versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.1 Rio de Janeiro jan. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015211.20472014
O termo Itinerário Terapêutico (IT) refere-se à busca de cuidados terapêuticos e procura descrever e analisar práticas individuais e socioculturais em termos dos caminhos percorridos pelos indivíduos na tentativa de solucionarem seus problemas de saúde1, incluindo a lógica que direciona essa busca, que é tecida em múltiplas redes formais e informais, de apoio e de pertença2.
Os primeiros trabalhos sobre IT tiveram origem a partir do termo illness behaviour – traduzido como comportamento do enfermo – e pressupunham ser a conduta dos indivíduos na busca por cuidados orientada racionalmente, considerandose a questão de custo-benefício. Esta concepção foi considerada voluntarista, racionalista e individualista. Posteriormente, este conceito foi ampliado, sendo introduzidos os valores culturais nas repostas dos indivíduos3. Assim, a cultura pode ser considerada um dos determinantes do IT, já que esta influencia o modo como os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem conhecimentos e atividades em relação à vida, dentre estas as cuidativas4.
Desde os anos 1980, a influência da cultura na percepção sobre saúde, doença e cuidados em saúde é abordada por antropólogos como Arthur Kleinman, que reconhece a existência de um sistema cultural, chamado de Sistema de Cuidados à Saúde, no qual estão incluídos três subsistemas inter-relacionados, denominados popular, folk (sistema informal) e profissional (sistema formal)5. Os modelos explanatórios nestes subsistemas baseiam-se em noções que levam à percepção e à interpretação da doença e permitem o desenvolvendo de mecanismos de cura distintos e consoantes com o contexto cultural de cada indivíduo e grupo6.
Além de refletir os fatores culturais, o trânsito dos indivíduos pelos aparelhos sociais na busca por cuidados demonstra a influência do nível socioeconômico no alcance da assistência à saúde, visto que o IT revela práticas e estratégias de populações no enfrentamento de seus problemas de saúde1, especialmente as de baixa renda, dentre as quais se destacam as quilombolas.
Definidos como grupos étnico-raciais, de ancestralidade negra e distribuição pelo território brasileiro a partir de critérios próprios7, os quilombolas tiveram seus territórios consolidados em regiões periféricas8 estando, com isso, sujeitos às consequências do isolamento geográfico, sendo uma delas a precariedade de acesso aos serviços de saúde, especialmente os de maior complexidade, como os de urgência/emergência.
As situações caracterizadas como urgência/emergência são condições nas quais há agravo imprevisto à saúde com necessidade de atendimento médico imediato por conta do potencial risco de vida, seja ele iminente ou não9.
Embora acometam pessoas de todas as faixas etárias, nas crianças as urgências/emergências adquirem caráter significativo por conta das peculiaridades psíquicas e biológicas, habilidades físicas e cognitivas, níveis de dependência, atividades e comportamentos de risco10, além da ausência de mecanismos de enfrentamento dos agravos à saúde que ainda não foram desenvolvidos nessa fase da vida, o que caracteriza estes indivíduos como seres vulneráveis.
As situações de urgência/emergência na infância, especialmente aquelas relacionadas às causas externas, persistem como o maior problema de saúde pública que requer atenção de urgência, sendo a principal causa de morte de crianças em todo o mundo, especialmente em países de baixa e média renda, onde ocorrem mais de 95% dos casos, sendo mais vulneráveis aquelas que vivem em situação de pobreza e em áreas rurais e remotas10, como geralmente ocorre com as comunidades quilombolas.
Diante deste contexto, surgem questionamentos acerca do modo como os quilombolas ofertam cuidados às crianças em situações de urgência/emergência no Sistema de Cuidados à Saúde, aqui analisados a partir dos itinerários terapêuticos.
Considerando que os estudos sobre IT no Brasil ainda são recentes11 e que não enfocam as comunidades quilombolas, faz-se relevante a realização de pesquisas que desvelem as práticas de cuidado e as dificuldades enfrentadas na busca pelos serviços de saúde nestas comunidades, de forma a subsidiar o desenvolvimento e a implementação de políticas públicas que possibilitem o acesso integral destes indivíduos.
Diante do exposto, este estudo tem como objetivo conhecer o itinerário terapêutico adotado por quilombolas em situações de urgência/emergência pediátrica, demonstrando as práticas de cuidado do subsistema informal e os percursos realizados no sistema formal, com enfoque no acesso dos usuários.
