versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde vol.23 no.3 Brasília jul./set. 2014
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742014000300012
to describe agricultural pesticide poisoning cases in northeast Brazilian states, 1999-2009.
this was a descriptive case series study conducted using data from the National Poisoning Information System (Sinitox) for six northeast Brazilian states.
9669 cases of poisoning were registered between 1999-2009. Pernambuco was the state with the largest number of records (39.5%). Suicide attempt was the principal event involved (69.8%). The majority of cases progressed to healing (75.6%), 7.1% progressed to death. 1999 and2001 showed the lowest incidence rates (both with 1.0/100,000) and higher lethality (12.6% and 10.4%, respectively). The highest incidence rate (3.5/100,000) and lowest lethality (6.9%) occurred in 2005.
despite high incidence, a downward trend in the records was observed after2005. However, intermittent data incompleteness partially limited the comprehension of the phenomenon.
Key words: Descriptive Epidemiology; Poisoning; Pesticides; Lethality; Occupational Health
describir los casos de intoxicaciones por pesticidas de uso agrícola en estados de la región Nordeste de Brasil, en el período 1999-2009.
estudio descriptivo, de tipo serie de casos, sobre datos del Sistema Nacional de Informaciones Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) de seis estados del Nordeste.
en el período analizado, se registraron 9.669 casos de intoxicación; Pernambuco fue el estado con mayor número de registros (39,5%); el intento de suicidio fue la principal circunstancia involucrada (69,8%); la mayor parte de los casos evolucionó para cura (75,6%); 7,1% resultaron en óbito; las menores tasas de incidencia (ambas con 1,0/100 mil hab.) y la mayor letalidad se observaron en los años de 1999 y 2001 (12,6% y 10,4%, respectivamente); en 2005, se observó la mayor tasa de incidencia (3,5/100 mil hab.) y la menor letalidad (6,9%).
a pesar de la incidencia elevada, se constató una disminución de los registros después del año 2005; sin embargo la intermitencia de completitud limitó, parcialmente, la comprensión del fenómeno.
Palabras-clave: Epidemiología Descriptiva; Intoxicación; Plaguicidas; Letalidad; Salud laboral
O Brasil ocupa o lugar de maior consumidor de agrotóxicos no mundo. Os impactos do uso de agrotóxicos para a Saúde Pública são amplos, atingem vastos territórios e envolvem diferentes grupos populacionais, como trabalhadores de diversos ramos de atividades.1 Os agrotóxicos estão entre os mais importantes fatores de risco à saúde da população geral, especialmente dos trabalhadores, e ao meio ambiente.2
Segundo dados do último censo agropecuário, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2006, havia aproximadamente 16 milhões de trabalhadores envolvidos com a atividade agropecuária no país e estimava-se em torno de 533 mil trabalhadores intoxicados por agrotóxicos naquele ano.3
No período de 1999 a 2009, o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) notificou cerca de 62 mil intoxicações por agrotóxicos de uso agrícola, resultando em cerca de 5.600 intoxicações por ano no país, o que equivale a uma média de 15,5 intoxicações diárias, ou uma a cada 90 minutos.4
No ano de 2013, o registro dos dados de intoxicação por agrotóxicos era feito por dois sistemas: o Sinitox, vinculado à Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), e o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), diretamente ligado ao Ministério da Saúde.5
A notificação é ferramenta imprescindível à vigilância epidemiológica, por constituir fator desencadeador do processo informação-decisão-ação.6 Porém, mantém-se elevado o índice de subnotificação dos casos de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola no país, sobretudo em sua região Nordeste, representando um dos principais desafios dos governos federal, regionais e locais na área sanitária.
