versão impressa ISSN 1676-2444versão On-line ISSN 1678-4774
J. Bras. Patol. Med. Lab. vol.55 no.6 Rio de Janeiro nov./dez. 2019 Epub 02-Mar-2020
http://dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20190062
A tripanossomíase americana, ou doença de Chagas (DC), é causada por um protozoário flagelado, o Trypanosoma cruzi (T. cruzi). Há ocorrências dessa manifestação em 21 países das Américas, com incidência de 28 mil casos/ano e aproximadamente 12 mil mortes/ano. Estima-se que existam cerca de 8 milhões de indivíduos infectados((1)).
Considerada uma das principais doenças endêmicas infecciosas negligenciadas, principalmente pelo baixo
investimento da indústria farmacêutica e pela enfermidade, que ocorre exclusivamente no continente americano; sua forma de transmissão se dá pelo inseto triatomíneo (vetor). A doença passou a ser conhecida em regiões não endêmicas por meio das vias de transmissão alternativas (oral, congênita, transfusão de sangue, acidentes em laboratórios e transplantes de órgãos)((2-4)).
A transmissão clássica ocorre através do triatomíneo, que realiza repasto sanguíneo em um mamífero já infectado pelo protozoário. Ao realizar novo repasto sanguíneo em indivíduo saudável, o inseto elimina os tripomastigotas metacíclicos com as fezes e a urina, os quais penetrarão na lesão formada pela picada; dentro das células do hospedeiro vertebrado, transformam-se em amastigotas, que se multiplicam. Após a formação de ninhos intracelulares, ocorre outra diferenciação em tripomastigota; essa forma extravasa a célula e é liberada para a corrente sanguínea, podendo atingir outras células de qualquer tecido ou órgão((5)).
Os mecanismos alternativos para a transmissão da DC são muito importantes para o controle da saúde pública. Existe uma preocupação com relação a essas formas de transmissão, pois elas estão apresentando novas ocorrências epidemiológicas, sobretudo os casos orais e congênitos. Há casos notificados de DC congênita em países sul-americanos. O Brasil possui risco de transmissão congênita estimado em 1%; em outros países, como Argentina, Bolívia, Chile e Paraguai, o percentual chega a 8%(6,7). Nos países endêmicos, a transmissão vertical apresenta uma taxa de 5% se comparada com outras localidades (2,7%)(8).
É importante realizar o diagnóstico precoce em recém-nascidos de mães chagásicas, pois ainda não há medidas preventivas para a transmissão do T. cruzi ao feto, visto que não é recomendado o tratamento específico da doença durante a gestação devido aos efeitos colaterais e à toxicidade do medicamento(9). Quando é possível o diagnóstico, há maior probabilidade de se obter o controle da doença e sua evolução para formas clínicas(10). Para o diagnóstico das gestantes com suspeita de DC, são realizados testes sorológicos e métodos parasitológicos diretos, geralmente detectáveis quando se está na forma aguda, em que há alta parasitemia. Na fase crônica ou indeterminada da infecção, na qual há baixa parasitemia, métodos parasitológicos indiretos, sorológicos ou ferramentas de biologia molecular são empregados(11).
O tratamento para a DC é feito por administração oral de doses de benzonidazol, que ocasiona reações adversas no paciente, ou nifurtimox, um medicamento altamente tóxico. No entanto, apenas o primeiro é usualmente empregado no Brasil. O tratamento é recomendado independentemente do mecanismo adquirido, e não é indicado para gestantes, mulheres em lactação, indivíduos etilistas e em pacientes com histórico de insuficiência hepática(12).
Relato de caso de três membros de mesma família detectados com DC. Esses pacientes realizavam acompanhamento médico no Ambulatório de Moléstias Infecciosas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (HC-FMB). Família natural e residente na cidade de Taquarituba, interior do estado de São Paulo, município considerado no passado como importante área endêmica da DC, o qual requer constante vigilância epidemiológica(13).
A matriarca (67 anos) relata que em sua infância residiu em zona rural, habitando em casa construída de barro. Recorda-se de ter tido contato com o inseto triatomíneo e de tê-lo visto inúmeras vezes na parede da antiga casa; atualmente, reside em casa de alvenaria em área periurbana. Essa paciente descobriu ser portadora da DC crônica em 2013, por meio de um rastreio realizado nos membros de sua família através de diagnósticos sorológicos. Ela possui nove filhos; dois deles foram confirmados sororreagentes para a infecção por T. cruzi; outros quatro filhos obtiveram resultados negativos; e três deles se negaram a realizar os testes.
