versão impressa ISSN 1413-8123
Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.1 Rio de Janeiro jan. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014201.21302013
A desnutrição infantil é uma das principais causas de mortalidade em menores de cinco anos1. Em 33 anos (1974-2007) o Brasil reduziu o déficit de altura para idade de 37,1% para 7,1%. Apesar desse decréscimo, o país ainda apresenta déficit de altura três vezes superior ao encontrado em populações bem nutridas2.
As causas macroestruturais da desnutrição estão bem documentadas na literatura, como o papel da pobreza, privação e fatores socioeconômicos correlacionados1 , 3. Entretanto, o nível microestrutural tem sido alvo de menor número de investigações, dada sua complexidade e em função da própria diminuição da desnutrição. Os comportamentos alimentares do cuidador estão entre os determinantes da desnutrição infantil4.
Estudos apontam que a qualidade do ambiente onde a criança vive tem impacto no seu desenvolvimento5 - 7. O desenvolvimento cerebral do ser humano é influenciado pelo ambiente e pelas relações estabelecidas na primeira infância, e as interações cuidador-criança, facilitadoras do desenvolvimento social e emocional da criança, incluem atitudes emocionalmente positivas, sensibilidade, responsividade e não uso de punições físicas. Cabe ressaltar que a alimentação responsiva também faz parte do cuidado psicossocial da criança4 - 7.
A alimentação é uma necessidade básica para o crescimento físico da criança, tão importante quanto o ambiente e o cuidado responsivo4 - 5. Repensando as questões do cuidado integral à saúde da criança torna-se importante analisar a interação de mães e/ou cuidadores de crianças com desnutrição, apreendendo suas dificuldades e experiências. Assim, o objetivo deste estudo foi apreender as relações entre mães e crianças desnutridas menores de dois anos de idade nos momentos das práticas alimentares nos domicílios, buscando subsídios para a atenção à saúde da criança.
Trata-se de um estudo exploratório com análise qualitativa dos dados8. Optou-se por esse delineamento para captar as relações entre mães e crianças nos momentos da alimentação no ambiente comum a elas. O estudo foi realizado na cidade de Guarapuava, localizada no centro-sul do estado do Paraná, Brasil.
Para a seleção das crianças, primeiramente, foi realizada avaliação antropométrica de todas as crianças menores de dois anos em acompanhamento em quatro unidades de saúde localizadas na região periférica do município. Para o presente estudo foram incluídas aquelas que apresentavam os índices antropométricos peso/idade (P/I) e/ou estatura/idade (E/I) abaixo do percentil 39.
Os critérios de inclusão adotados neste estudo foram: crianças menores de dois anos de idade, desnutridas, em seguimento em unidades de saúde e mães que permanecessem no domicílio a maior parte do tempo. Os critérios de exclusão foram: crianças prematuras, com peso ao nascer inferior a 2500g, gemelares, com outros problemas de saúde, frequentadoras de creches, cuidadas por outros responsáveis que não as mães e mães que trabalhassem fora do domicílio. Participaram do estudo oito díades mãe-criança e três avós. As avós foram incluídas como sujeitos dessa pesquisa por estarem presentes nos momentos de observação da alimentação da criança.
Para a coleta dos dados utilizou-se a técnica de observação participante10, com enfoque nas relações mãe-criança durante os períodos da alimentação das crianças. A observação participante foi conduzida por meio de visitas domiciliares semanais às moradias das crianças, de acordo com o horário estabelecido pelas mães. Foram realizadas em média sete visitas por criança, totalizando 56 visitas domiciliares, com duração de uma hora e meia a duas horas cada. Anotações em diário de campo8, ressaltando os pontos de destaque para o foco do estudo, foram feitas durante e após cada visita. Os dados foram coletados pelo primeiro autor.
