versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.34 no.1 Rio de Janeiro 2018 Epub 05-Fev-2018
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00006517
The aim of this article was to confirm and describe an outbreak of acute Chagas disease involving oral transmission in the western region of Rio Grande do Norte State, Brazil. This was a descriptive case series study in which the data sources were medical records and interviews with suspected cases from September 16 to November 19, 2015. An entomological investigation was conducted in the probable sites of infection for acute Chagas disease cases. Eighteen cases of acute Chagas disease were confirmed in residents of four municipalities (counties) in Rio Grande do Norte State. The most frequently reported signs and symptoms were fever and weakness (n = 18), followed by myalgia (n = 17), prostration, loss of appetite, and edema of the lower limbs (n = 15). Median duration of fever was 20 days (range: 6 to 45 days). Fifteen cases were confirmed by the laboratory criterion and three by epidemiological link with consistent clinical characteristics. All confirmed cases reported having consumed sugar cane juice from the same mill. A total of 110 triatomines were captured on the plantation where the sugar cane had been crushed for juice. The insects were found in the peridomicile, in stacks of firewood and close to the sugar cane mill. The majority of the captured specimens were Triatoma brasiliensis and showed a natural infection rate of 63%. The Chagas disease outbreak was confirmed with oral transmission via ingestion of sugar cane juice contaminated with infected triatomines, as evidenced by the epidemiological link between the investigated cases and the entomological survey in the probable site where the infection occurred.
Keywords: Disease Outbreaks; Food Contamination; Triatominae; Chagas Disease
El objetivo de este artículo fue confirmar y describir un brote de la enfermedad de Chagas aguda por transmisión oral en la mesorregión oeste de Rio Grande do Norte, Brasil. Se trata de un estudio descriptivo del tipo serie de casos, contando como fuente de datos los registros de atención médica y entrevistas en los casos sospechosos entre el 16 de septiembre y el 19 de noviembre de 2015. Se realizó una investigación entomológica en las probables localidades de infección de los casos de enfermedad de Chagas aguda. Fueron confirmados 18 casos de enfermedad de Chagas aguda en residentes de cuatro municipios de Rio Grande do Norte. Los signos y síntomas más informados fueron fiebre y debilidad (n = 18), seguidos de mialgia (n = 17), postración, inapetencia y edema de miembros inferiores (n = 15). La media de duración de la fiebre fue de 20 días (intervalo: 6 a 45 días). Quince casos fueron confirmados por criterio de laboratorio y tres por vínculo epidemiológico con clínica compatible. Todos los casos confirmados informaron haber consumido caldo de caña de la misma procedencia. Fueron capturados 110 triatominos en la hacienda donde se produjo la molienda de la caña consumida. Los insectos estaban en el peridomicilio, en montones de leña y cerca del ingenio azucarero. La mayoría de los ejemplares capturados era de la especie Triatoma brasiliensis, y presentó un índice de infección natural de un 63%. Se confirmó un brote de la enfermedad de Chagas de transmisión oral por ingestión de caldo de caña contaminado por triatomino infectado, evidenciado por el vínculo epidemiológico entre los casos investigados y la investigación entomológica en el lugar probable de infección.
Palabras-clave: Brotes de Enfermedades; Contaminación de Alimentos; Triatominae; Enfermedad de Chagas
A doença de Chagas é infecção humana ocasionada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, cujos vetores são os triatomíneos hematófagos. A enfermidade apresenta-se em duas fases, a aguda e a crônica. A transmissão ocorre pelas formas vetorial (triatomíneos), transfusional, transplante, congênita e oral 1.
Atualmente, a via oral é a mais frequente no Brasil - principalmente na região amazônica 2 - e está relacionada à ocorrência de surtos recentes em diversos estados brasileiros 3.
Em dezembro de 2015, no Município de Tenente Ananias, no Rio Grande do Norte, havia seis casos suspeitos de malária e leishmaniose visceral. Após investigação e diagnóstico diferencial, suspeitou-se de doença de Chagas aguda. Em 1º de março de 2016, a Secretaria de Estado da Saúde Pública do Rio Grande do Norte (SESAP/RN) solicitou apoio ao Ministério da Saúde.
Este estudo teve como objetivos confirmar a existência de surto de doença de Chagas aguda, identificar provável fonte e local de infecção, além de evidenciar os casos segundo características de pessoa, tempo e lugar, e propor recomendações a fim de prevenir casos novos.
Estudo descritivo do tipo série de casos, no período de 16 de setembro a 19 de novembro de 2015, de residentes em quatro municípios do Estado do Rio Grande do Norte, com população estimada de 36.647 habitantes. O período de investigação foi de 8 a 28 de março de 2016.
