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Labirintite associada à otite média: experiência de 26 anos

Labirintite associada à otite média: experiência de 26 anos

Autores:

André Souza de Albuquerque Maranhão,
Valeria Romero Godofredo,
Norma de Oliveira Penido

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Otorhinolaryngology

versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686

Braz. j. otorhinolaryngol. vol.82 no.1 São Paulo jan./fev. 2016

http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2014.12.012

Introdução

O advento dos antibióticos e imunizações, no século passado, levou a um declínio considerável na incidência de complicações de otites médias, portanto, uma discussão sobre labirintite associada à infecção da orelha média pode parecer, à primeira vista, um assunto ultrapassado. No entanto, as complicações ainda ocorrem, com taxas significativas de morbidade (notavelmente, deficiência auditiva), particularmente nos países em desenvolvimento.1-6Leskinen et al. estudaram 50 pacientes tratados por complicações de otite média e, dentre as diversas complicações elencadas no estudo, a labirintite foi apontada como a mais incapacitante, com todos os indivíduos acometidos evoluindo para perda auditiva profunda ou completa.2

O diagnóstico de labirintite secundário à otite media é essencialmente clínico, através da observância de vertigem, nistagmo, zumbido e deterioração da audição no contexto de uma infecção da orelha média. Em muitas doenças da orelha interna, o processo inflamatório que ocorre é geralmente presumido, em vez de efetivamente diagnosticado, e os corticosteroides são prescritos empiricamente como tratamento de escolha.7O reconhecimento da labirintite supurativa é geralmente mais evidente, devido a magnitude e severidade dos sintomas, ao passo que, na labirintite serosa, os sintomas são mais sutis, e muitos pacientes evoluem satisfatoriamente com o tratamento da doença subjacente da orelha média, de modo que o diagnóstico nem sempre é realizado.

A localização complexa das estruturas da orelha interna no osso temporal, albergadas no denso osso da cápsula óptica, representa um obstáculo significativo para acessar e identificar qualquer alteração nesta região, haja vista que o conhecimento atual sobre fisiopatologia da orelha interna é oriundo, principalmente, de estudos em animais, envolvendo coleta de tecidos, análises histológicas, moleculares e de marcadores inflamatórios. Diante disso, pouco se sabe sobre os mecanismos envolvidos nas doenças da orelha interna humana in vivo .8

Exames de imagem são ferramentas importantes na tentativa de melhor compreender a dinâmica da inflamação da orelha interna. Assim como a tomografia computadorizada (TC) de alta resolução avalia doenças que afetam o labirinto ósseo, a ressonância nuclear magnética (RNM) define as doenças que acometem o interior da cápsula óptica e as vias retrococleares. Recentes avanços nas técnicas de RNM oferecem oportunidades interessantes para o estudo da estrutura, função e metabolismo da cóclea in vivo . A utilização do gadolínio como meio de contraste no estudo da orelha interna agrega sensibilidade à RNM, particularmente para doenças como a labirintite.8-11

O objetivo da presente pesquisa foi analisar fatores clínicos e resultados auditivos de pacientes com labirintite secundária a infecções de orelha média e discutir os resultados de exames de imagem.

Método

Estudo de coorte retrospectivo, com base nos prontuários dos pacientes atendidos pelo departamento de Otologia/Otoneurologia de um hospital universitário terciário, entre 1987 e 2013. Foram incluídos na pesquisa os pacientes em cujos prontuários constava o diagnóstico de labirintite secundária à otite média. Foram excluídos os prontuários com informações incompletas e aqueles em que o diagnóstico de labirinte não foi bem estabelecido. Os seguintes dados foram coletados dos prontuários: idade, sexo, história clínica, tipo de infecção da orelha média, complicações associadas, resultado das audiometrias e resultados de exames de imagem. Todos os pacientes receberam antibioticoterapia e corticoterapia sistêmica. O estudo foi aprovado pelo comitê de ética da instituição sob o protocolo n.º 0081/10.

Resultados

Foram identificados 14 pacientes diagnosticados com labirintite associada à otite média. Oito eram do sexo feminino (57%) e seis (43%) do sexo masculino. A média de idade foi de 40 anos, variando de 9 a 67 anos ( tabela 1 ).