Os dados foram submetidos à análise temática8, com organização de todo o material empírico, efetuada durante e após a coleta dos dados, sendo digitado e organizado em arquivos individuais. Na interpretação das notas de campo, foram percorridas as seguintes etapas, entendidas aqui não como uma sequência temporal de eventos, mas como diferentes momentos que se interpenetram e influenciam mutuamente ao longo de todo o processo da pesquisa8: a) leitura preliminar do material buscando mapear ações e falas dos sujeitos; b) interpretação dos conteúdos e posicionamentos dos sujeitos; c) elaboração de síntese interpretativa, revendo os conteúdos à luz das questões sobre interação entre mães e crianças em momentos de alimentação.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), em Guarapuava (PR), sendo realizado de acordo com as Normas e Diretrizes Éticas da Resolução nº 196/96 do Ministério da Saúde11. As mães e avós participantes do estudo assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. As notas extraídas dos oito diários de campo estão representadas pela legenda DC e seu respectivo número (DC1, DC2, ... DC8).
As crianças tinham entre 11 e 23 meses, sendo quatro meninas e quatro meninos, eram desnutridas, quatro delas com história de hospitalizações por infecções, principalmente respiratórias e intestinais. A idade das mães variava de 16 a 39 anos, sendo que três eram adolescentes no momento do nascimento do filho. A escolaridade materna era baixa; duas mães eram analfabetas, cinco tinham até oito anos de estudo e uma delas, nove anos. Duas mães estavam separadas, duas não coabitavam com o companheiro em função de um residir em outro estado para trabalho e outro porque estava na prisão e quatro mães conviviam com o pai da criança. Cinco mães tinham dois filhos, duas quatro e uma mãe um filho.
Nenhuma mãe trabalhava fora do lar, no entanto, seis mães já haviam trabalhado como doméstica, babá e lavadeira, e duas mães nunca exerceram atividades fora do lar. Uma das mães relatou que não trabalhava porque o companheiro não permitia, uma delas porque não tinha com quem deixar o filho, uma ajudava o marido no bar da família que ficava ao lado da casa e duas estavam em busca de trabalho.
Cinco mães residiam em casa própria, sendo três casas em terreno compartilhado com outros membros familiares. Três mães residiam na casa dos avós maternos das crianças. As casas eram de madeira ou alvenaria e com poucos cômodos. Uma das casas não tinha água encanada, luz elétrica e banheiro. Quatro famílias sobreviviam com a renda vinda do trabalho dos pais, três famílias com a renda do trabalho ou aposentadoria dos avós maternos e uma família com o auxílio do Programa Bolsa Família. A renda das famílias não foi investigada diretamente, mas as mães e avós referiram dificuldades financeiras para a compra de alimentos durante o mês. Sete famílias estavam inseridas no Programa Estadual Leite das Crianças, e três famílias no Programa Bolsa Família.
Seis mães relataram histórias de vida marcadas por eventos adversos. Uma das mães estava grávida no momento das visitas domiciliares, mas escondia do avô materno a gravidez, porque o pai da criança estava trabalhando em outro estado e ela temia a reação do avô. Uma das mães, que estava separada, não aceitava a separação e sempre que o pai visitava a criança ela tinha esperança de uma reconciliação. Uma ficou órfã de mãe com dez meses de vida e relatou que o pai teve vários relacionamentos, e que as madrastas costumavam ser rudes com ela. Uma das mães referiu que o companheiro estava preso e que, às vezes, levava o filho na prisão para visitar o pai. Uma mãe estava aflita porque o filho mais velho, que estava preso por homicídio, tinha sido libertado havia poucos dias e retornado à casa. Uma mãe ajudava a criar dois sobrinhos, pois a irmã havia falecido e um dos sobrinhos apresentava deficiência mental.
A partir da interpretação das notas de campo, sobre a observação das práticas alimentares das crianças, os resultados foram agrupados de acordo com os seguintes temas: alimentação e interação; o cuidado cotidiano da criança.