No Sinan, as notificações de intoxicação por agrotóxicos passaram a ser compulsórias em janeiro de 2011. Segundo dados do Sinitox, no período de 1999 a 2009, alguns estados brasileiros não disponibilizaram dados sobre intoxicações por agrotóxico, como é o caso de Amapá, Roraima, Acre, Rondônia e Tocantins na região Norte, Maranhão e Alagoas na região Nordeste.7 Ao mesmo tempo, dados de outros estados são intermitentes, ou seja, não estão disponíveis para todos os anos do período analisado, a saber: na região Norte, o estado do Amazonas; na região Nordeste, Piauí, Bahia, Sergipe e Pernambuco; na região Centro-Oeste, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; e finalmente, na região Sul, Santa Catarina.4
Esses dados epidemiológicos são de extrema importância para a elaboração de políticas públicas de saúde que objetivem reduzir a ocorrência dos casos de intoxicação por agrotóxicos. Nessa perspectiva, o presente trabalho objetivou descrever os casos de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola em estados do Nordeste brasileiro, no período de 1999 a 2009.
Estudo descritivo, de tipo série de casos, realizado a partir do levantamento dos casos de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola na região Nordeste do Brasil, no período 1999 a 2009, disponíveis na base de dados do Sinitox.
A escolha desse recorte temporal deveu-se à implantação, no ano de 1999, da Ficha de Notificação e de Atendimento nos Centros de Informação e Assistência Toxicológica (CIAT) da Rede Nacional de Centros de Informação e Assistência Toxicológica (Renaciat). Além disso, a plataforma do Sinitox divulgou, na ocasião da coleta, informações até o ano de 2009, configurando-se, assim, o limite superior do período estudado.
A população-alvo do estudo constituiu-se de todos os casos de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola no Nordeste brasileiro, notificados e disponíveis no Sinitox, no recorte temporal supracitado. Os dados do Sinitox foram acessados no mês de janeiro de 2013. O Nordeste possui o terceiro maior território, representa a terceira maior economia e produto interno bruto (PIB) e constitui a segunda região mais populosa do país. Porém, a região vivencia sérios problemas socioeconômicos, apresentando o menor índice de desenvolvimento humano (IDH) entre as cinco macrorregiões nacionais. A agricultura e a agropecuária são suas principais atividades econômicas, sendo a agricultura familiar de subsistência uma importante modalidade de cultivo, ainda que prejudicada pelas constantes estiagens. Os principais produtos cultivados no Nordeste são: cana-de-açúcar; soja; algodão; frutas (caju, uvas finas, manga, melão, acerola e outras, para consumo interno e exportação); cacau; e feijão.8 , 9
Para sua inclusão neste estudo, as Unidades da Federação (UF) da região Nordeste deveriam possuir ao menos um CIAT, instituição responsável por enviar os dados ao Sinitox, e ter dados divulgados em - pelo menos - metade do recorte temporal estabelecido. Dessa maneira, no período 1999-2009, sobre o qual foi realizado o estudo, entre os 37 Centros de Informação e Assistência Toxicológica existentes em 19 estados brasileiros, Maranhão e Alagoas ainda não faziam parte da Renaciat; e o Piauí iniciou o repasse de seus dados apenas em 2006. Os três estados foram excluídos da análise deste estudo, reservando-se a participação ao Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Bahia e Sergipe.
Entre as variáveis disponibilizadas pelo sistema de notificação, foram descritas neste estudo (i) a circunstância da intoxicação (acidente individual; acidente coletivo; acidente ambiental; acidente ocupacional; uso terapêutico; erro de administração; automedicação; abuso; ingestão de alimentos; tentativa de suicídio; tentativa de aborto; violência/homicídio; uso indevido; ignorada; e outra) e (ii) a evolução clínica (cura; sequela; óbito; óbito por outra circunstância; outra; e ignorada).
Para a extração dos dados, utilizou-se um formulário composto por blocos pertinentes a cada grupo dessas variáveis. O processamento dos dados foi realizado pelo programa Epi Info, versão 3.5.1; e sua análise, por estatísticas descritivas. Também calculou-se a taxa de incidência, a taxa média de incidência e o coeficiente de letalidade da intoxicação por agrotóxico de uso agrícola.