O filho (27 anos) positivo descobriu ser portador da doença no ano de 2012; relatou que nunca havia entrado em contato com o vetor. A partir desse fato, os outros membros da família foram convocados para serem examinados. Dos irmãos que aceitaram realizar o diagnóstico sorológico pelo HC-FMB, uma irmã (30 anos de idade) descobriu ser sororreagente em 2017; relatou também nunca ter tido contato com o vetor em nenhuma fase de sua vida. Ambos relataram não terem tido manifestação clínica semelhante ao que ocorre durante a fase aguda da infecção e que na infância viveram em casa de alvenaria em área periurbana; na fase jovem/adulto, residem em zona urbana. Esta paciente possui uma filha de quatro anos de idade que, até o momento, não havia sido submetida a nenhum teste específico.
Os diagnósticos parasitológicos foram realizados no Laboratório de Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Departamento de Doenças de Tropicais da FMB. Os diagnósticos diretos, que consistem em uma pequena gota de sangue venoso ou punção digital colocada sobre lâmina para a realização da leitura em microscópio, foram aplicados(14,15). Outra técnica aplicada foi a concentração de Strout modificado(16), a qual permite a demonstração do parasito em amostra proveniente da coleta de sangue, que passa por uma dupla centrifugação para análise do sedimento em microscópio(17,18). Esse método é eficaz quando o paciente encontra-se na fase aguda, momento em que ocorre a infecção pelo protozoário, sendo possível visualizar sua forma tripomastigota no sangue(14).
A determinação T. cruzi da fase crônica da doença é feita por métodos indiretos com o uso de técnicas de enriquecimento (hemocultura). Segundo Junqueira et al. (2011)(18), esta é uma técnica que possui de 30% a 79% de sensibilidade. Foram feitas semeaduras das porções de sangue em meio semissólido bifásico, compostas por ágar sangue em associação com meio líquido enriquecido, conforme proposta de Camargo (1964)(19). A introdução de modificações torna a técnica mais sensível e propicia a proliferação dos tripanossomatídeos no meio de cultivo(20).
Nessa fase também há no soro presença de altos níveis de anticorpos contra antígenos T. cruzi detectável por métodos sorológicos convencionais, como a reação de imunofluorescência indireta (RIFI), hemaglutinação indireta (HAI) e ensaio imunoenzinático (ELISA)(21). Testes sorológicos foram empregados usando a quimioluminescênia indireta, a HAI e a imunofluorescência, além de hemograma e proteína C reativa (PCR); todos conduzidos pelo Laboratório Clínico do HC-FMB.
O método parasitológico realizado nos pacientes chagásicos indicou que eles não se encontram na fase aguda da doença. Os testes laboratoriais para a detecção do T. cruzi são direcionados de acordo com a fase de infecção em que o paciente se encontra (aguda ou crônica). O método parasitológico possui alta especificidade em indivíduos que estão na fase aguda, porém apresenta baixa sensibilidade durante a fase crônica(22). A parasitemia subpatente nessa fase pode interferir nos resultados desse método, o que implica negatividade dos pacientes, ressaltando que um teste negativo não exclui a possibilidade da infecção(23,24).
Na fase crônica, é possível detectar o parasita com uso de métodos sorológicos que dependem da ligação da
imunoglobulina da classe G (IgG), um anticorpo específico anti-T. cruzi(3). De acordo com Ostermayer e Castro (1997)(25), os valores de referência dos testes sorológicos (reagente, não reagente e inconclusivo) são estabelecidos por cada laboratório conforme a técnica aplicada, o tipo/a marca de kit etc. Com base no histórico clínico dos pacientes deste relato de caso, observou-se que a sorologia aplicada (quimioluminescência e HAI) na matriarca em 2013 foi reagente (14,74s/Co). Esses exames não foram realizados nos anos posteriores devido à perda de seguimento clínico da paciente. Fez-se novamente o acompanhamento apenas em 2017. O filho, quando diagnosticado em 2012, apresentou quimioluminescência de 8,40s/Co e HAI reagente; repetiu os exames pós-tratamento específico em 2013, obtendo resultados sorológicos de 9,61s/Co e HAI reagente. Esse paciente foi o único a receber tratamento. Recentemente, em 2017, foi realizada a quimioluminescência (7,57s/Co) e HAI não reagente. Em sua irmã, a quimioluminescência foi de 5,07s/Co, imunofluorescência indireta (IFI) positiva e HAI não reagente. A quimioluminescência da criança apresentou resultado não reagente (0,04s/Co) e IFI negativo.