As relações estabelecidas entre mães e crianças durante a alimentação eram permeadas por gestos de carinho (toques no rosto, beijos), conversas, gritos, xingos, ameaças, promessas e tapas. Algumas mães demonstravam paciência, calma e falavam suavemente com os filhos, enquanto outras se irritavam facilmente com certa desordem das crianças ao se servirem e gritavam com os filhos, conforme se evidencia a seguir:
Enquanto a mãe servia a filha, observei gestos de carinho. Ela pediu um beijo à criança. A criança deu um leve beijo nos lábios da mãe. A criança se mexeu muito na cadeira enquanto comia, a mãe deu alguns tapas na criança e falou: "Tá com bichinho na bunda?" A mãe falou que tinha que fazer almoço para o avô. Disse para a filha: "Pare! Monte! Venha aqui (DC1)!"
Para o filho comer, a mãe ficou inventando estórias, falando de uma menina que viria comer a comida do filho, falou de levar ele pra ver o trator, ameaçou dar a comida ao irmão. Ela deu uma colherada de comida para o irmão comer, para ver se o filho comia mais (DC6).
No entanto, as mães, mesmo aquelas que se chateavam facilmente, referiam que, para a criança se desenvolver e crescer adequadamente, era importante oferecer, além do alimento, amor e carinho. A seguir notas de campo que expressam esses sentimentos:
[...] eu acho que a mãe, a família, tem que dá comida na hora certa, não deixá faltá comida, e tem que cuidá bem, porque vai do amor da mãe também pelo filho, não é só enchê a criança de comida e judiá. Eu, graças a Deus, meus filho nunca judiei (DC4).
Ah! Uma boa alimentação, em primeiro lugar, e tratá bem da criança [...] É cuidá bem da criança, porque ela aprende bastante coisa, ensiná bem, tratá com bastante carinho (DC8).
Alguns pontos levantados pelas mães no momento em que ofereciam o alimento aos filhos foram: a criança nem sempre comia no horário em que se oferecia a alimentação, não parava para comer, estava sempre agitada, se distraía, comia, brincava um pouco e depois retornava para comer e, que, às vezes, para a criança se alimentar, era preciso brincar com ela. Percebeu-se, por meio das notas de campo abaixo, que as mães tinham dificuldade em lidar com essas situações:
A mãe disse que o filho não mama todo o conteúdo da mamadeira de uma vez, ele mama um pouco, brinca, depois mama mais um pouco e assim vai, e sempre deixa um pouco. A mãe falou: Criança pequena tem que tê um saco pra eles comê, tem hora que eles querem brincá, tem hora que eles querem comê (DC3).
O filho começou a andar com um pedaço de linguiça frita na mão e a mãe disse: Esse aqui não pára nem pra comê. Ela falou que ele gosta de comer e ficar andando. Observei a criança pegar um pouco de comida e ir à sala, depois voltou à cozinha e comeu mais um pouco. A mãe disse: Pra dá comida tem que brincá com ele (DC7).
O cuidado cotidiano da criança
Nas visitas domiciliares foi possível acompanhar alguns cuidados gerais com as crianças, realizados pelas mães e avós. Esses cuidados incluíram higiene das crianças, atenção e interação entre mães, avós e crianças.
No tocante à higiene, observaram-se cuidados com o corpo da criança, principalmente com relação às eliminações. Nem todas as crianças usavam fraldas descartáveis, em algumas residências as crianças usavam fraldas de pano e, em outras, as crianças ficavam sem fraldas ou somente com as roupas, eliminando fezes e urina no chão da casa ou no terreno, em situações que a mãe orientava, e algumas crianças pediam para ir ao banheiro.
Em alguns domicílios as mães e avós demonstravam certa urgência em trocar as crianças que apresentavam eliminações e estavam preocupadas com a limpeza das roupas e, no caso das meninas, para que estivessem com os cabelos presos, conforme abaixo:
A avó é atenciosa e carinhosa com a neta. Não a vejo gritar com a criança. A criança está sempre limpa e com o cabelo preso. [...] A avó chamou a mãe para ela trocar a filha, a mãe foi até o quarto e logo veio com a criança trocada para a sala (DC2).