Trata-se de uma pesquisa descritiva com abordagem qualitativa que teve como suporte teórico o modelo de Sistema de Cuidados à Saúde de Arthur Kleinman5.
O lócus do estudo foi a comunidade quilombola de Praia Grande, localizada na Ilha de Maré, na cidade de Salvador (BA). Esta foi eleita pela ausência de serviço de urgência/emergência e por se tratar de um estrato populacional com amplo acervo cultural, referente à herança africana.
Os critérios de elegibilidade dos participantes foram: ser habitante de Praia Grande com idade igual ou superior a 18 anos no momento da realização da pesquisa; ser pai, mãe ou responsável por alguma criança de 0 a 11 anos, 11 meses e 29 dias (o Estatuto da Criança e do Adolescente12, considera como criança a pessoa de até doze anos de idade incompletos) para quem já tenha prestado algum tipo de cuidado em situação de urgência/emergência; aceitar participar voluntariamente da pesquisa e não possuir nenhuma deficiência cognitiva ou verbal.
O número de participantes não foi previamente delimitado. Assim, as entrevistas foram realizadas até que se observasse uma repetição das respostas com a consequente saturação teórica dos dados13.
Para a detecção das crianças que vivenciaram alguma situação de urgência ou emergência na comunidade, contamos com a parceria de agentes comunitários de saúde (ACS), representantes das ONG e com o apoio da própria população que, por meio da técnica conhecida como snowball, ou bola de neve, ia nos indicando outras pessoas que atendiam aos critérios de inclusão para a composição do universo da pesquisa14. Foi utilizado como parâmetro para classificar as urgências/emergências o sistema de classificação de risco direcionado à pediatria recortado do manual de acolhimento de uma unidade de saúde de São Paulo15, eleito por ser o único direcionado especificamente à faixa etária estudada.
Os dados foram coletados de dezembro/2013 a junho/2014, após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Bahia, tendo sido respeitados os princípios éticos estabelecidos pela Resolução 466/12, do Ministério da Saúde16.
As técnicas de coleta de dados foram: 1) aplicação de formulário construído com base no questionário Vigitel, proposto pelo Ministério da Saúde, que possibilitou a caracterização sociodemográfica das participantes e das crianças para as quais foi prestada assistência; 2) entrevista semiestruturada, que teve como instrumento um roteiro composto por questões semiabertas que versavam sobre os cuidados fornecidos a estas crianças, bem como seu trajeto pelos aparelhos sociais, que permitiram traçar o itinerário terapêutico.
As entrevistas foram realizadas individualmente, em local escolhido pelas participantes, gravadas e tiveram duração média de dez minutos. Posteriormente, foram transcritas na íntegra e codificadas com a letra E seguida do número relativo à ordem em que foram realizadas: E1 a E12.
Para a análise dos dados foi utilizada a técnica de Análise de Conteúdo Temática17. Definiu-se como Unidade de Registro (UR) a frase, tendo emergido um quantitativo de 105 unidades de análise temática agrupadas em 26 temas, que serão discutidos em duas categorias: Subsistema popular: porta de entrada dos cuidados e Subsistema formal: peregrinação na busca por cuidados.
Inicialmente, será exposta a caracterização sociodemográfica das participantes (Tabela 1) e das crianças (Tabela 2). Posteriormente, será dada voz às entrevistadas, demonstrando o IT adotado no cuidado à criança em situação de urgência/emergência, a partir das categorias que emergiram da análise.
Tabela 1 Caracterização das participantes (N=12). Salvador-BA, dez. 2013 – jun. 2014.