O cálculo da taxa de incidência foi estabelecido para cada ano separadamente, mediante a divisão do número de casos novos de intoxicação por uso do agrotóxico agrícola pelo número de pessoas sob risco de exposição durante o mesmo período, multiplicando-se esse resultado por 100 mil. Para a incidência do período estudado (1999-2009), calculou-se a média aritmética das taxas anuais. O número de pessoas expostas ao risco de intoxicação foi expresso pela estimativa da população residente nos seis estados nordestinos estudados, fornecida pelos estudos censitários e intercensitários do IBGE, disponibilizados pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus).10
O coeficiente de letalidade foi calculado pelo quociente entre o número de óbitos decorrentes das intoxicações por agrotóxicos de uso agrícola e o número total de ocorrências nos estados, ambos comunicados e registrados no Sinitox, para cada ano considerado, por 100 indivíduos intoxicados. A letalidade durante o período estudado (1999-2009) resultou do cálculo da média dos coeficientes, sendo expressada também em percentuais.
O estudo utilizou informações secundárias fornecidas pelo Sinitox. Trata-se de uma base de acesso público e gratuito, sem identificação dos participantes, dispensando apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), conforme dispõe a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de dezembro de 2012.
No período de 1999 a 2009, foram registrados 9.669 casos de intoxicação por uso de agrotóxico agrícola; destes, 1.349 aconteceram no ano de 2005, o que equivale a 13,9% do total de registros nesse mesmo período. Os estados e os anos com maior número de casos foram: Pernambuco no ano de 2004 (n=627; 16,4%); Ceará em 2005 (n=334; 15,4%) e 2006 (n=357; 16,4%); Sergipe em 2002 (n=246; 24,6%); e Bahia em 2001 (n=197; 12%) (Tabela 1).
Tabela 1 Casos de intoxicação por agrotóxico de uso agrícola segundo Unidade da Federação, em seis estados da região Nordeste, 1999 a 2009
a) Ceará;
b) Rio Grande do Norte;
c) Paraíba;
d) Pernambuco;
e) Sergipe; e
f) Bahia.
Na série histórica dos 11 anos analisados (1999-2009), verificou-se incompletude intermitente dos casos. Pernambuco liderou o ranking dos casos de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola, com um total de 3.822 (39,5%) ocorrências. Em segundo lugar ficou o estado do Ceará, com 2.173 (22,5%) incidentes, e em terceiro a Bahia, com 1.648 (17,0%) (Tabela 1).
Verificou-se que em alguns dos anos estudados, não houve registro de casos: de 1999 a 2001 em Sergipe; em 2001 e 2002 em Pernambuco; em 2004 no Ceará; e em 2009 na Bahia.
A tentativa de suicídio (69,8%) foi a principal circunstância envolvida nos casos de intoxicação, seguida dos acidentes individuais (20,4%) e ocupacionais (5,4%) (Tabela 1).
A distribuição percentual das circunstâncias por ano indicou a tentativa de suicídio como evento mais frequente nos anos de 2005 e 2007: respectivamente, 74,4% e 72,9%. No ano de 1999, aconteceram 51 acidentes ocupacionais (33,7%). Em 2003, foram 353 (33,7%) acidentes individuais e em 2005, 236 (17,5%). Os acidentes coletivos, menos frequentes, tiveram maior representatividade no ano de 2001 (2,6% dos casos), a violência/homicídio em 2006 (1,6%). Independentemente da circunstância, o ano de 2005 apresentou o maior número de casos (1.349), imediatamente seguido pelos quantitativos correspondentes a 2007 (1.308) e 2006 (1.157) (Tabela 2).
Tabela 2 Casos de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola segundo a circunstância, em seis estados da região Nordeste,a 1999 a 2009
a) Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Sergipe e Bahia.
Com relação ao prognóstico clínico do total dos casos de intoxicação por agrotóxico de uso agrícola (Tabela 3), 75,6% evoluíram para a cura, 10,2% obtiveram cura não confirmada e 7,1% foram a óbito pelo envenenamento.