Ao chegar à casa, observei que a mãe estava sentada no sofá e a criança no carrinho. A criança estava com o cabelo molhado, tinha tomado banho e estava com uma roupa limpa, como nas outras visitas (DC8).
Entretanto, algumas mães não trocavam ou higienizavam a criança assim que apresentava eliminações, a criança ficava com roupa suja e cheirando mal por algum tempo, até que a mãe fosse limpá-la. Em alguns domicílios, as mães brigavam, xingavam e batiam nas crianças por terem eliminado urina ou fezes. Abaixo, têm-se algumas notas de campo que mostram esses comportamentos das mães:
A criança fez cocô e a mãe não a trocou naquele momento. O cheiro já estava perceptível e a mãe pediu à irmã mais velha que esperasse mais um pouco para trocar, porque ela pode não ter feito tudo (DC4).
A criança fez urina e fezes na calça. A mãe bateu na bunda da filha, afastou a calça da criança e disse: 'Ui que nojo!' E, no banheiro, chamou a filha de 'relaxada e porca' (DC1).
As visitas nos domicílios permitiram observar situações de interação entre mães e crianças, e a maneira como as crianças eram tratadas:
A mãe pegou a filha no colo e ficou brincando com a criança, deitou-a nas pernas e ficou fazendo cócegas na filha, a criança dava gargalhadas, depois a mãe a colocou no colo para dormir e ficou passando a mão na cabeça da filha, até a criança adormecer. A mãe é paciente e fala calmamente com a filha (DC8).
Na maioria das visitas, eu presenciei a mãe gritar com o filho, ameaçar bater, bater, chamar o filho de 'sem vergonha' (DC5).
No presente estudo, a situação de vida das famílias, evidenciada pelas características das crianças e mães, sugere um cotidiano permeado de dificuldades socioeconômicas. As crianças estavam expostas aos fatores de risco para a desnutrição, como o fato de serem filhos de mães adolescentes, baixa escolaridade materna, número de filhos, ausência do pai no domicílio e renda insuficiente1 - 3. Além desses fatores, os episódios de infecções repetidas agravavam o quadro nutricional das crianças, aspecto também encontrado em outros estudos1 - 2. Entretanto, esses podem não ser os únicos fatores que levaram à desnutrição das crianças, pois os microambientais ou também chamados de fatores psicossociais de risco podem ter contribuído para a gênese da desnutrição12. As histórias de vida das mães possibilitaram apreender o contexto no qual as interações mãe/avó-criança aconteciam.
As pessoas envolvidas diretamente nos momentos da alimentação e dos cuidados das crianças foram as mães e as avós. Observou-se que desde a seleção do que iria ser preparado para a criança, o preparo do alimento e a distribuição da refeição, foram ocasiões em que membros da família estavam presentes, mostrando que a criança estabelece contato com o outro, seja a mãe, pai, irmãos ou avós, por meio da alimentação. No entanto, o ato de preparar as refeições, alimentar e cuidar da criança eram atividades exclusivas das mães e avós. Não se observou em nenhum domicílio a figura masculina exercendo tais funções.
A alimentação não é um ato solitário, mas uma atividade social que envolve outras pessoas e um momento para criar e manter formas ricas de sociabilidade13. No início do desenvolvimento, a alimentação ocupa o centro da interação mãe-criança14 - 15. Além da satisfação das necessidades básicas, esse é um momento de aprendizagem e amor, sendo importante conversar e manter contato visual com a criança4. O sucesso desse momento depende de ambos os atores, ou seja, uma mãe sensível às necessidades do filho e uma criança capaz de manifestar seus desejos15.