N | % | ||
---|---|---|---|
Sexo | |||
Feminino | 12 | 100 | |
Faixa Etária | |||
Até 19 anos | 1 | 8,3 | |
20–29 anos | 4 | 33,3 | |
30–39 anos | 7 | 58,3 | |
Escolaridade | |||
Ensino Fundamental | 6 | 50,0 | |
Ensino Médio | 5 | 41,7 | |
Nível Superior | 1 | 8,3 | |
Número de Filhos | |||
Um | 6 | 50,0 | |
Dois | 3 | 25,0 | |
Três | 1 | 8,3 | |
Quatro | 2 | 16,7 | |
Ocupação | |||
Marisqueira | 6 | 50,0 | |
Outros | 6 | 50,0 | |
Renda | |||
Familiar (em reais) | |||
Per Capita (em reais) | |||
Parentesco | |||
Mãe | 12 | 100 | |
Religião | |||
Evangélica | 5 | 41,7 | |
Católica | 4 | 33,3 | |
Não tem | 3 | 25,0 | |
Situação Conjugal | |||
Solteira | 4 | 33,3 | |
Casada/Relação Estável | 7 | 58,3 | |
Divorciada | 1 | 8,3 | |
Raça/Cor | |||
Negra (preta/parda) | 9 | 75,0 | |
Amarela | 1 | 8,3 | |
Branca | 1 | 8,3 | |
Outra | 1 | 8,3 | |
Benefício Social | |||
Bolsa Família | 11 | 91,7 | |
Nenhum | 1 | 8,3 | |
N° (%) ou Mediana (IQR)* | |||
890,00 (605,00; 1100,00) | |||
212,50 (151,65; 286,65) |
*N°, número; %, percentual; IQR, Intervalo Interquartis.
Tabela 2 Caracterização das crianças. Salvador-BA, dez. 2013 – jun. 2014.
Participante | Idade* | Sexo | Problema de saúde | Plano de saúde | Tipo de atendimento | Consulta de rotina | Problema apresentado |
---|---|---|---|---|---|---|---|
E1 | 2 anos | M | Não | Não | Público | Não | Convulsão Febril |
E2 | 11 meses | F | Não | Não | Público | Sim | Convulsão Febril |
E3 | 7 anos | F | Sim (asma) | Não | Público | Sim | Crise Asmática |
E4 | 3 anos | M | Não | Não | Particular | Não | Queimadura |
E5 | 1 ano | F | Não | Sim | Particular | Não | Febre Alta |
E6 | 1 ano | F | Não | Não | Ambos | Sim | Convulsão Febril |
E7 | 1 ano | F | Não | Sim | Particular | Sim | Convulsão Febril |
E8 | 6 anos | M | Sim (asma) | Não | Público | Não | Crise Asmática |
E9 | 10 meses | M | Não | Não | Público | Não | Desidratação por Diarreia e Êmese |
E10 | 3 anos | M | Não | Não | Particular | Sim | Convulsão Febril |
Ell | 7 anos | M | Não | Não | Público | Sim | Febre Alta |
E12 | 1 ano | M | Não | Não | Público | Sim | Febre Alta |
*Idade quando apresentou o problema caracterizado como urgência/emergência.
Todas as participantes eram do sexo feminino, majoritariamente negras e mães das crianças para as quais prestaram cuidados em situação caracterizada como urgência/emergência. No momento da coleta de dados, a maioria estava na faixa etária de 30–39 anos, era casada ou estava em uma relação estável, possuía apenas 1 filho e se declarou como da religião evangélica (Tabela 1).
Quanto à variável escolaridade, sobressaiu o ensino fundamental (completo ou em curso) e no que se refere à ocupação, predominou a mariscagem, tendo sido citadas também outras atividades profissionais que não necessitavam de qualificação em ensino superior como: artesã, dona de casa, comerciante, auxiliar de desenvolvimento infantil (ADI) e faxineira (Tabela 1).
No quesito renda, verificou-se que a quase totalidade estava sendo beneficiada pelo Programa Bolsa Família, com mediana de ganho familiar de R$ 890,00 e domiciliar per capita de R$ 212,50, o que permite classificá-las como grupo vulnerável e com baixo índice de desenvolvimento humano municipal renda (IDHM)18,19 (Tabela 1).
Em relação às crianças, a maioria (N = 7) era do sexo masculino, na faixa etária predominante (N = 7) de 1 a 4 anos, seguida das crianças entre 5 e 8 anos (N = 3) e daquelas menores de 1 ano (N = 2) quando da prestação de assistência nas situações caracterizadas como urgência/emergência (Tabela 2).
Quanto às características de saúde, a maioria (N = 10) das crianças não possuía patologia de base e nos 2 casos em que foi constatada a existência desta, tratava-se de asma, o problema que originou a situação de urgência em ambos os casos. A quase totalidade (N = 10) não possui plano de saúde e a maioria (N = 8) recorre ao serviço público quando necessita de atendimento profissional e em mais da metade dos casos (N = 7) foi constatado que no último ano a criança passou por atendimento médico de rotina (Tabela 2).
No que diz respeito ao problema apresentado pela criança, foram citados cinco agravos, a maioria de natureza clínica: convulsão febril (N = 5), febre alta (N = 3), crise asmática (N = 2), desidratação relacionada à diarreia e êmese (N = 1) e queimadura (N =1), com destaque para as convulsões secundárias à febre.
Os cuidados fornecidos no subsistema popular são de ordem informal e seu conhecimento é derivado do senso comum, incluindo a compreensão da família acerca do adoecimento e cuidado, bem como a rede social e comunitária do indivíduo5.
O IT da comunidade em estudo teve como ponto de partida os cuidados fornecidos neste subsistema, traduzidos na assistência fornecida pela família, visto ser a prestação de cuidados uma questão primariamente familiar, pois é esta quem luta com as atividades da vida diária, lida com a dor e com a existência de problemas de saúde mais graves20, conforme observado neste estudo e corroborado por outros autores21,22.
Kleinman e Geest20 reconhecem a existência de um forte viés de gênero no ato de cuidar, de modo que na rede familiar predomina o cuidado exercido por mulheres. Neste direcionamento, chama-se atenção para a composição totalmente feminina do universo de participantes deste estudo. Indivíduos do sexo masculino também foram convidados a participar da pesquisa, contudo se recusaram e convocaram suas esposas ou outras mulheres para fazê-lo, sob a alegação de que estas eram mais aptas a fornecer a entrevista, pois tinham maior ciência acerca dos fatos e dos cuidados fornecidos à criança.
Tal fenômeno se relaciona à construção histórica e cultural da mulher, que remete à figura feminina a atribuição de cuidar dos seus, sendo uma função ou responsabilidade considerada por todos como inata e natural22. Desta forma, a mulher se torna protagonista no fornecimento dos cuidados em saúde e responsável pela assistência à família, sendo a principal e, às vezes, a única cuidadora e gerenciadora do cuidado no contexto familiar, conforme é demonstrado em estudos23–25 sobre IT.
No IT de crianças, a mulher-mãe geralmente se destaca como a principal cuidadora. Assim, conforme demonstra a Tabela 1, todas as participantes deste estudo são mães das crianças para as quais prestaram alguma assistência, concordando com Leite e Vasconcelos26 de que nos agravos infantis a mãe é a protagonista dos cuidados, sendo presença quase sempre constante. Este achado se assemelha com os resultados apresentados por outros autores27,28.
Quanto às práticas cuidativas, emergiram recursos correspondentes ao modelo explanatório do subsistema popular, com destaque para o uso de ervas e frutas no preparo de remédios caseiros, banhos e chás, conforme é possível verificar nas seguintes falas:
Dei só o remédio caseiro. Dei xarope, um bocado de folha aí. É o abacaxi, é o xarope do abacaxi também que minha mãe faz, o manguço da banana, o xarope que ela faz e é o xarope da… de folha é… O capim santo, maria preta, é o quioiô, isso aí que faz pra puder combater. (E8)
Os vizinhos acudiram ela, deram banho de folha [quioiô] e o remédio [dipirona] até ela voltar em si. (E6)
Os termos os vizinhos acudiram, o povo me ensinava revelam, assim como ocorreu no estudo de Budó et al.23 o fortalecimento do cuidado familiar pela rede de suporte social, formada por parentes, amigos e vizinhos, característica marcante do subsistema informal, já consagrada por Kleinman quando afirma ser o “setor popular” composto por indivíduos, famílias e arena social na qual são tomadas decisões acerca da doença, cuidados e conduzido o tratamento6. Essa rede é considerada por Gutierrez e Minayo22 como um valioso recurso e a principal fonte de ajuda, principalmente entre as famílias pobres.
