versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.15 no.4 São Paulo out./dez. 2017 Epub 18-Dez-2017
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082017ao4029
A nefrolitíase acomete entre 5 a 10% da população mundial,(1)com maior frequência nos homens do que nas mulheres, 13 e 7%, respectivamente.(2)Até 15% da população mundial sofrerá com um episódio de cálculo renal durante a vida, e mais de 50% terão recorrência dentro de 10 anos.(2,3)O pico de ocorrência, na população feminina, dá-se por volta dos 30 anos de idade e decai após os 50 anos, enquanto que, nos homens, o pico ocorre entre a quarta e a sexta década de vida.(3)
Os cálculos renais se desenvolvem, principalmente, nos cálices e pelve renal. Sua formação é influenciada pelo pH urinário, volume urinário diminuído e presença de bactérias, e tem como principal determinante a supersaturação urinária de cristais. Em torno de 70% dos mesmos são formadas por sais de oxalato de cálcio; outros 15% são compostos de fosfato amônio magnésio (cálculos de estruvita); 5 a 10% são de ácido úrico; e de 1 a 5%, cistina.(4)Quando os cálculos aumentam de tamanho, cursam com lesão grave do rim, mesmo sem evidências clínicas, podendo complicar, com obstrução e infecção do trato urinário.(5)
Diversos fatores estão relacionados à predisposição à litíase renal, como: idade, sexo, sedentarismo, comorbidades (hipertensão e diabetes), medicamentos em uso, história prévia familiar ou pessoal de litíase, ocupação, questões dietéticas, aspectos geográficos e climáticos, alterações anatômicas e metabólicas.(5)A literatura tem mostrado maior incidência de nefrolitíase no sexo masculino, no entanto, pesquisas recentes têm apontado para um aumento da incidência no sexo feminino.(6)
Alterações anatômicas maiores ocorrem em até 40% de portadores de nefrolitíase, dentre elas obstrução da junção ureteropélvica, rim em ferradura, duplicação ureteral completa ou incompleta, rim espongiomedular e rim pélvico.(7)
Avaliar a prevalência dos distúrbios metabólicos associados à nefrolitíase em uma população feminina.
Trata-se de um estudo retrospectivo, baseado na análise de prontuários de 1.737 pacientes adultos, litiásicos, na cidade de Cascavel (PR), que foram atendidos em uma clínica privada de nefrologia no período de 2005 a 2016. Os critérios de inclusão foram a eliminação espontânea, endoscópica e cirúrgica de cálculos renais e/ou confirmação radiológica de sua presença no trato urinário. Foram coletados os seguintes dados: identificação, sexo, idade, história familiar, apresentação clínica, exames laboratoriais e exames de imagem. O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da instituição, sob o número 1.604.236, CAAE: 57213316.4.0000.5219.
A investigação laboratorial incluiu duas ou mais amostras de urina de 24 horas para dosagem de cálcio, ácido úrico, citrato, creatinina e oxalato; cálcio, ácido úrico, creatinina e paratormônio séricos; urocultura e urina coletada após jejum e restrição de água por 12 horas com o objetivo de pesquisar cistinúria qualitativa, cristais no sedimento urinário e o pH urinário.
Os métodos laboratoriais empregados e os valores de referência adotados para amostras de urina de 24 horas foram, para cálcio, método de espectrometria de absorção atômica (<4,0mg/kg/dia); para ácido úrico, uricase método enzimático (<750mg para as mulheres e <800mg para os homens); para citrato, citrato liase enzimática (>320mg); para oxalato, método de cromatografia líquida de alta eficiência (>44mg); para creatinina, método de picrato alcalino (>1.000mg); e para volume de urina, medição volumétrica em um coletor de Becker para análise visual. Para a dosagem plasmática, os métodos empregados foram, para cálcio, método colorimétrico (8,5 a 10,5mg/dL); para ácido úrico, uricase método colorimétrico (2,0 a 7,0mg/dL); para creatinina, método do picrato alcalino (0,7 a 1,4mg/dL); e para paratormônio, teste intacto da molécula (10 a 70ng/L). Para os testes em amostras isoladas de urina, os métodos utilizados foram, para cistinúria qualitativa, teste de nitroprussiato de sódio; e para urina pH, medição por meio de tiras reativas com sistema de indicador de pH vermelho de metilo e azul-bromo-azul. A diminuição do volume de urina tem sido considerada quando pelo menos uma das amostras mostrou um volume de urina de 24 horas inferior a 15mL/kg.