O preparo das refeições e o cuidado dos filhos ainda estão fortemente ligados ao universo feminino nas camadas populares e é um reflexo da divisão sexual do trabalho13 , 16. Neste estudo, as mães não trabalhavam fora do lar, algumas residiam na casa dos avós das crianças, outras coabitavam com o marido que trabalhava fora e era o provedor, e outras moravam sozinhas com os filhos. As mães e avós eram responsáveis pelo preparo das refeições familiares, alimentar e cuidar das crianças. Neste estudo, não foi possível visualizar a participação dos pais e avôs no cuidado das crianças. Estudo13aponta que a adesão dos homens à arte de cozinhar se restringe a ocasiões especiais e o preparo das refeições continua como tarefa feminina. Cabe destacar também que a inserção da mulher no mercado de trabalho requer a participação masculina na vida doméstica e no cuidado dos filhos16.
Os momentos da alimentação caracterizaram-se por certa tensão em alguns domicílios, em que as mães demonstravam pouca paciência para lidar com a criança e depreendeu-se uma dualidade de sentimentos, permeados por gestos de carinho, tapas e xingos. As crianças comem vagarosamente, distraem-se facilmente, gostam de brincar com os talheres e alimentos, fazem sujeira e os cuidadores nem sempre entendem e estão preparados para lidar com essas situações4 , 17.
Observou-se que as mães que se chateavam facilmente eram as mesmas que demonstravam carinho pela criança antes e após algum gesto, como tapas e uso de palavrões. A dimensão afetiva da alimentação, que engloba a relação com o outro, nesse caso as mães/avós com as crianças, não se caracteriza unicamente pela positividade de relações harmoniosas e de solidariedade. Ao contrário, a dicotomia é constitutiva das relações sociais e a harmonia não elimina a presença do conflito e vice-versa13.
As mães pareciam atribuladas com o preparo da refeição da família e não dispunham de tempo suficiente para alimentar os filhos, que nos domicílios investigados comiam antes dos adultos e necessitavam de auxílio, o que pode explicar em parte a pouca paciência com as crianças. No entanto, nenhum tipo de agressão contra a criança no momento da refeição se justifica18. Um estudo19 sobre estratégias alimentares de mães de crianças desnutridas e eutróficas apontou que as atividades domésticas de preparo do almoço e cuidado de outros filhos nem sempre interferiram no cuidado dispensado à criança no momento da alimentação. A referida investigação aborda que o limitado envolvimento da mãe nesse momento, pode estar relacionado ao seu estado físico e emocional, envolvendo cansaço, fastio e baixa autoconfiança19. As histórias de vida das mães eram marcadas por eventos adversos, não só do ponto de vista econômico. E a presença de dificuldades emocionais em alguns domicílios sugere uma repercussão nas relações com as crianças nos momentos da alimentação e dos cuidados.
As mães e avós enfrentavam alguns obstáculos para alimentar as crianças, tendo em vista que quase sempre não ficavam quietas, não comiam no horário estabelecido por elas, ou não ingeriam a quantidade de alimento que acreditavam ser necessária. As mães, no início do oferecimento da refeição, tentavam conversar ou contar estórias para entreter a criança, mas, com a recusa da criança em comer ou com o fato dela não permanecer parada, as mães desistiam. Os sentimentos das mães, expressos nas falas, revelam que o ato de alimentar o filho desnutrido não era visto como uma tarefa fácil, mas percebiam a necessidade de um esforço por parte delas para que isso acontecesse, já que a criança facilmente se distraía com outras atividades.
As dificuldades das mães nos momentos de oferecer alimentos aos filhos podem ser amenizadas em parte pelos profissionais que atuam na atenção à saúde da criança. Os profissionais podem orientar as mães e deixá-las mais tranquilas, explicando que crianças demoram mais para comer e se distraem com facilidade17. Elas nem sempre comem no horário que os adultos desejam, pois podem ter ingerido algo próximo do momento das refeições, e crianças têm capacidade gástrica reduzida20, o que implica na recusa do alimento.
O responsável em servir a criança precisa observar o que ela está comendo, não apressá-la; quando a criança parar de comer, esperar um pouco e voltar a oferecer alimento; oferecer alimento logo que a criança demonstrar fome, pois se esperar muito tempo para comer, ela pode ficar irritada e perder o apetite17.