Além dos recursos naturais, utilizados no subsistema familiar e popular29, emergiu também a automedicação e práticas concernentes ao subsistema profissional, como a utilização de medicações prescritas, de modo que houve conciliação entre os recursos do sistema formal e informal de cuidados, assim como evidenciado no estudo de Maliska e Padilha30. Dentre as medicações utilizadas, emergiram os broncodilatadores, antibióticos, analgésicos e anti-inflamatórios, com destaque para estes últimos, o que assemelha estes resultados com os de Souza31:
Eu usei uma bombinha que o médico mesmo ensinou. Além desse aparelho que usa quando ela tá com esse problema, aí eu faço chá… (E3)
Dei medicamento, no caso dipirona, e fiz assim, chás caseiros. Chá de Capim santo, erva cidreira, erva doce, que podia ser gases né? (E5)
Assim como em outros estudos25,29,31 foi evidenciada a influência cultural relacionada ao uso de chás e a utilização de medicamentos industrializados sem controle médico23,25,29,31, em especial a dipirona, também destacada por Pereira et al.32 como uma das drogas de escolha para controle da febre, uma vez que esta se encontra disponível com facilidade para a maioria da população, sendo comercializada livremente em países da América Latina, Europa, África e Ásia32. O uso da automedicação pode decorrer, inclusive, da dificuldade de obter assistência no subsistema profissional33.
Além dos recursos naturais e dos medicamentos industrializados, também sobressaíram as medidas físicas para diminuição da temperatura, como o banho com álcool e a imersão em água fria:
Quando foi no outro dia, deu convulsão à noite. Aí como eu já tinha experiência da menina que deu o banho com álcool, aí já comprei o álcool e deixei em casa. […] aí a mesma coisa eu fiz. (E1)
A gente colocou ela na água fria. A gente botou dentro do tonel na verdade… depois ficou jogando água fria e colocando um pano úmido. (E2)
Tais meios são apontados34 como ineficazes, pois não alteram o set point hipotalâmico e, consequentemente, não atuam no mecanismo fisiopatológico da febre. Contudo, conforme explicam Arcanjo et al.33, o comportamento na enfermidade relaciona-se aos valores culturais e a escolha do tratamento demonstra a expressão da população, sendo o uso dos meios físicos caracterizado, segundo definição de Gutierrez e Minayo22, como um elemento culturalmente cristalizado, ou seja, uma prática inerente ao subsistema popular e, por isso, utilizada tanto em comunidades quilombolas como também por outros indivíduos.
Além destas estratégias de cuidados, ainda foi citada realização de “massagens”, que também é referida por Neves e Nunes35 como terapêutica complementar nos cuidados em saúde do subsistema informal:
[…] minha mãe pegou ela (a criança), estava toda se batendo… começou a fazer massagem nela no peito… Aí a casa começou a encher, aí continuou a fazer massagem e aí que ela começou a voltar ao normal…. (E7)
A religiosidade apareceu como pano de fundo, de forma que as mães buscavam a Deus quando da ocorrência do agravo com suas crianças, almejando tanto a resolução do problema como uma orientação divina acerca do modo como deveriam proceder, conforme é possível constatar nesta fala:
E eu orando, mesmo assim orando e pedindo uma orientação a Deus, uma luz… (E1)
Segundo Arcanjo et al.33, pesquisas recentes evidenciam a ligação entre saúde, crenças e práticas espirituais, incluindo a prece, a busca por serviços religiosos e a fé em Deus. Neste sentido, a recorrência ao âmbito religioso é uma estratégia comum no subsistema informal, não sendo particular às mães deste estudo, visto ter sido identificada por outros autores23,25,29,33.
Além de ser o local de produção dos cuidados, é na família que este é gerenciado e avaliado29 e, conforme salienta Kleinman5, neste domínio são tomadas as decisões sobre quando procurar outros subsistemas.
Assim como Rati et al.36, evidenciamos que as mães deste estudo possuem um limite de segurança para cuidar de seus filhos, e a busca por serviços institucionalizados do sistema formal ocorreu, especialmente, quando as respostas aos recursos do subsistema informal não foram positivas, assim como exposto em outros estudos23,25,31:
[…] Eu cuidei em casa, quando persistia que não deu resultado nenhum nem com medicamento, que eu levei […]. (E5)
Neste contexto, duas das participantes revelaram que os cuidados foram fornecidos somente no subsistema informal; três recorreram ao subsistema formal ao mesmo tempo em que prestava cuidados pertinentes ao subsistema informal; em um caso (queimadura), a criança adentrou diretamente o subsistema formal; e nos outros seis, os IT foram completados no subsistema formal, já que as respostas às alternativas do informal não foram suficientes.
O subsistema profissional consiste da medicina científica5 e é formado pelas profissões de cura organizadas e com aprendizado formal, legalmente reconhecidas e representadas nas sociedades ocidentais pelo saber biomédico37.