A investigação de imagens incluiu ecografia do aparelho urinário e urografia excretora de rotina, bem como tomografia computadorizada em casos selecionados.
Para a análise dos dados, foram calculados média e desvio padrão, e percentagem. Foram utilizados os testes χ2e teste exato de Fisher, conforme adequado. Os principais distúrbios metabólicos foram comparados entre os sexos, bem como as alterações anatômicas. Para todas as análises foi adotado como nível de significância p<0,05. O tratamento estatístico de todas as informações foi efetuado utilizando o Statistical Package of the Social Science (SPSS) versão 15.0 e Excel .
Foram levantados os prontuários de 1.737 pacientes, sendo 952 mulheres (54,8%) e 785 homens (45,1%). A relação homem/mulher observada foi de 1:1,2. O histórico sintomatológico mais encontrado no momento do diagnóstico foi de cólica nefrética, perfazendo um total de 53,3% e 57,4% entre mulheres e homens, respectivamente. O antecedente familiar de litíase foi positivo para 39,8% das mulheres e 40,5% para os homens.
Dos 902 pacientes que completaram o estudo metabólico, 482 eram mulheres (53,4%) e 420 homens (46,6%). Destes, observou-se que as alterações metabólicas mais encontradas, por ordem de frequência, foram: hipercalciúria (45,4%), hiperuricosúria (25,1%), hipocitratúria (21,4%), baixo volume urinário (18%), infecção do trato urinário (11,6%), hiperoxalúria (5,3%), hiperparatireoidismo (4,3%), cistinúria (0,5%) e acidose tubular (0,4%). Quando observado por sexo, os achados mais encontrados nas mulheres foram: hipercalciúria (40,9%), infecção do trato urinário (23,2%), hipocitratúria (22,4%), baixo volume urinário (20,5%) e hiperuricosúria (16%). Nos homens, as alterações metabólicas mais encontradas, por ordem de frequência, foram: hipercalciúria (50%), hiperuricosúria (34,3%), hipocitratúria (20,5%) e baixo volume urinário (15,5%). A tabela 1 apresenta todas as alterações metabólicas encontradas.
Tabela 1 Alterações encontradas em 902 pacientes com nefrolitíase de acordo com o sexo
Alterações metabólicas | Feminino (n=482) n (%) |
Masculino (n=420) n (%) |
Valor de p |
---|---|---|---|
Hipercalciúria | 197 (40,9) | 210 (50,0) | 0,0059 * |
Hipocitratúria | 108 (22,4) | 86 (20,5) | 0,4815 * |
Hiperuricosúria | 77 (16,0) | 144 (34,3) | 0,0000 * |
Baixo volume urinário | 99 (20,5) | 65 (15,5) | 0,0492 * |
Hiperoxalúria | 26 (5,4) | 22 (5,2) | 0,9170 * |
infecção trato urinário | 112 (23,2) | 13 (3,1) | 0,0000 * |
Hiperparatireoidismo | 22 (4,6) | 17 (4,0) | 0,7035 * |
Acidose tubular renal | 1 (0,2) | 3 (0,7) | 0,3433 † |
Cistinúria | 3 (0,6) | 2 (0,5) | 1,0000 † |
Alterações não detectadas | 173 (35,9) | 47 (11,2) | 0,0000 * |
*χ2
†teste exato de Fisher.
As principais alterações anatômicas observadas foram cisto renal, duplicação pielocalicial, obstrução da junção ureteropélvica, rim em ferradura, rim espongiomedular, rim pélvico e ptose renal. A tabela 2 mostra todas as alterações anatômicas encontradas.
Tabela 2 Alterações anatômicas encontradas em 148 pacientes com nefrolitíase de acordo com o sexo
Alterações anatômicas | Feminino (n=87) n (%) |
Masculino (n=61) n (%) |
Valor de p |
---|---|---|---|
Cisto renal | 32 (36,8) | 26 (42,6) | 0,4736 * |
Duplicação Pieloureteral | 18 (20,7) | 11 (18,0) | 0,6885 * |
Estenose junção Ureteropélvica | 7 (8,0) | 5 (8,2) | 0,9736 * |
Rim único | 6 (6,9) | 1 (1,6) | 0,2401 † |
Rim atrófico | 6 (6,9) | 3 (4,9) | 0,7367 † |
Ptose renal | 3 (3,4) | 0 (0) | 0,2682 † |
Rins policísticos | 3 (3,4) | 3 (4,9) | 0,6907 † |
Rim esponjo medular | 2 (2,3) | 2 (3,3) | 1,0000 † |
Outras alterações | 10 (11,5) | 10 (16,4) | 0,3908 * |
*χ2;
†teste exato de Fisher
O pico de incidência da nefrolitíase ocorre entre os 40 a 60 anos de idade.(3)Neste estudo, observamos que a média de idade dos pacientes no momento da investigação metabólica foi de 49 anos, com leve predomínio de mulheres, o que pode sugerir maior adesão delas à investigação metabólica.