Além disso, é importante esclarecer às mães que não precisam preparar uma refeição diferenciada para a criança. A alimentação pode ser a mesma da família, com pequenas modificações20. Isso ajudará as mães no controle do tempo para o preparo das refeições e proporcionará maior tempo para alimentar o filho. É fundamental que profissionais de saúde e mulheres possam interagir e trocar experiências e conhecimentos para a promoção e proteção da saúde das crianças. No entanto, tais interações não são simplesmente um modo de fazer com um saber a priori, mas devem ser tomadas como uma tecnologia de cuidado em saúde, na qual é importante tematizar valores vitais que não são permanentes, mas envolvem decisões, sempre compartilhadas, sobre quais ações podem e devem ser realizadas a cada momento, em cada situação singular21.
Os relatos maternos evidenciam que há preocupação com o crescimento e desenvolvimento da criança e que oferecer alimentos é visto como parte dos cuidados infantis, mas que amor, carinho e convivência familiar são tão importantes quanto a alimentação. As mães enfatizaram que cuidar também significa não praticar atos de violência contra os filhos.
Os discursos maternos sintetizam a definição de alimentação responsiva que engloba o cuidado com os alimentos preparados e oferecidos à criança e assistência prestada no oferecimento da alimentação. A criança deve ser alimentada e encorajada a comer sozinha, sem uso de coerção verbal ou física, com utensílios apropriados à idade e por pessoas com quem tenha uma relação emocional positiva4.
No caso de crianças desnutridas, a relação mãe-filho pode estar comprometida em função de outros fatores além dos financeiros e sociais. Alguns autores12 , 22 destacam que as vivências das mães podem interferir na formação do vínculo com seu filho, e situações como gravidez indesejada, gravidez rejeitada pelo pai da criança, falta de apoio familiar e condições vividas na infância podem ser importantes para a compreensão do quadro de desnutrição22. Por outro lado, crianças desnutridas podem estar ainda mais ligadas às suas mães e às suas fragilidades, como o fato de não se alimentar e enfrentar situações estressantes12.
Os momentos da alimentação podem ser usados para introduzir novas palavras e conceitos e, assim, estimular o desenvolvimento social e mental da criança4 - 5. Os familiares podem falar nomes dos utensílios, alimentos, cores, mostrar à criança coisas pequenas e grandes para ela ir se habituando ao tamanho e conversar sobre o sabor dos alimentos4 , 17. Isso pode não ser alcançado por famílias que não dispõem de alimentos suficientes e para mães que estão atribuladas com afazeres domésticos, cuidando de outras crianças e enfrentando problemas emocionais ou situações estressantes em casa.
Os cuidados dispensados às crianças nos domicílios incluíram a higiene corporal, principalmente com relação às eliminações de urina e fezes, atenção e interação entre mães, avós e crianças. Algumas crianças usavam fraldas de pano ou nem usavam fraldas, o que evidencia a situação social das famílias.
Algumas mães e avós tinham o cuidado para que as crianças, ao apresentarem urina e fezes, fossem trocadas rapidamente. Ainda, demonstravam preocupação com a limpeza das roupas e, no caso das meninas, para que as crianças estivessem com os cabelos presos. Em outras residências foram observadas situações em que a criança era agredida física e psicologicamente por apresentar eliminações na roupa. Em dois domicílios onde se observou que as mães e avós trocavam as crianças com maior frequência, uma das crianças era filha única e outra tinha irmãos mais velhos que não exigiam tanta atenção da mãe. Nesses dois casos, o contexto favoreceu as crianças, pois as mães e avós podiam direcionar mais atenção às crianças.
Para as mães e avós, a criança ser trocada prontamente, vestir roupas limpas e estar com os cabelos presos revelava uma imagem de que a criança era bem cuidada. O reconhecimento da mulher como boa mãe pode se dar pelos cuidados dispensados às crianças, porém esses cuidados podem ser distintos em relação ao gênero, ou seja, as meninas requerem mais cuidados corporais (roupa, higiene, penteado, arrumação) sob supervisão materna, enquanto os meninos precisam de mais controle e diálogo, ficando essa tarefa a cargo do pai16. As visitas de pessoas externas ao núcleo familiar também podem influenciar as mães/avós nos cuidados e na valorização dessa prática social16.