Todos os pacientes obtiveram parâmetros normais na PCR, assim como no hemograma. Observou-se alteração apenas na taxa de eosinófilos (23%) na matriarca; na filha, verificou-se o aumento de colesterol (223 mg/dl). Conforme Rassi e Rassi Jr. (2013)(26) (apud II Consenso Brasileiro de Doença de Chagas)(24), exames laboratoriais podem apresentar alteração no hemograma com aumento ou diminuição de leucocitometria global, linfocitose intensa, plasmocitose e neutropenia. Nota-se que a partir da segunda semana da doença, há o surgimento elevado de linfócitos atípicos e leucocitoides, porém, não se pode afirmar que a DC esteja relaciona com a eosinofilia na matriarca, pois existem outros fatores e outras condições desencadeantes que alteram essa taxa(27).
O prontuário clínico dos filhos positivos para DC indicou que eles se encontram na fase crônica indeterminada. O paciente nessa forma apresenta sorologia positiva nos testes sorológicos, ecocardiograma (ECG) e radiografia de tórax e esôfago dentro dos parâmetros normais, que podem persistir durante anos(3,28).
Diferente da matriarca, que em 2013 foi diagnosticada com a forma crônica indeterminada por não apresentar nenhum desenvolvimento da doença na época, em 2017 verificou-se, nos exames de imagens, alteração em seu eletrocardiograma, constando bloqueio do ramo direito no coração, que evoluiu para forma crônica cardíaca. A cardiopatia chagásica crônica é a manifestação clínica mais comum e possui certo grau de gravidade; desenvolve em cerca de 20%-30% dos pacientes com disposições anormais no sistema de condução, arritmia, insuficiência cardíaca, tromboembolismo e bloqueios atrioventriculares(3,29).
Com relação à criança, observou-se que ela obteve resultados negativos para os testes aplicados, descartando o contato com o protozoário.
Conforme Lima e Silva (1952)(30) e Coda et al. (1958)(31), o município de Taquarituba, centro-oeste do estado de São Paulo, antigamente era considerado uma região importante para a DC, pois ocorria uma distribuição do vetor Triatoma infestans infectado pelo T. cruzi. Além disso, alguns estudos mencionam que a área poderia ser uma importante disseminadora da infecção na década de 1950, visto que a maioria das amostras para tais estudos indicaram positividade para a infecção, tanto nos insetos quanto em pacientes(32,33). A princípio, pode ser que a matriarca tenha contraído a infecção nesse período, pois ela relatou ter tido contato frequente com o inseto na infância.
Quanto a seus filhos chagásicos crônicos, a possibilidade de transmissão congênita não pode ser descartada, assim como também não se pode rejeitar a hipótese de que outros mecanismos de transmissão ainda estejam envolvidos, como o oral e principalmente o vetorial, pois os pacientes são oriundos de um município endêmico. Nesse ponto não há como determinar qual foi o mecanismo de transmissão e nem em qual período da vida os filhos contraíram a infecção. Com base em outros estudos, apesar de a implantação do Programa de Controle da Doença de Chagas no Estado de São Paulo ter sido eficiente no controle do T. infestans, ainda há presença de espécies secundárias de triatomíneos (Panstrongylus megistus, T. sordida e gênero Rhodnius) capazes de transmitir a infecção(34-38).
É preciso salientar que esta doença negligenciada deveria atrair mais atenção dos serviços de saúde pública, principalmente pelo segmento farmacêutico, devido ao desenvolvimento de novos tratamentos, sobretudo em regiões endêmicas onde ainda existem remanescentes da infecção em pacientes jovens, como já evidenciado no estudo de Navarro et al. (2013)(39). Nesse contexto, seria necessário direcionar a atenção a toda população dessas áreas, como jovens em idade fértil, principalmente as gestantes, realizando a identificação e o acompanhamento clínico desse grupo. Ademais, os trabalhos realizados pela vigilância entomológica poderiam ser intensificados e contínuos no combate a vetores ainda residuais e de espécies secundárias.