As definições de casos de doença de Chagas aguda foram:
(a) Suspeito - residente nos municípios de Tenente Ananias, Marcelino Vieira, Alexandria ou Pilões, que entre 16 de setembro e 19 de novembro de 2015 apresentaram IgM positivo para doença de Chagas aguda;
(b) Confirmado - (b-1) Laboratorial: caso suspeito que apresentou exame parasitológico direto positivo, ou Western blot com banda imunodominante para Tr. cruzi característica de infecção recente, ou sorologia reagente com anticorpos da classe IgM anti-Tr. cruzi por imunofluorescência indireta (IFI); (b-2) Clínico epidemiológico: caso suspeito com vínculo epidemiológico com um ou mais casos confirmados de doença de Chagas aguda por critério laboratorial, sem exame laboratorial.
Informações adicionais foram obtidas em prontuários médicos nas unidades de saúde locais e no Hospital Giselda Trigueiro, de Natal, além de entrevistas com pacientes e familiares.
A taxa de incidência no período do surto foi calculada pela taxa de incidência acumulada no ano de doença de Chagas aguda/número de semanas epidemiológicas do surto (n = 3)/número de semanas epidemiológicas no ano (n = 52). A taxa de incidência de doença de Chagas aguda acumulada no ano foi calculada pelo número de casos confirmados de doença de Chagas aguda no ano (n = 18)/população (36.647) * 10.000 habitantes.
A pesquisa de triatomíneos foi realizada nas Fazendas A, B e C, nos ambientes intra e peridomiciliar, e enviada ao Núcleo de Entomologia do Rio Grande do Norte (NERN) para a identificação da espécie e detecção de tripanosomatídeos. Posteriormente enviada para a identificação da fonte alimentar à Fundação Oswaldo Cruz (Rio de Janeiro).
Utilizou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assegurando sigilo e confidencialidade dos entrevistados. Dados obtidos no âmbito das ações de vigilância em saúde dispensam apreciação de comitê de ética em pesquisa, conforme artigo 1º, parágrafo único, inciso VII da Resolução nº 510/2012 do Conselho Nacional de Saúde.
Investigados 21 casos, destes, 18 (85,7%) confirmados para doença de Chagas aguda, 15 (83,3%) por critério laboratorial e três óbitos (16,7%) por clínico epidemiológico, dois (9,5%) descartados e uma perda. Dos casos confirmados, 15 foram IgM reagentes pelas técnicas IFI e Western blot, além de sorologias reagentes para IgG pelas técnicas de ELISA, HAI e IFI. Todos os casos confirmados apresentaram sinais e sintomas no mês de outubro de 2015, com maior concentração entre os dias 14 e 20 de outubro (Figura 1). A incidência de doença de Chagas aguda no ano foi de 4,9 por 10 mil habitantes e no período do surto de 86,1 por 10 mil habitantes.
Figura 1 Casos confirmados de doença de Chagas aguda segundo data de início de sintomas e provável dia de exposição nos municípios de Marcelino Vieira, Tenente Ananias, Alexandria e Pilões, Estado do Rio Grande do Norte, Brasil, 2016.
Treze casos confirmados eram de agricultores, mediana de idade de 49 anos (intervalo: 8 a 78) e 12 do sexo feminino. Dez casos residiam em Marcelino Vieira, e nove na zona rural. A mediana de tempo de moradia na residência foi de 34,5 (intervalo: 8 a 73) anos e todos moravam em casa de alvenaria.
Os sinais e sintomas mais relatados foram febre e fraqueza (n = 18), seguidos de mialgia (n = 17), prostração, inapetência e edema de membros inferiores (n = 15), exantema e epigastralgia (n = 14) e edema de face, prurido e cefaleia (n = 12). A mediana de duração da febre foi de vinte dias (intervalo: 6 a 45 dias).
Quanto às comorbidades, sete (38,9%) relataram ser hipertensos, cinco (27,8%) ter colesterol alto, três (16,7%) reumatismo e doença renal e dois (11,1%) cardiopatia. Os óbitos ocorreram entre pessoas do sexo feminino, com mais de três comorbidades, febre persistente acima de 15 dias e todas com idades acima de 57 anos.
Os casos relataram consumo de caldo de cana da Fazenda A (Marcelino Vieira), onde uma vez ao ano ocorre a moagem para a produção de rapadura e caldo. Não há no engenho proteção contra a presença de insetos e roedores. A moagem ocorreu na madrugada, sendo que as luzes foram acesas às 03:00 da manhã. O período da moagem foi de 18 de setembro a 1º de outubro de 2015. Todos os casos referiram consumir o caldo de cana no último dia da moagem. Nenhum caso fez transfusão ou transplante de órgãos.
Na pesquisa entomológica, foram capturados 177 triatomíneos (143 ninfas e 34 adultos) nas três fazendas pesquisadas em Marcelino Vieira. Na Fazenda A, local da moagem, foram capturados 110 triatomíneos (Figura 2), todos no peridomicílio, próximos ao engenho, sendo 100 exemplares da espécie Triatoma brasiliensis e 10 Triatoma pseudomaculata, com 63% e 47% de positividade, respectivamente, para Tr. cruzi. Também foram encontrados roedores da espécie Cavia aperea. Quanto à fonte alimentar, a frequência mais observada foi a de roedor (Tabela 1).