As mães e avós não devem ser culpabilizadas pelas situações observadas nos domicílios, sendo importante considerar que a maternidade não exclui as limitações dessas mães e avós enquanto seres humanos. Cabe mencionar que as mulheres do presente estudo podiam estar fazendo o seu melhor enquanto mãe/avó dentro das suas possibilidades. O cuidado da criança pode apresentar uma diversidade de significados, fazendo com que cada mãe os vivencie segundo seus valores e visão de mundo23.
Algumas mães podem ter tido menos acesso a um modelo e experiência positiva de maternidade do que outras, impossibilitando-as de atender às necessidades da sua criança. Para que os cuidadores possam responder às necessidades das crianças e interagir com elas, primeiramente, as suas necessidades precisam ser atendidas. Em situações de falta de emprego, moradia e alimentos e ou problemas emocionais, pais podem apresentar dificuldades para cuidar das crianças12 , 22.
A criança pequena não consegue executar certas tarefas, como alimentar-se sozinha, ir ao banheiro, realizar higiene corporal, necessitando do adulto para auxiliá-la. Foi observada depreciação da criança e violência física por ter eliminado urina e fezes, sendo que isso pode acarretar problemas futuros, como descontrole das eliminações e até traumas na fase adulta18.
A situação de privação impossibilita algumas mães de vislumbrar uma perspectiva futura, reduzindo sua capacidade de decidir, de fazer uso de suas potencialidades, levando-as a se desinteressar pela própria vida e pela vida dos filhos12.
Os momentos de interação entre as mães, avós e crianças foram intensos e situações de violência física, psicológica e negligência foram observadas, sendo que a presença do pesquisador no domicílio não influenciou a forma de tratar filhos ou netos, demonstrando que isso pode ser uma atitude considerada normal por parte de quem agride. Estudo19 que analisou momentos da alimentação de crianças desnutridas e eutróficas não encontrou nenhum comportamento de agressão verbal ou física por parte das mães, porém elas podem ter se sentido intimidadas pelo fato de estarem sendo filmadas, ou esse foi um comportamento habitual dessas mães.
A violência resulta de uma combinação de fatores pessoais, familiares, sociais, econômicos, políticos e culturais18 , 24. Os adultos que praticam atos de violência podem ter sido agredidos quando crianças ou sofrido algum tipo de violência quando mais jovens18. Isso é preocupante, porque nos deparamos com um problema intergeracional. A criança normalmente age com os outros da mesma forma como as pessoas agem com ela, reproduzindo a violência ou afeto que recebe25.
Identificar famílias vulneráveis à violência (pais adolescentes, baixa escolaridade, desemprego, separação conjugal, falta de laços afetivos com a criança, uso de drogas pelos membros familiares) e realizar visitas domiciliares periódicas podem auxiliar na detecção ou prevenção de violência contra a criança. O agente comunitário de saúde tem papel crucial nesse serviço visto que ele é o elo entre a comunidade e o serviço de saúde18 , 25.
As mães e avós foram responsáveis pelos atos de violência contra a criança, já que eram as principais cuidadoras e permaneciam a maior parte do tempo com os filhos/netos. Os lactentes e as crianças pequenas estão mais vulneráveis à violência doméstica, em especial à violência física. A violência física e psicológica coexiste em lares violentos. Os agressores, em geral, são as pessoas responsáveis pelo seu cuidado ou outros membros familiares, dada a interação social limitada da criança fora do lar18 , 24 - 26.