Para Rati et al.36, a instituição deste subsistema a ser requisitada depende de fatores como resolutividade, qualidade, especificidade em pediatria, facilidade de acesso, localização geográfica, experiências positivas no passado e acolhimento prestado. Contudo, Marques et al.28 destacam que nos estratos mais pobres, como é o caso da comunidade em estudo, os serviços de atenção primária como fonte regular de assistência à saúde são utilizados com maior frequência.
Assim como no estudo28 realizado em um quilombo de Minas Gerais, observou-se que a instituição do sistema formal mais próxima dos quilombolas consiste no serviço de atenção básica, tornando-o como principal referência para o cuidado das crianças quando da ocorrência de agravos, inclusive nos casos de urgência/emergência.
Cabe salientar que a Unidade de Saúde da Família (USF) ainda não havia sido instalada na comunidade quilombola em estudo quando foram delineados os IT de seis participantes, o que tornava mais frequente a busca de instituições de saúde em outra localidade, conforme evidenciado na seguinte fala:
Naquela época aqui não tinha posto ainda. […] Levamos ele pra Salvador. (E11)
Entretanto, mesmo após o funcionamento da USF no quilombo em estudo, identificou-se que na construção do IT de seus filhos em situação de urgência e emergência, as mães não a procuravam:
Não fui no posto, não. Fui logo levar para Salvador. Eu prefiro levar pra salvador. Você chega no posto… nem todo dia a gente encontra médico né? (E4)
Esta fala reflete a preferência da mãe em deslocar sua criança para outra localidade, demonstrando que a população considera precário o atendimento fornecido na comunidade, especialmente no que tange à assistência em situações de urgência e emergência pediátrica. Além disso, o funcionamento desse serviço tem restrição de horários, sendo limitado ao período diurno. Desta forma, na ocorrência de agravos à noite, a população de Ilha de Maré está impossibilitada de ser atendida neste serviço, tendo de recorrer ao continente para buscar por cuidados profissionais, conforme verbalizado por uma das participantes:
(Chegou a levar seu filho no posto?) Não, porque foi de madrugada, estava fechado aqui. (E7)
Houve também mães (N = 3) que revelaram que o início do IT neste subsistema se deu pela atenção básica, a partir da USF. Em um dos casos, a participante referiu que o posto forneceu assistência e houve resolutividade. Nos outros dois, as depoentes informaram que não receberam nenhum tipo de assistência quando procuraram a USF, tendo sido orientadas a se dirigir para o continente:
Levei no posto, mas na mesma hora mandou ela pra Salvador. (E3)
A assistência pela Atenção Básica em casos de urgência e emergência é legalmente estabelecida38, de forma que este nível de atenção é caracterizado como porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS) e, como componente da rede assistencial dos Sistemas Estaduais de Urgência e Emergência, deve ofertar o primeiro atendimento a pacientes portadores de quadros agudos e/ou transporte adequado a um serviço de saúde hierarquizado.
Nos casos em que as mães foram orientadas a se reportar a outro serviço, adensamos o exposto por Marques et al.28 em seu estudo num quilombo, de que se consideradas as dificuldades socioeconômicas e as vulnerabilidades pessoais a postura da atenção primária assume maior dimensão, retratando a perversa iniquidade a que estão submetidos os quilombolas.
O reflexo deste ato incide no rompimento do vínculo que o usuário deveria estabelecer com este nível de atenção. A quebra do vínculo traz a reboque o descrédito da população neste serviço, retratado na pesquisa de Lago et al.39 que, com o objetivo de descrever o IT de usuários que buscam assistência em um serviço de urgência (SU) e os motivos para tal, demonstrou que 82,6% dos participantes não se dirigiram à rede básica por já terem vivido situações nas quais não receberam cuidados próprios para sua situação neste nível de atenção. Aspecto semelhante foi verbalizado por uma das mães deste estudo, cujo descrédito a fez considerar o posto de saúde como um local apenas para realização de “consultas básicas”:
O que for ali tem que descer, não tem nada, ali só é uma consulta básica, é marcar para pegar uma requisição, porque nada não tem, atendimento nenhum pra socorro não tem. Se for pelo posto a gente morre aqui. Eu mesma não levo no posto. Se for um caso disso eu não levo. Já vou direto adiantar meu lado, porque quando chega lá eles mandam descer, mandam ir pra fora do mesmo jeito. (E2)
Nesta perspectiva, o local procurado para o atendimento dos agravos foi a unidade de urgência/emergência, apontada em outros estudos36,39 como a primeira opção do paciente por conta da falta de resolutividade da atenção básica. Cabe salientar que o acesso dessa população aos serviços de urgência e emergência exige que os usuários percorram grandes distâncias, visto que estes se localizam distante da comunidade.