Tabela 1 Descrição dos casos 

Caso Sexo Idade Diagnóstico otológico Comorbidade Exame de imagem Complicação associada Resultado auditivo
1 F 59 OMCC Diabetes mellitus TC Fístula labiríntica PAM severa
2 F 20 OMCNC SIDA TC Meningite Anacusia
3 M 9 OMCC TC Fístula labiríntica Anacusia
RNM Meningite Abscesso cerebelar
4 M 39 OMCC Pneumonite eosinofílica crônica TC Anacusia
5 M 43 OMCC TC Fístula labiríntica PAM severa
6 M 18 OMCC TC Meningite Anacusia
RNM Fístula labiríntica Abscesso temporal
7 F 31 OMCC TC Meningite Anacusia
Paralisia facial Fístula labiríntica
8 F 17 OMCC TC Meningite Anacusia
RNM Fístula labiríntica Mastoidite Abscesso cerebelar
9 M 31 OMA Granulomatose de Wegener TC Paralisia facial PAM moderada-severa
RNM Mastoidite
10 F 52 OMA Granulomatose de Wegener TC Paralisia facial PAM moderada-severa
RNM Mastoidite
11 F 42 OMA Granulomatose de Wegener TC Paralisia facial PAM severa-profunda
RNM Mastoidite
12 F 64 OMA Diabetes mellitus TC Paralisia facial PAM moderada
RNM
13 F 41 OMA TC Paralisia facial Anacusia
RNM Meningite
14 F 67 OMA Diabetes mellitus TC Mastoidite Anacusia
RNM

OMCC, otite média crônica colesteatomatosa; OMCNC, otite média crônica não colesteatomatosa; OMA, otite média aguda; RNM, ressonância nuclear magnética; TC, tomografia computadorizada; SIDA, síndrome da imunodeficiência adquirida; PAM, perda auditiva mista.

Todos os pacientes apresentavam otite média antes do diagnóstico de labirintite. As otites médias foram classificadas da seguinte forma: otite média crônica colesteatomatosa (OMCC) em seis (43%) indivíduos, otite média aguda (OMA) em seis (43%), e otite média crônica não colesteatomatosa (OMCNC) em dois (14%). Treze (93%) pacientes apresentavam uma ou mais das seguintes complicações associadas (total de 24 complicações registradas): fístula labiríntica ( fig. 1 ) em seis pacientes (25%, n = 24); meningite, paralisia facial e mastoidite em cinco pacientes cada (21%, n = 24); abscesso cerebelar ( fig. 2 ) em dois (8%, n = 24); e abscesso temporal em um paciente (4%, n = 24). Houve um óbito neste estudo (caso 7) ( tabela 2 ).

Figura 1 Tomografia dos ossos temporais, corte axial. Seta mostra erosão do canal semicircular lateral no lado esquerdo em um paciente com OMCC. Nota: erosão posterior na mastoide, adjacente ao seio sigmoide. 

Figura 2 Tomografia de crânio com contraste, corte axial, janela para partes moles. Demonstra abscesso cerebelar à esquerda. Nota: edema de partes moles adjacente ao osso temporal esquerdo, consistente com mastoidite. 

Tabela 2 Distribuição das complicações (n = 24) 

Complicação N %
Fístula labiríntica 6 25
Meningite 5 21
Paralisia facial 5 21
Mastoidite 5 21
Abscesso cerebelar 2 8
Abscesso temporal 1 4

Zumbido foi relatado em 14 pacientes (100%), vertigem em 10 (71%) e nistagmo em cinco (36%). Oito (57%) pacientes tornaram-se anacúsicos e seis (43%) evoluíram para perda auditiva mista (moderada a profunda). Em nove pacientes (64%), o diagnóstico de labirintite foi confirmado com o auxílio da RNM contrastada ( fig. 3 ) e com a sequência FIESTA ( fast imaging employing steady state acquisition ) ( fig. 4 ). A TC de ossos temporais corroborou o diagnóstico em três pacientes (casos 2,3 e 4) (21%), através da observação de ossificação da cóclea ( fig. 5 ).

Figura 3 RNM ponderada em T1, com gadolíneo. Realce de contraste em cóclea esquerda (seta) em paciente com granulomatose de Wegener. Nota: hipercaptação de contraste em orelha média. