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Interesse público na saúde: contribuições para uma agenda ético-política

Interesse público na saúde: contribuições para uma agenda ético-política

Autores:

Thaís Fávero Alves,
Rita de Cássia Gabrielli Souza Lima

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.26 no.3 Rio de Janeiro jul./set. 2018 Epub 17-Set-2018

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201800030347

Abstract

Background

The legal expression 'public interest' has been often used in health debates, especially in related legislation; however, there is still a conceptual imprecision surrounding this theme, which requires contextualization.

Objective

This study aimed to analyze the meanings attributed to the term 'public interest', in the health context, in publications of the journal Saúde em Debate , linked to the Brazilian Center for Health Studies (CEBES).

Method

Qualitative study conducted through documentary search from 1985 to 2000.

Results

Redemocratization and social justice are the central themes discussed by authors regarding Public Interest.

Conclusion

In view of the challenges faced in the current Brazilian political scenario, reflection on public interest in health should go beyond the limits of democracy, and it is necessary to discuss the roles of the State, Government, and Civil Society, as well as to overcome the condition of the subalternity assumed by the Brazilian population before the State.

Keywords:  democracy; public policy; Brazilian National Health System

INTRODUÇÃO

Há tempos não se ouvia falar tanto em democracia e interesse público. No entanto, essas expressões, rotineiramente repetidas, por muitas vezes aparentam ser fruto de pouca reflexão. Em uma perspectiva histórica, o termo “democracia” apresenta-se mais legitimado pela opinião pública em função do lastro conceitual que desenvolve na garantia de liberdade e cidadania 1 e pela latência na memória dos brasileiros devido à sua reconquista recente na década de 1980, após mais de 20 anos de ditadura militar.

Com essa reconquista da democracia, bens e serviços essenciais foram garantidos como direito a todo cidadão brasileiro, por meio da promulgação da Constituição Federal de 1988. Para a saúde da população, foi somente com esse novo momento político que o Sistema Único de Saúde (SUS) pôde ser efetivado como o resultado de um direito social conquistado 2 .

A expressão “interesse público”, no entanto, apesar de largamente utilizada no campo da saúde, em especial nas legislações vinculadas à área, constitui-se em um imaginário a ser desvendado, uma vez que é conceitualmente imprecisa. É necessário contextualizá-la 3 e, portanto, compreendê-la a partir do conhecimento da realidade em que a expressão se faz manifesta. Esse “modo de” compreensão de interesse público toma por base a sua dimensão ético-política e corresponde a um método humanístico de análise da realidade 4 .

Mesmo considerando a imprecisão jurídica do termo “interesse público”, em um Estado democrático de direito deveria ser de consenso geral que a expressão significasse, a priori, a responsabilidade do Estado em garantir que o objetivo de suas políticas econômicas gerasse condições dignas de vida para a população, o que estaria na dependência da formação econômica e social vigente.

Se a democracia é compreendida como “[...] um valor estratégico permanente, na medida em que é condição tanto para a conquista quanto para a consolidação e aprofundamento de uma sociedade cidadã” 5 (p. 36), então, em um Estado democrático, toda ação política – independente se realizada pela sociedade política ou sociedade civil 6 – deve ser voltada à afirmação da soberania popular, por meio de ações que visem ao bem comum. A soberania popular valida-se, em um Estado democrático, a partir da formação do homem político e produtor por excelência – o homem dirigente 7 –, cujo caráter de sua atividade intelectual está no “sistema de relações” em que a referida atividade se encontra 8 . Essa compreensão, de Antonio Gramsci, levanta uma questão: é no enfrentamento da desagregação de grupos subalternos, por meio de seus intelectuais orgânicos, que a construção social de interesse público encontrará materialidade na ordem política e social?

Em Q3, Gramsci expõe que os grupos subalternos são variados, bastante divididos e distintos entre si; alguns grupos possuem diferentes níveis internos de subalternidade; outros possuem algum grau de organização; e há ainda aqueles desagregados. Em Q7, ele comenta que, somente por meio “de um longo processo e de uma luta complexa”, grupos subalternos conquistarão a tão cara autonomia para romper com a subordinação impetrada por grupos dominantes, e, para que essa luta logre êxito, torna-se necessário compreender, inicialmente, aquilo que confere flexibilidade e durabilidade à “estrutura da classe dominante”; aquilo que permite aos mecanismos institucionais imprimir a sua visão de mundo e valores 8 .

Entendendo que o Estado de formação social capitalista emerge da sociedade complexa quando esta se contradiz por meio de sua divisão de classes, ele se instaura, então, como um poder acima da sociedade com a função de mantê-la em ordem 9 , mesmo que dela tenha surgido. Partindo desse pressuposto apontado por Engels, pode-se pensar que, em um Estado democrático, este é o responsável pela defesa dos interesses de seu povo.

Sinteticamente, o Estado poderia ser definido como o “Conjunto de instituições permanentes – como órgãos legislativos, tribunais, exército e outras [...] – que possibilitam a ação do governo”, enquanto o governo, em si, poderia ser caracterizado como o “[...] conjunto de programas e projetos que parte da sociedade (políticos, técnicos, organismos da sociedade civil e outros) propõe para a sociedade como um todo”, assim, conclui-se que é “[...] a orientação política de um determinado governo que assume e desempenha as funções de Estado por um determinado período” 10 (p. 31). Essa assunção possibilita compreender por que o período de redemocratização do país, apesar de ser o garantidor de direitos sociais imprescindíveis a uma nação democrática, esboça falhas em sua concretização até os dias atuais. O que se lê como direito de todos e dever do Estado na Constituição Cidadã é, infinitamente, divergente do que se vê, desde sua promulgação, na prática das políticas públicas.

A saúde pode, então, ser apenas mais um exemplo dessa contradição entre dever do Estado e políticas de governo. Temos o Sistema Único de Saúde efetivado por meio de sua lei orgânica em 1990, porém, nestes mais de 20 anos, essa conquista vem se realizando às custas de vetos e de restrições orçamentárias ao que deveria ser a concretização de um direito social.

Diante do atual cenário político e social vivido pelo Brasil, no qual é sentido o histórico desinteresse da esfera política brasileira para com as necessidades da população, agravado pela construção de uma aparente desmotivação generalizada no poder do voto e nas figuras públicas banalizadas pela corrupção, alguns questionamentos são essenciais:

O que é interesse público hoje no Brasil? E, ainda, como realizar interesse público na saúde em um Estado enfraquecido, na alternância de governos em um sistema político desacreditado?

O desafio deste artigo está, então, em recuperar, em um passado recente, os sentidos atribuídos a interesse público na saúde, mais especificamente em publicações do periódico Saúde em Debate, vinculado ao Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). O CEBES é reconhecido, aqui, por sua militância enquanto membro do Movimento da Reforma Sanitária e defensor do direito universal à saúde e da concretização do SUS conquistado na década de 1980 para um Estado democrático de direito.

MÉTODO

A revisão no periódico Saúde em Debate, vinculado ao CEBES, foi impulsionada por uma pesquisa aprovada em Comitê de Ética sob o parecer nº 1.358.527, tendo como objeto central de estudo o termo jurídico “interesse público” frequentemente empregado nas legislações relativas à saúde da população brasileira, tanto no domínio público quanto no privado. Elegeu-se a natureza qualitativa para o estudo, o qual se desenvolveu por meio de pesquisa documental.

O recorte histórico eleito para a pesquisa está entre as publicações de 1985 e 2000 do periódico Saúde em Debate. Em uma primeira exploração, foi verificado que existiam 41 edições disponíveis da Revista publicadas nesse período.

A medida em que se avançou nessa fase exploratória, preencheu-se uma planilha de Excel® com os artigos selecionados por amostragem, conforme título, palavras-chave e primeira leitura. A revisão visou, em um primeiro momento, à pré-seleção dos artigos pertinentes à temática, no período de 1985 a 2000. Essa etapa foi sucedida por novas leituras, com fins de seleção dos textos que seriam analisados posteriormente.

Das 41 edições sinalizadas no início dessa primeira fase da pesquisa, foram destacados 90 artigos de 31 números diferentes da Revista. Desses 90 artigos, procedeu-se a leituras mais detalhadas de cada um, a fim de identificar aqueles que poderiam apresentar elementos que guardassem sentidos de interesse público na saúde. Essa seleção deu-se pela busca de textos que expressassem a necessidade de políticas voltadas ao bem comum, considerando a preconcepção das autoras sobre interesse público.

Nos resultados apresentados a seguir, constam citações diretas de trechos retirados de 7 artigos datados de 1985 a 1991, os quais, apreciados com maior detalhamento, seguem informados no Quadro 1 .

Quadro 1 Relação dos artigos selecionados para análise por: título, ano de publicação, autor(es) e codinome para citação direta  

Título do artigo Ano de publicação Autor(es) Codinome para citação
Subsídios para definição de uma política de atenção à saúde para um governo de transição democrática 1985 Eleutério Rodriguez Neto Texto 1 27
Diretrizes básicas para o setor saúde no governo democrático 1985 Grupo Saúde Diretório Central – PMDB Texto 2 28
A questão da saúde no Brasil e diretrizes de um programa para um governo democrático 1985 CONASS - Conselho Nacional de Secretários de Saúde Texto 3 29
Constituinte: o que os consumidores querem 1987 Relatório final da Conferência Nacional de Saúde do Consumidor Texto 4 30
Consumo: resposta à necessidade ou ao interesse da produção? 1987 José Augusto C. Barros Texto 5 31
Saúde na Constituinte: a defesa da emenda popular 1988 Sério Arouca Texto 6 32
A Lei Orgânica da Saúde é Orgânica a quem? 1991 Emerson E. Merhy Texto 7 33

Foram agregados a esse quadro codinomes aos textos estudados e que possuem citações diretas no corpo do artigo, a fim de possibilitar ao leitor a diferenciação dos autores utilizados na análise e na discussão dos dados daqueles efetivamente citados como resultado da coleta de dados no periódico.

Iniciou-se o processo de grifos e destaque de trechos dos artigos que transmitiram a ideia de interesse público a ser defendido pelo Estado. Na etapa de codificação e sistematização do material, notou-se que os objetos dos artigos analisados se distinguiam conforme o momento histórico vivenciado no país, relativo à saúde de população. Assim, os artigos foram dispostos em única categoria analítica: Justiça Social e Redemocratização .

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise dos textos gerou a compreensão de que os artigos explorados na primeira etapa refletiram, especialmente, o tema determinação social, modelo teórico explicativo de saúde e doença capitaneado pelo Movimento de Medicina Social, do século XIX 11 . Observou-se que essa produção teve um cunho político e propositivo para uma nova postura econômica e social em um governo de transição democrática. Dando sequência a essa reflexão, de forma orgânica ao debate da determinação social, surgiram nos artigos as discussões vinculadas ao texto da Constituição, especificamente o capítulo da saúde. Por fim, foram extraídos dos artigos da década de 1990 as discussões sobre a Lei Orgânica da Saúde, os ganhos e as perdas a partir do governo Collor, comparando-os às propostas e às expectativas do Movimento da Reforma Sanitária.

Justiça social e redemocratização

Em meados da década de 1980, quando se iniciou esse garimpo por sentidos atribuídos a interesse público na saúde, o CEBES já exercia suas atividades, há quase uma década, estruturadas na pessoa jurídica do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, estando diretamente associadas ao Movimento de Reforma Sanitária (MRS).

Mesmo após a mobilização civil nacional que protagonizou o “Diretas Já!”, em 1984, durante o governo Figueiredo, a eleição de Tancredo Neves, em 1985, marcou, de forma indireta, o que seria a última eleição de governos militares 12 . O Brasil, mergulhado em intensa crise econômica e social, dava sinais do esgotamento ao qual chegara a política econômica adotada pelos governos militares que se sucediam no poder.

No período anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, artigos publicados no periódico do CEBES sinalizaram que a política econômica reinava como responsável pela restrição do acesso da população a bens essenciais, afetando, então, as condições de saúde do povo brasileiro. Nesse âmbito, cabe citar fragmentos de duas produções:

Sendo saúde expressão da qualidade de vida das populações, não escapou a deterioração observada, [...] as mudanças no setor devem estar compatibilizadas com uma política econômica e social que permita um desenvolvimento, com justa distribuição de renda, voltado para os reais interesses da Nação e que vise ao objetivo último da justiça social (Texto 3).

[…] a melhoria das condições de saúde da população só pode advir de uma política econômica socialmente justa que permita condições de vida mais adequadas à maioria da população (Texto 1).

Ao considerar a saúde como “resultante das formas de organização social de produção” e de suas condições 13 , essas formas e, consequentemente, as escolhas econômicas passaram a ser entendidas como corresponsáveis pela conjuntura decadente delineada no campo da saúde, no período da luta pela redemocratização.

Assim, as escolhas históricas que culminaram na efetivação de uma sociedade de restrições e de limitações a direitos essenciais e básicos, inerentes à ausência de garantia de condições dignas de vida, dependentes das formas de organização da produção, impuseram-se como fator indispensável para reflexão de nossas estruturas e condutas políticas de saúde até os dias atuais.

Instalada em 1964, sob o pretexto de restauração de um regime democrático 14 , a ditadura militar no Brasil durou mais de 20 anos, tendo seu fim anunciado, a partir de 1985, no governo Sarney. Apesar de não conseguir restaurar a economia brasileira, mesmo com as constantes trocas de moeda, tentativas de planos econômicos 12 e discreta atuação em termos de políticas sociais, esse governo foi importante para a futura restauração do Estado de direito.

Durante os anos de ditadura, as ações de saúde dos governos militares centraram-se, basicamente, na compra de serviços prestados pelo setor privado 14 , que fora fortemente incentivado em detrimento da criação de políticas de Estado visando à estruturação da saúde pública de qualidade.

Nesse sentido, a luta pela redemocratização do país assumiu a dianteira em publicações vinculadas pelo CEBES, em especial no período pré-Constituinte, na concepção de que, na ausência do Estado democrático, não seria possível realizar ações que fossem voltadas às necessidades reais do povo e, dessa forma, não se trabalharia em nenhuma frente (nem econômica, nem social) pelo interesse público.

Assim, assume-se a importante reflexão sobre a constituição de um Estado ético, como consta em Gramsci, “[...] capaz de ultrapassar os conflitos da sociedade civil e garantir o funcionamento do todo”, no qual uma sociedade é capaz de se autogovernar devido à formação de “consciência histórica” da realidade e elevação das massas 15 (p. 66) para superação dos conflitos hoje existentes na relação entre Estado, governo e sociedade civil, que estão visivelmente desencontrados no país.

Na constituição desse Estado ético, imagina-se que existiria um decréscimo da dependência da burocracia estatal por meio da elevação das massas e da superação da subalternidade, tornando-se efetiva, de fato, a construção de uma sociedade cidadã democrática.

A superação da subalternidade, apesar de utilizada por muitos na descrição de [...] “condições de vida de grupos e camadas de classe em situações de exploração ou destituídos dos meios suficientes para uma vida digna”, em Gramsci, encontra um sentido maior, tratando-se também de “[...] recuperar os processos de dominação presentes na sociedade” 16 (p. 42). Os grupos dominantes no Estado controlam os aparelhos coercitivos do governo, mas não detêm “o controle absoluto e exclusivo da sociedade civil”. Eles dominam porque possuem um fantástico aparelho composto por mecanismos institucionais que possibilitam instilar, de modo direto e indireto, sua visão de mundo e valores com a opinião pública. No entanto, esses grupos precisam mostrar que usufruem “[...] do consenso livremente acordado pelo povo” 8 (p. 746) e sabem que a sociedade civil, composta por organismos sociais privados (sindicatos, partidos, associações, escolas, jornais, organizações dos mais variados tipos), é aquela que tem por objetivo “[...] a transformação do modo de pensar dos homens” 17 . Dito de outro modo, os grupos dominantes têm interesse em chancelar a sociedade civil como “[...] o conteúdo ético do Estado” 18 (p. 703). Logo, o resgate da categoria subalternidade faz-se atual e propícia, tanto na discussão das consequências no regime de exceção às condições de vida da população brasileira no período histórico de pré-redemocratização quanto na análise do atual cenário político.

[...] as atuais condições de vida e saúde da população brasileira refletem de modo direto e alarmante o elevado custo social deste crescimento, voltado predominantemente para a acumulação de capital... (Texto 2).

Esse pensamento acerca do modelo econômico como responsável pelas condições de vida da população, explicitado em diferentes artigos da Revista Saúde em Debate, é notadamente coerente com o conceito de saúde associado de determinação social, discutido e assumido no Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) 13 .

Tomando a saúde como produto histórico, entendia-se que, enquanto a conduta econômica adotada pelos governantes mantivesse o privilégio a poucos em detrimento de muitos, não haveria ações realmente efetivas nesse setor, pois não seria possível “ser saudável” em um sistema econômico desigual, no qual prevaleciam situações sociais, como desemprego, violência e arrocho salarial.

Nessa lógica, onde houvesse injustiça social, também seriam injustas as condições de habitação, alimentação, trabalho, lazer etc. Logo, viu-se que modelo de saúde assimilado por alguns autores por meio do periódico estudado era o da Medicina Social, fugindo ao biologicismo hegemonizado pelo regime ditatorial.

Assumindo a determinação social do processo saúde-doença dos indivíduos e das sociedades, entende-se que a saúde, a exemplo de outros campos de estudo, torna-se em “potencial criticamente sensível” às práticas políticas. Assim, em um Estado democrático, poder-se-ia almejar a discussão dessas questões, diferentemente da realidade imposta pelo Estado de exceção. Contudo, até a atualidade, vê-se uma dificuldade – no âmbito das práticas de saúde coletiva – em afirmar a determinação social da saúde como teoria, algo que pode ser atribuído à natureza epistemológica de seus estudos, enquanto a hegemonia acadêmica posta no Brasil e no mundo assimila como verdadeiros os modelos epidemiológicos restritivos 19 .

Os debates que circundam o estabelecimento de um Estado democrático e a alteração de paradigmas na concepção de saúde por meio da retomada da Medicina Social, conforme verificado nesta pesquisa, até a contemporaneidade configuram-se como temas atuais ao refletir sobre as ações de saúde realizadas no Brasil e sobre a formação de recursos humanos para o sistema.

Contudo, a complexidade do sistema político posto hoje no país, que permite que coligações e interesses partidários sobreponham-se ao que realmente importa ao povo, associada à indefinição do Estado brasileiro, ora patriarca na cobrança de impostos para suposta concretização dos direitos constitucionais, ora mínimo no sucateamento das estruturas públicas e favorecimento a interesses econômicos privados, configura-se como uma barreira para a compreensão dos papéis das estruturas pública e privada com relação à defesa do interesse público.

Hoje, a concretização de um sistema de saúde universal que considere a forma de organização social como determinante de suas práticas esbarra na incompreensão do confuso capitalismo nacional, tardio, imaturo e de execução incoerente ao direito à saúde conquistado em 1988.

Durante o período de transição ditadura/sociedade democrática, em especial entre os anos de 1984/85, o Movimento Sanitário conseguiu grandes avanços ao colocar em pauta questões de saúde – a exemplo da possível unificação do sistema 12 . Nos artigos analisados, viu-se emergir a proposta, para o governo de transição democrática, de um modelo de sistema no qual se refletisse sobre possíveis estratégias para a concretização da determinação social como modelo teórico explicativo de saúde e doença.

Alguns autores, em especial nos artigos de 1985, ressaltavam também a importância do avanço à universalização do atendimento à saúde de toda população e da busca pela equidade.

Na 8ª CNS, na qual o Movimento da Reforma Sanitária foi um dos protagonistas, nota-se, no eixo que discute a reformulação do sistema, a articulação entre sugestões para organização do serviço, acesso e recursos humanos – itens que seriam, posteriormente, agregados à Lei Orgânica da Saúde (LOS) –, a exemplo da universalidade, equidade, descentralização, participação popular etc. 13 .

Na década de 1990, porém, temas também discutidos com amplitude na 8ª CNS, a exemplo do financiamento do setor público e da relação com o setor privado, foram notadamente ignorados na LOS, sendo foco de inúmeros vetos.

A relação de consumo também foi pautada na Constituição, especificamente no art. 5º, que dispõe sobre a proteção do consumidor como direito fundamental a ser promovido pelo Estado. Foi por meio do texto da Constituição que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi efetivado pela Lei nº 8.078/90 20 , de forma semelhante a outras legislações surgidas no período, como a própria LOS.