Compatível com a literatura, a história familiar positiva para nefrolitíase, que varia entre 25% e 55%, neste estudo foi de cerca de 40%. O histórico familiar não implica somente na herança genética, visto que indivíduos da mesma família podem compartilhar hábitos de vida, como os dietéticos. Por exemplo, a elevada ingestão de sódio tem alta implicação no desenvolvimento de hipercalciúria.(8–10)
Foram encontradas alterações metabólicas distintas em ambos os sexos, enquanto que no sexo feminino ocorreu mais infecção urinária, no masculino observamos mais hipercalciúria e hiperuricosúria.
O citrato urinário promove uma redução na formação e recorrência dos cálculos renais por se ligar ao cálcio, inibindo a nucleação espontânea e a agregação de cristais de oxalato, além de interagir com a proteína de Tamm-Horsfall para inibir a cristalização do oxalato de cálcio.(2)Nos dados da literatura, as mulheres apresentam maior excreção de citrato na urina do que os homens, o que diminui a formação de cálculos urinários na população feminina em geral.(11)Hipóteses explicativas para tal fato são de mudança do hábito alimentar, elevados níveis de estrogênios, gravidez, desequilíbrios acidobásicos, vitamina D e paratormônio.(12)Em nosso estudo, houve maior incidência de hipocitratúria em mulheres com nefrolitíase submetidas à investigação metabólica.
Montilla et al., em um estudo transversal com 154 mulheres, observaram que as mulheres apresentaram consumo proteico superior às suas necessidades nutricionais.(13)Considerando que a alta ingesta de proteínas de origem animal tem uma elevada carga ácida, o citrato urinário diminui por aumento da sua reabsorção tubular proximal e por redução de sua excreção pelas células tubulares.(12,14)
Em uma pesquisa norte-americana, que avaliou o risco de incidência de litíase renal em 91.731 mulheres saudáveis na menopausa e pós-menopausa, foi observado que, após a administração diária de estrogênio oral conjugado (1,25mg) durante 4 dias, mantendo-se uma dieta restrita a purinas, a excreção de ácido úrico urinário aumentou 23% (p<0,05) em comparação com o valor basal em sete mulheres pós-menopáusicas. Resultados semelhantes foram observados em um estudo de 22 homens transexuais adultos tratados com estrogênio, onde a excreção média de ácido úrico aumentou 28%, sendo a diferença estatisticamente significativa.(11,15,16)
Durante o período gravídico, constatamos inúmeras transformações pró-litogênicas. Uma delas é a hidronefrose fisiológica, que propicia estase urinária, atuando como um grande fator de risco para a ocorrência de calculose renal, bem como de infecções urinárias. Além disso, há também um aumento na taxa de filtração glomerular, superior a 40%. Por conseguinte, alguns fatores litogênicos, como a hipercalciúria, elevação do pH urinário e a hiperabsorção intestinal de cálcio sofrem um incremento na gestante, favorecendo a supersaturação de sais na urina. Por outro lado, já fora observada a ocorrência, na gravidez, de alguns fatores inibitórios que reduzem a agregação de cristais e, consequentemente, a formação de cálculos urinários. Dentre eles podemos citar as uromodulinas, a nefrocalcina, as glicoproteínas, o aumento do pH urinário, e o aumento da excreção renal de cálcio e de magnésio.(17)
O hiperparatireoismo primário é mais comum em mulheres.(18,19)Nesta entidade temos uma secreção aumentada do hormônio da paratireoide, que estimula a síntese de calcitriol e o consequente aumento da absorção intestinal de cálcio e da reabsorção óssea, culminando com hipercalciúria. Este desequilíbrio hormonal, juntamente do aumento nos níveis da vitamina D, englobam uma das causas de nefrolitíase por aumento dos níveis séricos e urinários de cálcio.(12)
Em estudo anterior, realizado em nosso meio, as alterações metabólicas mais encontradas foram: hipercalciúria em 51,8% dos pacientes; hiperexcreção de ácido úrico em 27,6%; hipocitratúria em 23,5%; baixo volume urinário em 19,8%; infecção do trato urinário em 13,5%; hiperoxalúria em 8,0%; hiperparatireoidismo em 5,6%; acidose tubular renal em 0,7%; e cistinúria em 0,7%. Comparando os distúrbios metabólicos mais prevalentes entre os sexos, a hiperexcreção de ácido úrico foi mais frequente no masculino e a infecção do trato urinário, no feminino. Estes dados são concordantes com o observado nesse estudo.(20)
Em pesquisa realizada com 182 pacientes maiores que 12 anos, as alterações encontradas, por ordem de apresentação, foram hipercalciúria (74%), hipocitratúria (37,3%), hiperoxalúria (24,1%), hipomagnesemia (21%), hiperuricosúria (20,2%), hiperparatireoidismo primário (1,8%), hiperparatireoidismo secundário (0,6%) e acidose tubular renal (0,6).(21)Observamos, em nosso estudo, incidência menor de hipercalciúria, hipocitratúria e hiperoxalúria, sendo que a hiperexcreção de ácido úrico foi maior e que diagnosticamos alguns casos de cistinúria.