Tabela 3 Casos de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola segundo a evolução do caso, em seis estados da região Nordeste,a 1999 a 2009
a) Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Sergipe e Bahia.
No período analisado, a cura foi mais frequente nos anos de 2004 (85,6%), 2006 (83,9%) e 2007 (80,7%). A cura não confirmada foi mais frequente em 1999 (23,3%) e 2001 (30,3%). Os óbitos representaram 7,1% dos casos registrados nas Declarações de Óbito (DO) e informados ao Sinitox, sendo mais frequentes nos anos de 1999 (12,6%), 2000 (8,8%) e 2001 (10,4%). É relevante a quantidade de prognósticos ignorados (4,5%), mais evidentes em 2001 (12,7%), 1999 (7,7%) e 2000 (7,2%) (Tabela 3).
A taxa de incidência e o coeficiente de letalidade dos casos de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola entre 1999 e 2009, nos seis estados do Nordeste estudados, estão descritos na Tabela 4.
Tabela 4 Taxa de incidência e coeficiente de letalidade dos casos de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola, em seis estados da região Nordeste,a 1999 a 2009
a) Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Sergipe e Bahia.
No período analisado, as maiores taxas de incidência foram registradas nos anos de 2005 (3,5 por 100 mil habitantes) e 2007 (3,3/100 mil hab.), e a menor nos anos de 1999 e 2001 (1,0/100 mil hab.). A média da taxa de incidência foi de 2,3 casos por cada 100 mil habitantes. Os coeficientes de letalidade apresentaram valores de grande amplitude: 4,4% em 2004; 10,4% em 2002; e 12,6% em 1999. A média da letalidade no período investigado foi de 7,6% (Tabela 4).
No período 1999-2009, foram registrados 9.669 casos de intoxicação por agrotóxicos no Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas - Sinitox -, a maioria no estado de Pernambuco (39,5%). Tentativa de suicídio foi a principal circunstância envolvida (69,8%), a maior parte dos casos evoluiu para a cura (69,8%) e 7,1% tiveram como desfecho o óbito. Considerando-se as taxas de incidência e letalidade, os anos de 1999 e 2001 viram registrar as menores incidências (ambos com 1,0/100 mil hab.) e a maior letalidade (12,6% e 10,4%, respectivamente). A maior incidência (3,5/100 mil hab.) e a menor letalidade (6,9%) foram observadas em 2005. Verificou-se incompletude intermitente na séria histórica, dificultando sobremaneira a compreensão do fenômeno, bem como seu impacto para a Saúde Pública nos estados da região Nordeste analisados.
Pernambuco apresentou maior incidência de casos de intoxicação por agrotóxico de uso agrícola. Evidencia-se, entretanto, uma discrepância significativa no número de casos ao longo do período investigado: um aumento no número de casos no estado da ordem de 1.580% (15,8 vezes) em apenas um ano, de 1999 para 2000. E o número de casos notificados em Pernambuco ao longo dos 11 anos analisados poderia ser maior, visto que não houve repasse de notificações entre 2001 e 2002. Além disso, do ano 2000 para 2003, houve um aumento de 127,9%. O número de ocorrências no estado seguiu aumentando nos anos seguintes até 2005. A partir de então, observou-se uma redução do número de casos, um pequeno aumento em 2007, comparativamente ao ano anterior, e novamente diminuição nos anos subsequentes.
Estudo sobre as práticas de uso de agrotóxicos em plantadores de tomate no estado de Pernambuco observou que não havia um destino estabelecido para o descarte das embalagens vazias dos produtos, logo enterradas no próprio local de cultivo (fosse na área urbana ou na zona rural) ou armazenadas para queima posterior. Diversos agricultores sofreram algum tipo de intoxicação decorrente dessa exposição; e poucos informaram ter recebido instruções sobre o uso dos produtos, assim como dos equipamentos de proteção individual.11
Ainda de acordo com o estudo sobre o uso de agrotóxicos por plantadores de tomate em Pernambuco,11 dos 186 agricultores entrevistados, 36% utilizaram o Receituário Agronômico. Trata-se do instrumento mais adequado para obter informações sobre a quantidade dos agrotóxicos comercializados.12 Contudo, não se sabe o que é prescrito no Receituário, nem sobre o que é vendido oficialmente em lojas agrícolas, tão pouco o que é adquirido no comércio informal alimentado pelo contrabando,13 de forma que as informações sobre esse controle não são confiáveis. A compra pode ser realizada por qualquer pessoa, independentemente de ser agricultor ou não, o que aumenta o número de indivíduos expostos a essa fonte de intoxicação.
