAO2 - e a P(A-a)O2 e a PaO2 estavam baixas - e a fração do volume corrente era “desperdiçada” no espaço morto.5 Assim, a tensão de CO2 ao final da expiração (PETCO2) foi substancialmente menor que PACO2 (estimada pela PaCO2) porque foi diluída pela PCO2 a partir de alvéolos que não foram adequadamente expostos ao sangue venoso rico em CO2 [P(a-ET)CO2].6 Uma maior VE era então necessária para manter a ventilação alveolar ( razão VE/VCO2; Figura 1, em azul).

MENSAGEM CLÍNICA

Uma análise integrada dos gases sanguíneos arteriais (com medições indiretas da distribuição de VE e da combinação VE-perfusão) e da capacidade de transferência pulmonar - à luz dos dados clínicos - é invariavelmente útil para desvendar os mecanismos e as consequências de trocas gasosas pulmonares comprometidas.

REFERÊNCIAS

1 Neder J, Nery L. Clinical Exercise Physiology: Theory and Practice [in Portuguese]. São Paulo: Artes Médicas; 2002. 404 p.
2 Vitarelli A. Patent Foramen Ovale: Pivotal Role of Transesophageal Echocardiography in the Indications for Closure, Assessment of Varying Anatomies and Post-procedure Follow-up. Ultrasound Med Biol. 2019;45(8):1882-1895.
3 Neder JA, Berton DC, Muller PT, O'Donnell DE. Incorporating Lung Diffusing Capacity for Carbon Monoxide in Clinical Decision Making in Chest Medicine. Clin Chest Med. 2019;40(2):285-305.
4 Neder JA, O'Donnell CD, Cory J, Langer D, Ciavaglia CE, Ling Y, et al. Ventilation Distribution Heterogeneity at Rest as a Marker of Exercise Impairment in Mild-to-Advanced COPD. COPD. 2015;12(3):249-256.
5 Neder JA, Arbex FF, Alencar MC, O'Donnell CD, Cory J, Webb KA, et al. Exercise ventilatory inefficiency in mild to end-stage COPD. Eur Respir J. 2015;45(2):377-387.
6 Neder JA, Ramos RP, Ota-Arakaki JS, Hirai DM, D'Arsigny CL, O'Donnell D. Exercise intolerance in pulmonary arterial hypertension. The role of cardiopulmonary exercise testing. Ann Am Thorac Soc. 2015;12(4):604-612.