Em conformidade com dados da literatura, as alterações anatômicas mais encontradas foram o cisto renal, a duplicação pieloureteral e a estenose de junção ureteropélvica, em ambos os sexos.(7)
Estratégias de tratamento de recorrência dos cálculos renais poderão reduzir outras comorbidades, bem como o risco cardiovascular nessa população, uma vez que demonstrou-se a associação entre litíase renal e síndrome metabólica, sendo esta uma situação complexa, que engloba obesidade, dislipidemia, hipertensão, diabetes mellitus e resistência insulínica.(22)No IV Inquérito Nacional de Saúde de Portugal, 23.349 questionários foram aplicados em indivíduos com mais de 15 anos de idade e contatou-se que houve um aumento significativo da prevalência de algumas doenças crônicas associadas a maior risco de eventos cardiovasculares nos doentes com nefrolitíase em relação à população geral, incluindo hipertensão (50,4% versus 28,6%), obesidade (22,7% versus 16,9%), diabetes mellitus (16,6% versus 9,4%), infarto do miocárdio (3,3% versus 1,8%) e acidentes cerebrovasculares (3,8% versus 2,1%).(23)
Para além de diminuição de comorbidades e recorrências, a prevenção e o tratamento de litíase urinária implica redução do impacto gerado na saúde pública, uma vez que a nefrolitíase acomete principalmente adultos em idade produtiva, entre a segunda e sexta décadas de vida, sendo responsável por elevados números de internações hospitalares anuais, com elevado custo para o orçamento da saúde.(24,25)
As limitações do presente estudo incluem o fato de ser retrospectivo e aqueles inerentes aos estudos clínicos, porém os dados, foram coletados por dois pesquisadores, sendo homogêneos e fidedignos. O presente ambulatório foi iniciado pelo próprio pesquisador com protocolo adaptado de instituições de excelência na investigação metabólica de nefrolitíase. Os pacientes analisados foram avaliados por outras especialidades e encaminhados para a nefrologia especificamente para investigação metabólica de litíase. Quanto à infecção urinária, os pacientes foram encaminhados com o histórico de infecção do trato urinário de repetição com posterior formação de cálculos e não foram manejados pelo pesquisador no momento da infecção. O sódio urinário não foi dosado rotineiramente, no entanto, todos os pacientes tiveram a determinação da calciúria. Nos hipercalciúricos, foi recomendada restrição de sódio na dieta. A natriúria pode servir para avaliar a ingestão de sódio, sendo importante para avaliar a adesão a dieta. Há relatos na literatura sem avaliar o sódio urinário.(26)O potássio e o magnésio urinário também não foram dosados, utilizando-se a citratúria para avaliação dos inibidores da cristalização.
Futuros estudos são necessários para melhor compreender as alterações metabólicas em pacientes do sexo feminino, diminuir a recorrência da nefrolitíase e, consequentemente, reduzir o risco cardiovascular nesta população.
As alterações metabólicas mais frequentes na população feminina foram hipocitratúria, infecção do trato urinário, baixo volume urinário e hiperuricosúria. Foram encontradas alterações metabólicas distintas em ambos os sexos; enquanto que, no sexo feminino, ocorreu mais infecção urinária, no masculino observamos mais hipercalciúria e hiperuricosúria.