versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.1 São Paulo jan./mar. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140006
Na prática clínica, é comum a associação concomitante de múltiplos fármacos para o tratamento de patologias crônicas. Essas associações podem gerar interações medicamentosas (IMs), cujos efeitos podem ser benéficos e até certo ponto esperados, porém, em outros casos, podem gerar resultados indesejáveis, que vão desde a ineficácia do tratamento até eventos adversos graves.1,2 A IM consiste na modificação do efeito terapêutico de um medicamento pela coadministração de outro.2,3 Nesse contexto, é importante destacar que a IM configura-se como uma causa de problema relacionado ao medicamento (PRM), que, quando manifestada, tem impactos negativos sobre a morbidade, a mortalidade, o tempo de hospitalização, a qualidade de vida e os custos em saúde.4-7
Apesar da escassez de relatos de IMs clinicamente evidentes, o conhecimento das propriedades farmacodinâmicas e farmacocinéticas das diferentes medicações aponta para o risco potencial de sua ocorrência.2,8,9 As IMs são consideradas eventos adversos evitáveis, passíveis de prevenção e de intervenção.10-12 Nesse sentido, a sua identificação e classificação pelo farmacêutico poderia otimizar a abordagem clínica desse tipo de evento.13,14
A classificação das IMs, mais frequentemente utilizada, considera como contraindicadas ou como maiores aquelas que demandam intervenção médica imediata, pois representam risco de vida iminente. Por outro lado, as IMs moderadas e menores requerem ciência e alerta ao médico, a fim de não comprometerem o tratamento medicamentoso, pois podem resultar em efeitos clínicos limitados sem, no entanto, exigir alteração importante no tratamento.15
Ao se avaliar a possibilidade de IMs, deve-se atentar para fatores determinantes de sua ocorrência, tais como a natureza química do fármaco, o número de medicamentos utilizados, a idade avançada e a presença de hepatopatias e de nefropatias.3,16
Os rins constituem órgãos essenciais à manutenção da homeostase do corpo humano, com funções regulatórias, excretórias e endócrinas. Dessa forma, a redução progressiva da taxa de filtração glomerular (TFG) e/ou perda das funções renais observadas na doença renal crônica (DRC) comprometem toda a homeostase do organismo.17,18
No Brasil, o número estimado de pacientes em terapia renal substitutiva (TRS) aumentou de 42.000 no ano 2000, para mais de 90.000 pacientes no final de 2010.19 A taxa de prevalência de tratamento dialítico em 2010 foi de 483 pacientes por milhão da população (pmp), variando de 265 pmp na região norte a 591 pmp na região sudeste. Deste total, 89,7% eram submetidos à hemodiálise e 5,1% à diálise peritoneal. Em conformidade com censos anteriores, os diagnósticos etiológicos da DRC mais frequentemente encontrados foram hipertensão arterial sistêmica (HAS), seguida por diabetes mellitus (DM).19
Com base no exposto, indivíduos com DRC constituem uma população de alto risco para IMs potencialmente graves, por serem predominantemente idosos, hipertensos, diabéticos e por apresentarem dificuldade de excreção renal de fármacos.
No presente estudo, avaliou-se o perfil das IMs mais comuns em renais crônicos em tratamento conservador.
Trata-se de um estudo observacional transversal conduzido no ambulatório de DRC do Centro Hiperdia Minas Juiz de Fora e no Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Nefrologia (NIEPEN) - Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Foi analisado o banco de dados de prescrições médicas de indivíduos com DRC, em tratamento conservador, atendidos entre janeiro e dezembro de 2011. Para a análise dos dados, foram incluídos usuários com idade igual ou superior a 18 anos, independentemente da raça, sexo e classe social, com dados completos em prontuário.
A coleta de dados foi composta de duas fases. Na primeira, consultou-se o prontuário eletrônico de cada paciente incluído no estudo, contendo as variáveis demográficas e clínicas; e de prescrições médicas, constituída da variável nome do medicamento, pela Denominação Comum Brasileira (DCB) e Classificação Anatomical Therapeutic Chemical (ATC). Dessa forma, foi traçado o perfil farmacoterapêutico dos indivíduos atendidos no ambulatório.
Na segunda fase, identificaram-se as possíveis IMs, tendo como suporte a base de dados MICROMEDEX® versão 2.0 (2011), com acesso on-line, por meio do portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
O MICROMEDEX® Health Series é uma base de dados que contém informações sobre os medicamentos, etiologia, epidemiologia, diagnóstico e tratamento, disponibilizando farmacopeias conhecidas internacionalmente como Martindale e USP DI, mas, também, alguns sistemas originais e disponíveis somente por meio desse software, tais como DRUGDEX® e DRUG-REAX®.15
A consulta foi explorada levando em consideração que esse software fornece a descrição da IM por dupla de medicamentos, provável mecanismo de interação, documentação publicada no meio científico, efeito, gravidade e sugestão de manejo clínico.
A análise descritiva dos dados foi feita utilizando-se as frequências, no caso das variáveis categóricas; e médias, medianas, desvios padrão e variância, no caso de variáveis quantitativas.
A análise de regressão logística foi aplicada para determinar os fatores associados com as interações medicamentosas potenciais. A exposição à IM (sim/não) foi a variável dependente do modelo. A análise multivariada foi conduzida entre as variáveis que apresentaram associação significante.
Os resultados foram expressos em odds ratio (OR) e o nível de significância adotado foi de 5%.
A digitação e análise do banco de dados foram efetuadas nos programas Excel 1.0, STATA 11.0 e SPSS versão 17.0.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora CEP/UFJF, segundo parecer nº 328/2011.
Na primeira fase do protocolo, que consistiu na avaliação do perfil farmacoterapêutico da população total de renais crônicos, foram analisadas 1.651 prescrições dos 850 indivíduos atendidos no ano de 2011. Dessas prescrições, foram listados um total 10.023 medicamentos com 289 princípios ativos diferentes.
A classe de medicamentos mais prescrita foi constituída de fármacos que atuam no sistema cardiovascular (5.772/57,6%), seguida de medicamentos com ação no trato alimentar e metabólico (1.647/16,4%) e no sangue e órgãos hematopoiéticos (1.088/10,9%).
Os dez medicamentos mais prescritos foram: furosemida (8,4%), sinvastatina (7,1%), losartana potássica (7,1%), ácido acetilsalicílico (5,2%), captopril (4,7%), hidroclorotiazida (4,7%), omeprazol (4,5%), maleato de enalapril (4,1%), besilato de anlodipino (3,3%) e nifedipino (3,1%).
Na segunda fase do estudo, foram selecionados 558 pacientes que atenderam aos critérios de inclusão para análise de IM. Houve predomínio de indivíduos do sexo masculino (54,7%), idosos (69,4%), no estágio 3 da DRC (47,5%), com sobrepeso e obesidade (66,7%). Sendo que, de acordo com a OMS, pacientes com sobrepeso possuem IMC entre 25 a 29,99 e com obesidade, IMC maior ou igual a 30,00. As comorbidades mais prevalentes foram a HAS (68,5%) e o DM (31,9%).
Foram avaliadas as prescrições válidas, referentes aos medicamentos em uso pelo paciente na sua última consulta no ambulatório, uma vez que durante o ano havia mais de um atendimento registrado no seu prontuário. A média de uso de fármacos foi igual a 5,6 ± 3,2 por usuário, sendo que 418 (74,9%) desses apresentaram alguma dupla de medicamentos potencialmente interagentes em suas prescrições. Entre os usuários que apresentaram alguma IM, observou-se média de 3,4 ± 2,3 interações.
Após a avaliação das prescrições pelo software MICROMEDEX ® , foram detectadas 1.364 IMs. Na Figura 1 e na Tabela 1, estão representadas as frequências segundo as gravidades das IMs. Observou-se que 0,4% das mesmas apresentavam contraindicação absoluta; 16,8% apresentavam gravidade maior; 76,9% moderada e 5,9% foram de gravidade menor.
Tabela 1 Distribuição das duplas de medicamentos interagentes mais frequêntes de acordo com a gravidade
Gravidade | PA1 | PA2 | Frequência (Percentual) | Resumo | Provavel mecanismo envolvido | Manejo clínico | %/IM (n=1364) |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Contraindicado (n = 5) | Carbamazepina | Nifedipino | 3 (60,0) | Diminui exposição ao nifedipino. | Indução do metabolismo do nifedipino mediado pelo citocromo CYP3A4. | Tratamento anti-hipertensivo alternativo deve ser considerado. | 0,2 |
Nifedipino | Fenitoina sodica | 1 (20,0) | Diminui exposição ao nifedipino e aumenta risco de toxicidade da fenitoína (ataxia, hiperreflexia, tremor, nistagmo). | Indução do metabolismo do nifedipino mediado pelo CYP3A4 ediminuição do metabolismo da fenitoína. | Tratamento anti-hipertensivo alternativo deve ser considerado. | 0,1 | |
Nifedipino | Fenobarbital | 1 (20,0) | Diminui exposição ao nifedipino. | Indução do metabolismo do nifedipino mediado pelo citocromo CYP3A4. | Tratamento anti-hipertensivo alternativo deve ser considerado. | 0,1 | |
Maior (n = 229) | Enalapril, maleato | Losartana potassica | 50 (21, 8) | Pode resultarem reações de hipersensibilidade (síndrome de Stevens-Johnson, erupções cutâneas, espasmo coronariano anafilático). | Duplo bloqueio do sistema renina-angiotensina-aldosterona | Se a administração concomitante de IECA e BRA for necessária, acompanhar de perto a função renal. | 3,7 |
Alopurinol | Captopril | 24 (10,5) | Pode resultarem reações de hipersensibilidade (síndrome de Stevens-Johnson, erupções cutâneas, espasmo coronariano anafilático). | Desconhecido | Monitorar reações de hipersensibilidade. | 1,8 | |
Alopurinol | Enalapril | 21 (9,2) | Pode resultarem reações de hipersensibilidade (síndrome de Stevens-Johnson, erupções cutâneas, espasmo coronariano anafilático). | Desconhecido | Monitorar reações de hipersensibilidade. | 1,5 | |
Moderado (n = 1049) | Furosemida | Ácido acetilsalicílico | 106 (10,1) | Pode resultar em diminuição da eficácia diurética e anti-hipertensiva. | Desconhecido | Monitorizar resposta diurética apropriada e clearance de creatinina. | 7,8 |
Enalapril | Furosemida | 80 (7,6) | Pode resultar em hipotensão postural (primeira dose). | Vasodilatação e relativa depleção de volume intravascular | Monitorar hipotensão, estado líquido e peso corporal regularmente por até 2 semanas, após os ajustes de dose. | 5,9 | |
Captopril | Furosemida | 69 (6,6) | Pode resultar em hipotensão postural (primeira dose). | Vasodilatação e relativa depleção de volume intravascular | Monitorar hipotensão, estado líquido, e peso corporal regularmente por até 2 semanas após os ajustes de dose. | 5,1 | |
Menor (n = 81) | Metformina | Nifedipino | 20 (24,7) | Pode aumentar a absorção de metformina. | Desconhecido | Monitorar os sinais clínicos de toxicidade à metformina, incluindo diarreia, náuseas e vômitos. | 1,5 |
Furosemida | Hidralazina | 18 (22,2) | Pode aumentar resposta diurética da furosemida. | Aumento da depuração renal da furosemida | Monitorizar resposta diurética apropriada, eletrólitos no soro e clearance de creatinina. Fazer ajustes de dose, se necessário. | 1,3 | |
Enalapril | Eritropoietina | 10 (12,3) | Pode resultar em elevadas doses de manutenção de eritropoietina para manter os níveis de hematócrito. | Desconhecido | Monitorar pacientes que recebem dose elevada de IECA para a eficácia de eritropoietina. Quando administrados concomitantemente, doses mais elevadas de eritropoietina podem ser necessárias. | 0,7 |
Portanto, cerca de um quinto das IMs apresentavam contraindicação formal ou gravidade maior.
As 5 IMs de contraindicação absoluta detectadas estão representadas pela prescrição de antagonista de cálcio (nifedipino) e anticonvulsivantes (carbamazepina, fenitoína, fenobarbital). À análise de IMs de gravidade maior, merece destaque o bloqueio duplo do sistema renina angiotensina, que representou 22% das IMs de gravidade maior, além da prescrição de inibidores do sistema renina angiotensina com inibidor da xantina-oxidase (alopurinol).
Uma vez constada a presença de IM, é relevante a avaliação de condições clínicas e de variáveis que possam determinar sua ocorrência.
No presente estudo, observou-se que a probabilidade de ocorrência de uma IM aumenta em 2,5 vezes para cada medicamento adicional (IC = 2,18 - 3,03) (Figura 2).
Figura 2 Probabilidade de interação em função do número de medicamentos, gerada a partir de modelo logístico. OR = 2,57 (2,18; 3,03) (para cada medicamento adicional, a chance de interação aumenta em 2,5 vezes)
Por meio da análise dos fatores de risco para ocorrência de IM, observou-se que as variáveis que apresentaram forte associação com a presença de IM foram: idade, estágio da DRC, índice da massa corporal (IMC), nefropatia hipertensiva, nefropatia diabética, DM e HAS (Tabela 2).
Tabela 2 Fatores de risco independentes para ocorrência de interações medicamentosas
Características | N (Total = 558) | valor de p | OR (IC 95%) | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Sexo | |||||||
Masculino | 305 | - | Ref | ||||
Feminino | 253 | 0,375 | 0,841 (0,57 - 1,23) | ||||
Idade | |||||||
< ou igual a 39 | 33 | Ref | |||||
40 a 59 | 138 | 0,460 | 1,34 (0,61 - 2,94) | ||||
> ou igual a 60 | 387 | 0,019 | 2,41 (1,15 - 5,06) | ||||
Tabagismo | 196 | 0,866 | 0,96 (0,64 - 1,44) | ||||
Etilismo | 87 | 0,098 | 0,65 (0,40 - 1,08) | ||||
Número de Medicamentos | |||||||
0 a 4 | 187 | - | Ref | ||||
Mais de 5 | 371 | 0,000 | 36,80 (21,00 - 64,51) | ||||
Estágio da DRC | |||||||
1 e 2 | 103 | - | Ref | ||||
3a | 107 | 0,000 | 3,24 (1,76 - 5,95) | ||||
3b | 158 | 0,000 | 3,30 (1,90 - 5,71) | ||||
4 | 153 | 0,000 | 3,30 (1,90 - 5,74) | ||||
S | 37 | 0,013 | 3,04 (1,27 - 7,28) | ||||
IMC segundo OMS | |||||||
Baixo Peso e Eutrofia | 162 | - | Ref | ||||
Sobrepeso | 195 | 0,223 | 1,33 (0,84 - 2,11) | ||||
Obesidade | 185 | 0,001 | 2,47 (1,47 - 4,14) | ||||
Doença de Base | |||||||
Nefropatia Hipertensiva | 213 | 0,007 | 1,76 (1,16 - 2,67) | ||||
Nefropatia Diabética | 120 | 0,032 | 1,75 (1,0S - 2,94) | ||||
Nefropatia Isquêmica | 25 | 0,290 | 1,79 (0,60 - 5,33) | ||||
Glomerulonefrite crônica | 26 | 0,825 | 0,90 (0,37 - 2,20) | ||||
Nefropatia de refluxo | 5 | 0,099 | 0,22 (0,03 - 1,32) | ||||
Indeterminada | 109 | 0,189 | 1,41 (0,84 - 2,35) | ||||
Comorbidades | |||||||
Diabetes mellitus | 178 | 0,000 | 2,50 (1,S6 - 4,01) | ||||
Hipertensão | 382 | 0,000 | 2,03 (1,36 - 3,02) | ||||
Doença Coronariana | 37 | 0,373 | 1,46 (0,63 - 3,42) | ||||
Insuficiência Cardíaca | 29 | 0,073 | 3,02 (0,90 - 10,16) |
**Nota: O IMC foi calculado com as medidas de peso e altura, de acordo com a fórmula IMC = peso (kg)/altura2 (cm). Os pontos de corte de IMC adotados foram os preconizados pela OMS, ou seja, baixo peso (IMC < 18,5); eutrofia (IMC 18,5-24,99); sobrepeso (IMC 25-29,99) e obesidade (IMC > 30,00).
A partir dessa constatação, foi aplicada a análise de regressão logística multivariada a esses fatores. Os resultados demonstraram que o estágio avançado da DRC, a obesidade, o diagnóstico de DM e HAS, foram os principais fatores de risco determinantes para ocorrência de IMs (Tabela 3). Destaca-se, nesse caso, que a probabilidade de ocorrência de IM aumenta em 4,7 vezes em indivíduos no estágio 5 da DRC quando comparado com indivíduos nos estágios 1 e 2 da DRC (p = 0,003).
Tabela 3 Regressão logística multivariada: análise dos fatores de risco dos renais crônicos associados às interações medicamentosas potenciais
Fatores | valor de p | OR (IC 95%) | ||
---|---|---|---|---|
Idade | ||||
< ou igual a 39 | 0,064 | Ref | ||
40 a 59 | 0,907 | 0,94 (0,38 - 2,36) | ||
> ou igual a 60 | 0,253 | 1,65 (0,69 - 3,94) | ||
Estágio da DRC | ||||
1 e 2 | 0,000 | Ref | ||
3a | 0,001 | 3,12 (1,61 - 6,05) | ||
3b | 0,001 | 2,75 (1,51 - 5,02) | ||
4 | 0,000 | 3,67 (1,97 - 6,83) | ||
5 | 0,003 | 4,74 (1,68 - 13,30) | ||
IMC | ||||
Baixo Peso e Eutrofia | 0,004 | Ref | ||
Sobrepeso | 0,337 | 1,27 (0,77 - 2,10) | ||
Obesidade | 0,001 | 2,58 (1,46 - 4,54) | ||
DM | 0,018 | 1,95 (1,12 - 3,41) | ||
HAS | 0,013 | 1,80 (1,13 - 2,87) | ||
ICC | 0,173 | 2,81 (0,63 - 12,47) |
No presente estudo, foram avaliadas prescrições de 558 renais crônicos em tratamento conservador acompanhados em serviço de nefrologia no período de 1 ano. Interações medicamentosas potenciais foram detectadas em 418 pacientes, correspondendo a 74,9% das prescrições. O resultado da análise revelou um total de 1.364 IMs, sendo 16,8% de gravidade maior e 0,4% contraindicadas. Os fatores de risco para a ocorrência de IMs na população avaliada foram obesidade, DM, HAS e estágio avançado da DRC.
Define-se IM como um evento clínico em que a coadministração de fármacos resulta em interferência na ação terapêutica de um ou de ambos os medicamentos. A IM constitui uma causa de PRM, frequente em indivíduos expostos à polifarmácia, em hepatopatas ou naqueles com déficit de excreção renal, condições que podem agravar os processos de absorção, distribuição, metabolismo e excreção dos fármacos envolvidos.
Uma das ferramentas mais eficazes para a avaliação das IMs é representada pelo software MICROMEDEX® Health Series, método consagrado na literatura especializada, que permite a busca rápida e confiável desses eventos.1,13,16,20-22
Problemas relacionados a medicamentos são frequentes em todos os estágios da DRC.4 No entanto, a maioria dos estudos envolve pacientes em estágios avançados da doença e em regime de hemodiálise.4,23-25 Em estudo realizado em 395 indivíduos sob tratamento dialítico, foram identificados 1.593 PRMs, sendo o PRM mais prevalente, representado pelo monitoramento laboratorial inapropriado (23,5%), seguido de doses subterapêuticas (11,2%) e de doses excessivas (9,2%). Nesse estudo, foi observado apenas 4,5% de casos interações medicamentosas.23
Em outro estudo, realizado em 619 pacientes sob tratamento conservador, os autores identificaram com maior frequência o PRM, "indicação sem terapia medicamentosa prescrita". Assim, somente 24% dos indivíduos com doença coronariana utilizavam inibidores de HMG-CoA redutase enquanto apenas 58% daqueles com DM e 23% com proteinúria, recebiam fármacos com ação antagonista sobre o sistema renina angiotensina.24 Os autores não reportaram dados relativos a IMs.