O Brasil vivencia uma potencial situação de risco em todo seu território, o que coloca o país em uma posição de vulnerabilidade diante dos interesses da indústria de agrotóxicos. A ausência (i) de um monitoramento da oferta e do consumo de produtos agrotóxicos e (ii) de conscientização acerca das complicações para a saúde advindas de seu uso podem contribuir para a piora desse quadro. Ademais, os registros oficiais são bastante limitados e, geralmente, referem-se apenas às intoxicações agudas por agrotóxicos, não oferecendo subsídios para definir prioridades de ação.
O Ceará apresentou o segundo maior número de casos de intoxicação notificados. No período de 1999 a 2003, aconteceu uma redução no número de ocorrências no estado, a cada ano. Entretanto, esse número praticamente dobrou (334) no ano de 2005, seguindo-se um pequeno acréscimo em 2006 (357) e, nos anos subsequentes, novamente redução. Assim como Pernambuco, o Ceará não apresenta dados de 2004, limitando a análise deste estado em particular e, consequentemente, impossibilitando a completude do diagnóstico situacional do Nordeste brasileiro.
O governo do Ceará, desde o final da década de 1980, investe na expansão do agronegócio. Com o advento do Pólo de Desenvolvimento Integrado Baixo Jaguaribe, responsável por mais de 50% da agricultura irrigada do estado, houve expansão da utilização intensiva dos agrotóxicos, tanto por parte das grandes empresas agrícolas como pela agricultura familiar e de subsistência.14
Segundo o Sindicato da Indústria de Defensivos Agrícolas (Sindag), considerando-se as vendas de agrotóxicos por UF no Brasil, o aumento das vendas de todas as classes de agrotóxicos no Ceará foi de cerca de 100% entre 2005 e 2009, passando de 1.649 para 3.284 toneladas/ano. Segundo dados do Censo Agropecuário de 2006, o estado do Ceará foi considerado o quarto do Brasil em número de estabelecimentos que usam agrotóxicos, atrás apenas dos estados do Sul do país: Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina.15 Corroborando os achados deste estudo, houve aumento considerável no número de casos no período estudado, possivelmente relacionado ao modelo de agronegócio dominante no país, em grande parte dependente do uso dos agrotóxicos; e se não por isso, esse aumento nesse número decorreria do aumento de notificações de casos.
A Bahia apresentou o terceiro maior número de casos de intoxicação por agrotóxico de uso agrícola. Nesse estado, em 1999, foram notificados 147 casos, seguindo-se redução de aproximadamente 50% no ano seguinte e, entre 2000 e 2008, uma ligeira flutuação entre os valores registrados; em 2009, não houve alimentação do Sinitox com dados do estado.