Na busca pelo SU, as informantes revelaram que tiveram de providenciar por meios próprios o transporte até o continente, já que não houve intermediação da atenção básica nos casos em estudo:
Vou com um barco daqui, tem que fretar o barco. (E8)
Em alguns relatos, evidenciam-se as dificuldades encontradas para o transporte dos filhos enfermos:
Quando foi na quarta-feira ele volta novamente, a febre, gemendo, aí eu disse ‘eu não vou esperar ele dá convulsão’. Meu cunhado foi me levar lá em Botelho, fui andando, enfrentando lama e tudo, pra pegar o barco para ir pro hospital. (E1)
Esta fala confirma a proposição de Guerin et al.40 de que para acessar o serviço de saúde e solucionar seu problema o usuário percorre inúmeros caminhos, sendo criado o IT mais apropriado. Contudo, conforme percebido neste relato, no delineamento do IT mais apropriado, muitas vezes, estas pessoas são expostas a condições desumanas para conseguir acessar as instituições do subsistema formal e garantir os cuidados necessários.
Convém dizer que o transporte de ilhéus não deveria ser tão dificultoso, pois em algumas comunidades isoladas por rio ou mar, como é o caso daquela onde foi desenvolvido este estudo, os transportes de socorro consistem nas ambulanchas, que são veículos aquáticos equipados para a prestação de cuidados pré-hospitalares. Seu acionamento ocorre pelo número 192, do Serviço de Atendimento Móvel às Urgências (SAMU), e pode ser feito tanto pelos quilombolas como pelos profissionais do posto de saúde. Neste estudo, foi percebido que nem um nem outro acionaram a ambulancha, de modo que em todos os casos as participantes utilizaram barcos particulares dos moradores da comunidade:
[…] Paguei pra ir. O barco e o carro. (E6)
A fala acima demonstra que a mãe custeou tanto a travessia como o transporte terrestre até o SU quando chegou ao continente, não tendo sido requisitado o SAMU em nenhum momento do itinerário. Foram citadas múltiplas razões para a ambulancha não ter sido solicitada, com destaque para a falta de resposta aos chamados:
Por que eu não lembrei viu? O que eu achei na hora… Tinha um barco disponível, eu achei melhor optar por ele. Porque é um protocolo [chamar a ambulância], viu? (E12)
Se for esperar a ambulância aqui morre. (E2)
Estas falas demonstram a dificuldade vivenciada no IT destas pessoas no que concerne ao acesso a transportes de urgência. Esta situação não se restringe à comunidade quilombola deste estudo, visto ter sido citada também por outros autores8,41.
A chegada ao continente não foi, necessariamente, sinônimo de resolutividade, de modo que, em alguns casos, o sofrimento vivenciado por estas mães não cessou e a busca por cuidados se revelou como uma peregrinação pelo subsistema formal:
[…] passei no HGE pensando que estava atendendo, não estava. Depois, aí eu conversando e ela [uma passageira do ônibus] vendo ele gemendo, aí ela fez assim: […] Olhe, passe no posto (UPA) de Itapuã que no posto de Itapuã atende e atende bem e faz todos os exames dele. Eu digo, é? já estou aqui mesmo, vou saltar. Agradeci a ela e desci. Fui lá pro posto de Itapuã. Cheguei já à noite. Foi aí que ele ficou internado. (E1)
A peregrinação na busca por atendimento é caraterizada por Deslandes42 como uma das formas de exposição do usuário à violência institucional. Neste sentido, vislumbramos que esta violência se traduz, além dos percursos árduos empreendidos pelos quilombolas para acessar o subsistema formal, no tratamento dispensado pelos profissionais deste subsistema, traduzido na seguinte fala:
[…] Quando a pessoa vai atender a gente trata tudo… muito agressivo com a gente, não tem paciência de atender a pessoa certo, com calma, às vezes até dando desaforo, né? (E11)
Diante deste relato, fica claro o descaso de profissionais no atendimento a pessoas de baixo nível socioeconômico, o que caracteriza a iniquidade em saúde. Com resultados semelhantes, Sisson et al.43 demonstraram em seu estudo que, dentre outros aspectos, a insatisfação se relacionou à qualidade do atendimento prestado tanto por profissionais como por recepcionistas, não individualizado e sem atenção especial à paciente.