Para o Estado, conforme se lê no CDC, o consumidor é considerado aquele que utiliza, como destinatário final, um produto ou serviço e, portanto, é sempre a parte mais vulnerável da relação de consumo. Daí emerge a necessidade de ser defendido pelo Estado 20 .

No Relatório Final da Conferência Nacional de Saúde do Consumidor realizada em 1986, divulgado pelo periódico aqui estudado, são externadas as expectativas de toda sociedade e do MRS com relação à urgência em priorizar as necessidades da população em detrimento de interesses privados, conforme realizado durante todo período da ditadura:

Obrigação das empresas farmacêuticas de abastecer o mercado, em primeiro lugar, com medicamentos básicos e essenciais: Obrigação das empresas farmacêuticas de manter o nível de produção com base na média do consumo [...]; Necessidade de ser considerado pelo profissional o poder aquisitivo do paciente e o preço do medicamento (Texto 4).

Percebe-se, na contemporaneidade, que, apesar da facilitação do acesso a produtos básicos da indústria farmacêutica, foi também facilitado e incentivado o consumo em excesso deles, da mesma forma que se incentiva, hoje, a busca por exames e procedimentos considerados de alta complexidade tecnológica como garantia de acesso à saúde. Essa lógica que incentiva o consumo de drogas e exames como produto de primeira necessidade diverge da lógica da determinação social da saúde que se tentava imprimir no período estudado nesta pesquisa.

Portanto, nota-se que, mesmo com a instauração da redemocratização e a garantia constitucional de direito à saúde e à defesa por parte do Estado, mantêm-se até hoje ativas muitas práticas de perspectiva biológica e privatista na saúde, conforme fomentado no Estado de exceção.

Essa hegemonização do pensamento biomédico na formação em saúde deu-se em decorrência da normatização e da organização do ensino superior realizada por meio da Lei nº 5.540, imposta pelo Estado autoritário brasileiro no final da década de 1960 21 , cuja base teórica de implementação centrava-se no relatório Flexner 11 .

Nesse cenário, também foi discutida a relação entre o consumo de saúde como um produto da hegemonia capitalista formada tardiamente no Brasil, bem como o fomento do modelo biomédico e hospitalocêntrico de saúde por meio da compra de serviços privados.

A geração ininterrupta de novas necessidades tem sido o meio pelo qual os produtores – não estando imunes neste modo de agir a indústria farmacêutica e de equipamentos médico-hospitalares – viabilizando a ampliação de seus lucros, valendo-se, para isto, das mais diversas estratégias mercadológicas [...] a criação de novos hábitos ou a modificação de antigos comportamentos [...] (Texto 5).

Esse autor traz, em 1987, reflexões que podem ser assumidas até a atualidade sobre as dificuldades geradas no âmbito da saúde em compatibilizar interesses de acumulação de capital com a melhoria de serviços prestados à população em geral. Trocando em miúdos, como compatibilizar os interesses privados do capital com ações voltadas ao interesse público?

Contrapondo-se à hegemonia biomédica, a ótica social na determinação do processo saúde-doença tem suas raízes no Movimento de Medicina Social protagonizado pelo estudo de Friedrich Engels, “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra” 22 , e pelo estudo epidemiológico sobre o tifo, realizado na Silesia, em 1848, por Rudolf Virchow 23 .

Sérgio Arouca, por intermédio de artigo estudado nesta pesquisa, divulgava as mazelas do modelo econômico e das políticas de saúde vivenciadas pela população, introduzindo propostas do MRS para o Brasil democrático e o tratamento devido da saúde na nova Constituição. Assim, propôs:

Um sistema de saúde único, que coordena no nível federal todas as instituições [...]. Ele tem que estar baseado nas necessidades reais da população brasileira. Que ninguém seja internado simplesmente por mecanismos de mercado, que nenhum brasileiro deixe de receber medicamentos porque o preço não está na forma adequada [...] que o novo sistema de saúde, democratizado, com controle social, represente uma forma honesta, ideal às nossas esperanças (Texto 6).

Todavia, a estagnação no tratamento das questões públicas, assumida pelos governos a partir da década de 1990, distancia as políticas da concretização diária do direito à saúde. Essa estagnação coloca historicamente o SUS como estrutura a ser destinada àqueles menos favorecidos economicamente, distorcendo em sua totalidade o sentido da universalidade.

No Brasil, um dos grandes desafios da militância pela saúde hoje se delineia na concepção, por parte dos governos, do Estado e, em especial, da sociedade civil, de que o SUS não é, nem nunca será, um plano de saúde para pobres, mas sim um direito de todos a ser respeitado e concretizado por meio de políticas públicas de valorização desse serviço, bem como da busca constante por políticas econômicas que visem à justiça social como fim.

Confirmando os temores de alguns autores, os artigos de 1990, 1991 e 1992 mostraram-se de cunho especialmente críticos à Lei Orgânica e às propostas de financiamento do SUS. A partir da década de 1990, com o início da abertura do Estado ao neoliberalismo, os ideais da Reforma Sanitária foram visivelmente abstraídos na Legislação vetada pelo governo:

A atual LOS em exercício, a vetada, é orgânica aos interesses de uma minoria, e tem sérios compromissos com um projeto de sociedade que irá transformar o Brasil em um país “anti-vida”, no qual as pessoas não terão nem o mínimo direito à saúde como coloca o artigo 196 da Constituição (Texto 7).

Considerando que o Estado deve primar pelo interesse público e que os governos, por serem transitórios, tendem a colocar os interesses privados à frente das necessidades gerais da nação 24 , entende-se a dificuldade, desde o período relatado nesta revisão até os dias atuais, de efetivar a política pública de saúde como direito de todos com a qualidade devida no transcorrer de todos os governos já passados desde a promulgação da Constituição.

Torna-se imperativo defender coletivamente que, a um só tempo, o interesse público “[...] representa a dimensão ética da escolha pública democrática [...] e a própria finalidade do SUS conquistado na VIII Conferência Nacional de Saúde”, pois esse interesse (público) “[...] inicia e completa o Sistema democraticamente conquistado” 25 (p. 15). Torna-se imperativo também que o Estado democrático de direito se realize por meio de uma democracia conectada com o conceito de hegemonia: uma democracia que exista “[...] entre o grupo dirigente e os grupos dirigidos” 18 (p. 1056). Torna-se imperativo, ainda, que governos não operem em regime paternalista, como “[...] um partido [...] para harmonizar seus interesses”, mas por meio de um “[...] vínculo pedagógico [...] de hegemonia” 18 (p. 1331), constituído de “uma relação continuada e permanente [com] governados que realiza uma vontade coletiva” 26 .

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa realizada no periódico Saúde em Debate, editado pelo CEBES, centrou-se na reflexão crítica de trechos destacados em 7 artigos específicos relatados ao longo dos resultados e da discussão do trabalho.

Merecem destaque os debates acerca do processo de redemocratização do país, na década de 1980, a retomada dos pensamentos de Medicina Social, dirigidos pela determinação social da saúde e pelos ideais de justiça social, adotados como bases teóricas na luta por uma nova práxis nesse setor. Destaca-se também a derrubada, a partir da LOS vetada pelo então presidente Collor, do projeto para um novo sistema de saúde conforme idealizado pelo MRS.

Considerando o processo histórico de luta do MRS, desde a década de 1970 até a atualidade, nota-se que a concretização de ações de interesse público requer profunda resistência à desagregação de grupos subalternos e de aparelhos privados de hegemonia, no sentido de centralizar o direito de a sociedade usuária do SUS ter direito de usufruir do sistema de saúde universal conquistado. Para tanto, torna-se necessário realizar o Estado democrático de direito em um sistema hegemônico. Em Estado de exceção, não há justiça social. Contudo, é essencial que se pense também sobre o sistema político vigente.

Dessa forma, considerando a relação Estado, governo e sociedade civil, conclui-se que o papel do primeiro é o de constituir-se em um sistema hegemônico para zelar pelo interesse público, pois emergiu da sociedade com a finalidade de ordená-la, organizá-la e defendê-la; os governos, por sua vez, transitórios nas diretrizes do Estado, devem trabalhar para que seus interesses privados não se sobreponham ao público, uma vez que pelo público devem ser eleitos e fiscalizados. A sociedade civil, enquanto parte do Estado e dele dependente, deve fazer valer a democracia e a soberania popular, elegendo somente governos que de fato representem seus interesses.

REFERÊNCIAS

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