A Bahia está em constante avanço no campo da produção agrícola, a qual tem impulsionado o crescimento econômico do estado e o fortalecimento do setor graças à implementação do Plano Agrícola e Pecuário do Estado da Bahia 2010/2011. Como consequência, há uma convergência de ações visando o incremento da produção e o uso de agrotóxicos. A ampliação do risco de exposição humana a esses produtos, especialmente para os trabalhadores do campo, configura-se como uma premente questão de Saúde Pública.16
A exposição intencional (tentativa de suicídio) foi a principal circunstância envolvida nos casos de intoxicação. Outros estudos brasileiros indicam existência de forte associação entre o uso de determinados tipos de agrotóxicos (organofosforados, carbamates, piretróides sintéticos, dipirílicos, entre outros) e suicídios entre agricultores. Parte desses estudos tece essa associação, todavia, de forma preliminar.17 - 19 Algumas substâncias encontradas nos agrotóxicos de uso agrícola (especialmente o organofosforado e o manganês, além do glifosato, o endossulfam, o metamidofós, o picloran e o clorpirifós) podem afetar o sistema nervoso central, provocando transtornos psiquiátricos como ansiedade, irritabilidade, insônia ou sono conturbado (excesso de sonhos e/ou pesadelos) e depressão, e assim, muitas vezes, levar a pessoa intoxicada a ingerir o veneno usado na lavoura.20
Outro estudo analisou a associação entre suicídio e o endividamento causado pela dependência econômica, fruto do pacote agroquímico a que os agricultores estão submetidos.7 Para atender à crescente demanda de frutas, grãos e hortaliças, os agricultores são estimulados a utilizar grande variedade de produtos para aumentar a produtividade e reduzir as perdas. Esse uso indiscriminado de agrotóxicos coloca em risco a saúde dos produtores, do meio ambiente e dos consumidores.19
A escolha da ingestão voluntária do agrotóxico como agente letal, provavelmente, está relacionada à disponibilidade desse produto no campo.17 A facilidade de acesso e a variedade de agrotóxicos disponíveis no mercado são apontadas como importantes fatores contributivos para a alta incidência de intoxicações por esses produtos.21
Em contrapartida, as intoxicações pela exposição não intencional ou involuntária aos agrotóxicos podem acontecer por falta de conhecimento sobre os riscos à saúde implicados. Já o uso predominante dos inseticidas organofosforados na tentativa de suicídio reflete, paradoxalmente, um conhecimento real dessa população sobre a toxicidade aguda de tais compostos.17
Os organofosforados são os principais causadores das intoxicações humanas ocorridas no campo. Eles são inibidores da enzima acetilcolinesterase, a qual promove hidrólise da acetilcolina e consequente acúmulo desse neurotransmissor nos terminais nervosos, processo que estimula e bloqueia os receptores nicotínicos, afetando o sistema nervoso.22 No presente estudo, não foi possível investigar essa informação porque um incêndio na sede da Fiocruz/BA tornou indisponível o acesso via internet à base de dados do Sinitox, no momento preciso.
Além dos trabalhadores rurais, vale ressaltar, pessoas a transitar na lavoura durante ou após a aplicação de venenos, bem como aquelas que manipulam roupas usadas durante essa aplicação, também estão submetidas aos mesmos riscos de intoxicação.
Os acidentes coletivos alcançaram representatividade nos achados deste estudo, especialmente no ano de 2001. Segundo o Sinitox, esse tipo de acidentes é definido como 'quaisquer casos de intoxicação/exposição não intencionais causados por qualquer produto e/ou substância química envolvendo mais de uma vítima'.23 Infelizmente, os dados fornecidos pelo Sinitox são limitados no sentido de uma maior caracterização dessa forma de contaminação.
A larga utilização de agrotóxicos na agropecuária, entre outras aplicações, gera uma série de transtornos e modificações no ambiente, seja pela contaminação das comunidades de seres vivos que o compõem, seja pela acumulação desses produtos nos segmentos bióticos e abióticos dos ecossistemas (biota, água, ar, solo, sedimentos, etc.).24
A exposição coletiva pode ocorrer mediante contato com a água dita potável, muito embora possuidora de uma enorme gama de substancias tóxicas usadas na agricultura. Até então, a política adotada pelo Ministério da Saúde para controlar a qualidade da água a ser consumida pela população baseia-se no estabelecimento de limites aceitáveis de resíduos, o que implica uma questão de abordagem bastante complexa, já que nenhum estudo laboratorial pode comprovar que determinado nível de veneno é inócuo para a saúde humana.20
Uma das limitações do presente estudo relaciona-se à impossibilidade de investigar o prognóstico, devido à ausência de informações sobre o tipo de exposição (aguda, subaguda e crônica) na base de dados do Sinitox. A variabilidade na qualidade dos dados também deve ser considerada, haja vista a subnotificação de casos e a incompletude das informações disponibilizadas.