Os profissionais de saúde, nos atendimentos de pré-natal, puerpério e puericultura, têm importante papel na proteção infantil, porque mães, bebês e crianças pequenas vão ou são levadas com frequência em unidades de saúde. Dessa forma, os profissionais podem explicar para as mães e família a importância dos primeiros contatos do bebê e da forma do cuidado para que se desenvolva adequadamente. Também observar a qualidade das interações entre os membros familiares e a criança, explicar a importância do brincar e das conversas25.
A família precisa estar preparada para reconhecer as fases do desenvolvimento e as demandas da criança, ajudando a diminuir frustrações e capacitando-a para reagir frente às situações adversas. O bom relacionamento dos pais e familiares com a criança é fator de proteção contra a violência. O cuidado afetuoso e caloroso é fator de proteção no desenvolvimento das potencialidades da criança25, além de diminuir os agravos de um ambiente desfavorável e de situações adversas, como doenças infecciosas e crises financeiras12.
Cabe refletir que as famílias de crianças desnutridas que enfrentam graves problemas sociais e emocionais podem não conseguir resolver sozinhas o problema da desnutrição. Essas famílias precisam de programas de intervenção, além daqueles de transferência de renda e alimentar, pois mesmo recebendo auxílio monetário e alimentos, algumas famílias continuam convivendo com o problema da desnutrição. Programas de intervenção que valorizem as histórias de vida das mães e a dinâmica familiar, e que reconheçam as potencialidades da mãe e da família podem ser aliados no enfrentamento da desnutrição12 , 27.
As mães e avós não podem ser vistas somente como cuidadoras das crianças, mas como pessoas que têm sentimentos, histórias de vida, cultura e que interagem com o mundo. Dessa forma, o cuidado da criança desnutrida deve englobar o cuidado com a pessoa responsável pelos cuidados, buscando entender a sua dinâmica de vida e o que essa criança representa para ela e para a família16 , 23.
Esse estudo apresenta um retrato das relações de mães, avós e crianças em determinados momentos de visitas domiciliares numa realidade contextualizada, não podendo ser generalizado a todas as famílias carentes com crianças desnutridas. Entre as limitações do estudo, podemos destacar que só foram observadas relações das mães de crianças desnutridas em domicílios, em situação socioeconômica desfavorável, não se avaliou aspectos psicológicos das mães, problemas ou conflitos familiares, uso de drogas, presença de violência entre parceiros, fatores esses que poderiam contribuir para as atitudes violentas das mães e avós contra os filhos/netos.
As crianças deste estudo eram desnutridas e oriundas de famílias em situação socioeconômica desfavorável, considerada por si só agravante da desnutrição por privar a criança de uma alimentação adequada. Além desse fato, a maioria das mães tinha histórias de vida marcadas por eventos adversos e observou-se que as interações mãe-criança/avó-criança nos momentos da alimentação e em outros momentos das visitas domiciliares nem sempre favoreceram a alimentação e o cuidado responsivo, o que poderia agravar ainda mais o estado nutricional dessas crianças.
Estar presente nos domicílios permitiu verificar que os discursos maternos foram distintos das atitudes de algumas mães e avós, quando relatavam que para a criança crescer e se desenvolver era preciso amor, carinho e não praticar atos de violência contra a criança.
A pobreza é considerada uma das causas da violência contra a criança, porém observou-se que, mesmo em residências onde as condições eram desfavoráveis, as mães não praticavam atos de violência contra os filhos, mostrando que outras estratégias foram desenvolvidas para superar a condição social. Essa diferença entre os domicílios pode indicar que outros fatores, além daqueles de ordem financeira e social, podem estar relacionados ao estado nutricional das crianças, em especial o estado psicológico das mães e avós e as situações de vida enfrentadas por elas.
É importante que o profissional de saúde saiba diferenciar a negligência da privação social, que leva algumas famílias a não disporem de itens básicos para a alimentação e o cuidado da criança. Como a alimentação é um aspecto central da interação mãe-criança nos primeiros meses e anos de vida, é fundamental que a mãe e a família sejam consideradas no cuidado da criança e orientadas sobre a importância dessa relação para o desenvolvimento integral da criança.