Do mesmo modo, em estudo prospectivo que avaliou PRMs em indivíduos com DRC sob tratamento conservador, os autores observaram como principal PRM a "indicação sem terapia medicamentosa prescrita", não tendo sido avaliada novamente, a presença de IMs.25
Quando se avaliam especificamente as IMs em pacientes ambulatoriais, sua prevalência é reconhecidamente elevada em diversas populações como idosos26, indivíduos com doenças crônicas16, indivíduos em tratamento oncológico27, hepatopatas.28 Contudo, a realização de buscas com os unitermos "drug interactions", "chronic kidney failure", "drug interaction and renal failure" e "drug related problems and renal failure", não resultou em dados de IMs em indivíduos com DRC sob tratamento conservador.
Em estudo recém-publicado, no qual se avaliou a prevalência de IMs em pacientes renais crônicos em regime de internação hospitalar, foram analisadas 205 prescrições, tendo sido detectadas 474 (76,09%) interações, o que corresponde a uma média de 2,7 interações por prescrição. Dessas, 19,6% foram de maior gravidade e envolviam medicações com ação no sistema cardiovascular.29 Embora realizado em pacientes internados, esses dados são semelhantes aos observados em nosso estudo, no qual a média de interações foi igual a 3,4 ± 2,3 e cerca de 16% dos pacientes apresentavam IMs de gravidade maior e, particularmente associadas a medicações com ação no sistema cardiovascular.
Interações medicamentosas de gravidade maior, bem como contraindicadas, também observadas no presente estudo (0,4%) podem representar risco à saúde e, consequentemente, demandam intervenção médica e/ou farmacêutica como única alternativa para a prevenção de efeitos adversos graves.15 Por outro lado, vale ressaltar a detecção de IMs de gravidade moderada em elevado percentual da população estudada (76,9%). Estas não devem ser negligenciadas, pois podem potencializar o problema de saúde do paciente.
Um dos fatores envolvidos na ocorrência de IMs é a polifarmácia.26,30 De acordo com a literatura, a utilização de 5 fármacos se associa a 50% de aumento da probabilidade de ocorrência de IMs, enquanto o uso de mais de 7 fármacos eleva esse percentual para 100%.31
Pacientes com DRC constituem população de alto risco cardiovascular e metabólico e, como consequência, necessitam do uso de polifarmácia.24,32,33 No presente estudo, a utilização de medicamentos foi igual a 5,6 ± 3,2 princípios ativos por paciente, situação que seguramente implica maior risco de IMs. Além disso, a maioria dos indivíduos avaliados estava concentrada nos estágios 3 e 4 da DRC, com uso prevalente de fármacos que atuam no sistema cardiovascular (57,6%), seguido de medicamentos com ação no trato alimentar e metabolismo (16,4%) e no sangue e órgãos hematopoiéticos (10,9%). Esses dados são corroborados por estudo prospectivo recém-publicado, no qual os autores observaram percentual semelhante de utilização de fármacos em renais crônicos sob tratamento conservador.25 Dessa forma, a utilização de polifarmácia por essa população associa-se ao elevado potencial de IMs.
A utilização de fármacos que atuam no sistema cardiovascular e metabólico, na presente amostra, é compatível com a forte associação observada entre presença de DM, HAS e estágios avançados da DRC com a interação medicamentosa.
Outro achado digno de nota foi a associação entre obesidade e IMs na amostra avaliada. Essa poderia resultar de alterações da farmacocinética de medicamentos lipofílicos secundárias ao acúmulo de tecido adiposo,34,35 bem como da maior propensão ao uso de polifarmácia nessa população. No entanto, a avaliação desses mecanismos não foi objeto do presente estudo.
Não obstante as limitações representadas pela realização do trabalho em um único centro de nefrologia, os resultados do presente estudo são promissores, revelando elevado potencial de IMs clinicamente relevantes. Os dados obtidos abrem a perspectiva para a otimização da terapia medicamentosa em renais crônicos com o objetivo de prevenir a incidência de PRMs. Estudos com maior número de pacientes poderão ratificar essa hipótese.
Conclui-se que indivíduos renais crônicos em tratamento conservador apresentam elevado percentual de IMs potencialmente graves. Nessa população, os fatores de risco para a ocorrência de IMs foram diagnóstico de DM e de HAS, presença de obesidade e estágios avançados da DRC.