O atendimento considerado bom é aquele que responde às demandas do usuário, sendo determinante da satisfação com o serviço. Para alcançá-lo, muitas vezes, os usuários têm de recorrer a outras instituições, como pode ser percebido na seguinte fala:
Aí o médico também me atendeu super bem, sabe o que é super bem? fez exame nele, tirou Raio X, que foi aí que viu que ele estava com infecção respiratória. (E1)
Diante do exposto, notamos que para atingir o cuidado almejado neste subsistema, as mães tiveram de percorrer múltiplos caminhos, que se caracterizaram como uma verdadeira peregrinação pelos serviços de saúde, cujo início ocorreu na ilha e só foi concluído após tentativas no continente.
Conforme Ceccim et al.44, a criação do SUS representou a ampliação do “acesso da população às ações e aos serviços de que necessita em saúde”. Concordamos em parte com esta assertiva, pois ao mesmo tempo em que é ampliado o acesso, também são impostas dificuldades, seja pela operacionalização destes serviços, seja pela conduta dos profissionais deste subsistema, que às vezes tornam os caminhos para o alcance destes cuidados tortuosos e, por consequência, cruéis.
Assim como Guerin et al.40, acreditamos que ao trazer a peregrinação das mães em busca por resolver as demandas de seus filhos, colocamos em evidência as implicações do sistema de saúde em seus itinerários, demonstrando tanto a resolutividade como aquilo que “escapa” a estes serviços e, desta forma, apontando para os aspectos que requerem mudança rumo ao alcance do cuidado integral e resolutivo em saúde.
Os achados deste estudo reafirmam a situação de vulnerabilidade da população negra, em especial a quilombola, na questão do acesso e da utilização dos serviços de saúde apontada por Silva et al.41. A análise sobre o IT desta comunidade em situações de urgência/emergência evidencia as experiências, trajetórias e projetos individuais formulados e elaborados dentro de um campo de possibilidades3, caracterizando-se como um estudo com potencial de engendrar medidas por parte do poder público, contribuindo para a superação da invisibilidade demográfica e epidemiológica deste estrato populacional45.
Este estudo evidenciou que nas situações de urgência/emergências com crianças que vivem em comunidade quilombola, a construção do itinerário terapêutico ocorre tanto no subsistema informal quanto no formal de cuidados.
Os cuidados se iniciaram no subsistema popular junto aos familiares e à rede de suporte social característica deste subsistema, sendo explorados recursos da vida diária, com evidência para o uso de chás, remédios caseiros, massagens e automedicação, o que demonstrou a forte marca cultural desta comunidade.
A busca pelo subsistema profissional ocorreu após tentativas de cuidado no popular e se revelou como uma verdadeira peregrinação pelas instituições de saúde, caracterizando a dificuldade de acesso dos quilombolas aos serviços do sistema formal. A peregrinação se iniciou na própria comunidade a partir da busca pelo serviço de atenção básica, que se mostrou ineficaz na prestação de assistência nestes casos e teve continuidade em outras localidades, onde o acesso aos serviços de saúde foi revelado como difícil e evidenciou as iniquidades em saúde vivenciadas pelos quilombolas quando necessitam de assistência profissional.
Ao demonstrar o itinerário terapêutico desta população, revelamos mais que a trajetória na busca por cuidados, pois permitimos que as mães compartilhassem suas experiências e expressassem as dificuldades enfrentadas quando necessitam acessar os serviços de saúde, o que desvelou a falta de resolutividade e de acolhimento do subsistema profissional, seja na própria ilha ou no continente.
Estes resultados apontam que a população quilombola não usufrui de atenção integral à saúde, podendo servir de subsídio para a formulação de políticas públicas que garantam esse acesso, incluindo a efetuação da atenção básica como porta de entrada e o adequado funcionamento das ambulanchas, de forma a assegurar a resolutividade e integralidade do SUS.