Figura 2 Vista frontal do galpão de armazenagem e moagem de cana de açúcar (2a); Máquina moedora da cana de açúcar (2b); Captura de triatomíneos próximos ao engenho (2c); Exemplar de Triatoma brasiliensis (2d).
Tabela 1 Caracterização das espécies de triatomíneos capturados, positividade para Trypanossoma cruzi e fontes alimentares no surto de doença de Chagas aguda. Município de Marcelino Vieira, Rio Grande do Norte, Brasil, 2016.
Fazenda Barreiros (n = 110) | Fazenda Cascavel (n = 58) | Fazenda Arapuá (n = 9) | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | |
Características entomológicas | ||||||
Espécies | ||||||
Triatoma brasiliensis | 100 | 90,9 | 58 | 100,0 | 7 | 77,8 |
Triatoma pseudomaculata | 10 | 9,1 | - | - | 2 | 22,2 |
Panstrongylus lutzi | - | - | - | - | - | - |
Taxa de infecção por Tr. cruzi | ||||||
Positivo | 69 | 63,0 | 27 | 47,0 | - | - |
Características quanto à fonte alimentar (n = 166) | ||||||
Roedor | 52 | 31,3 | ||||
Ave | 42 | 25,3 | ||||
Ave/Roedor | 18 | 10,8 | ||||
Roedor/Sapo | 8 | 4,8 | ||||
Ave/Sapo | 7 | 4,2 | ||||
Ave/Roedor e sapo | 7 | 4,2 |
Fonte: Núcleo de Entomologia do Rio Grande do Norte (NERN) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Confirmado o surto de doença de Chagas aguda oral, com 18 casos no Município de Marcelino Vieira em outubro de 2015, possivelmente relacionado à ingestão de caldo de cana da Fazenda A, com aumento no período de surto de 17 vezes a incidência de doença de Chagas aguda no local de estudo. Os casos apresentavam vínculo epidemiológico e ingeriram caldo de cana proveniente da mesma moagem em 1º de outubro.
Sinais e sintomas observados nos casos foram compatíveis com quadro de transmissão de doença de Chagas aguda oral 1. A frequência de edema de membros inferiores (83%) e palpebral bilateral (61%) foi similar ao descrito no surto de Catolé do Rocha (Paraíba) 4, porém, diferente do surto de Navegantes (Santa Catarina) 5, onde os pacientes apresentaram frequência maior de dispneia (50%), icterícia (38%) e sinais hemorrágicos (30%).
O padrão ouro para a confirmação de doença de Chagas aguda é o exame parasitológico. A demora na investigação não permitiu a sua realização, optando-se pela técnica Western blot como critério confirmatório 6, pois possibilita detectar bandas específicas em soros de pacientes em fase aguda, sendo confirmado por outras técnicas, como IFI pelo marcador IgM sororreagente 7.
A letalidade neste surto foi elevada (16,6%), comparada com a média anual no Brasil que de 2005 a 2013 foi de 2,7% 2. Pacientes com doenças preexistentes têm complicações clínicas mais frequentes, além de risco maior de evoluir a óbito quando internados 8, similar aos três óbitos descritos na pesquisa.
A presença de vetores com positividade para Tr. cruzi (63%), próximos ao engenho, podem explicar a contaminação durante a moagem da cana de açúcar. Cabe ressaltar que a taxa de infecção encontrada nos T. brasiliensis capturados na fazenda onde ocorreu a moagem difere de outros estudos realizados no Brasil que demostraram uma taxa de infecção de 6,7% 9 e no Estado do Ceará com taxa de infecção 1,6% 10.
O engenho iniciava as suas atividades no período da madrugada, com a presença de luz elétrica. Sabe-se que a iluminação artificial atrai diversos insetos, inclusive triatomíneos, que estão no peridomicílio, como demonstrou a investigação entomológica na fazenda 11.
Como limitações deste trabalho, citamos o viés de memória, ocasionado pela dificuldade em relatar o início de sintomas e outras informações devido ao início tardio da investigação; e também o viés de informação, ocasionado pelo informante proxy dos óbitos que pode superestimar ou subestimar os dados e informações.
Os achados corroboraram para a ocorrência do surto de doença de Chagas aguda de transmissão oral provavelmente pela ingestão do caldo de cana contaminado por triatomíneos infectados. Em vista do exposto, é importante considerar a necessidade criteriosa com relação às boas práticas de fabricação e distribuição de alimentos não tratados termicamente, no caso específico, caldo de cana na região, com o objetivo de prevenção da doença de Chagas aguda por transmissão oral. Além disso, intensificar as ações de vigilância entomológica local e de educação em saúde na região.