As intoxicações agudas tendem a ser as mais diagnosticadas, por conta do rápido aparecimento dos sintomas, em detrimento das subagudas (causadas por exposição pequena ou moderada a produtos alta ou medianamente tóxicos) e crônicas (cujo nexo causal é difícil de estabelecer, uma vez que seu surgimento é tardio e podem causar danos irreversíveis, incluindo paralisias e vários tipos de câncer).20
Uma investigação sobre a incidência de câncer em agricultores atendidos pelo Instituto do Câncer do Estado do Ceará demonstrou maior incidência nesses trabalhadores, na comparação com não agricultores atendidos, em 15 das 23 localizações anatômicas do câncer.15 De acordo com o mesmo estudo, o fato de ser agricultor garante um maior risco a esses indivíduos, em relação aos não agricultores, para desenvolver câncer de pênis (odds ratio ou OR: 6,44), leucemias (OR: 6,35), testículo (OR: 5,77), bexiga urinaria (OR: 1,88), mieloma múltiplo (OR: 1,83), mama masculina (OR: 1,67), linfomas (OR: 1,63), tecido conjuntivo (OR: 1,62), olhos e anexos (OR: 1,58), esôfago (OR: 1,40), cólon-junção retossigmoide (OR: 1,31), rim (OR: 1,30), laringe (OR: 1,30), próstata (OR: 1,17) e tireóide (OR: 1,12).15
Outrossim, dificilmente os trabalhadores rurais se expõem a um único tipo de agrotóxico. Constata-se uma multiplicidade de exposições, sistemáticas e de longo prazo, com episódios agudos de intoxicação por um dos grupos específicos. Para as próximas décadas, o grande desafio à toxicologia será a avaliação diagnóstica de indivíduos submetidos a múltiplas exposições por agrotóxicos no decorrer de muitos anos.20
A letalidade das intoxicações mostrou-se bastante variável na série histórica, possivelmente relacionada a diferentes proporções entre os tipos de intoxicação - agudas, subagudas, crônicas - observados no período. Ao se estabelecer um paralelo entre a letalidade e a taxa de incidência, compreendeu-se que os anos de 1999 e 2001 apresentam as menores taxas, embora a letalidade tenha atingido os maiores valores da série justamente nesses anos: 12,6% em 1999 e 10,4% em 2001. Da mesma forma, o ano de 2005 apresentou a maior taxa de incidência e, concomitantemente, redução na letalidade dos casos de intoxicação por agrotóxico de uso agrícola.
A letalidade tenderá a diminuir na medida em que for dedicada maior atenção a todos os fatores vinculados, direta ou indiretamente, à gênese desses acontecimentos. Aos agricultores, cabe (re)pensar o uso indiscriminado dos agrotóxicos, aos órgãos de fiscalização, fazer cumprir as leis de produção, uso dos produtos e recolhimento de seus vasilhames, e para a população geral, atender as recomendações educativas e as medidas de prevenção das intoxicações e suas consequências nocivas.
Igualmente necessário é sensibilizar os profissionais e gestores da Saúde para a importância do registro fidedigno das ocorrências de intoxicação por agrotóxicos e a necessidade de alimentação adequada dos sistemas de informações vigentes no Brasil. A subnotificação gera incompletude das informações e dificulta o planejamento de políticas de ação.
Com os resultados deste estudo, pretende-se incentivar a elaboração de uma agenda não apenas de pesquisa, mas também de vigilância em saúde, no intuito de buscar subsídios para a qualificação das equipes de saúde no melhor manejo dos casos agudos e crônicos e, assim, contribuir para a melhoria da qualidade de vida e saúde das populações, mediante intervenções específicas e ações de educação em saúde. Enfatiza-se, também, a necessidade de políticas públicas de natureza contínua, integradas a um amplo programa de controle de resíduos de agrotóxicos em alimentos para consumo humano.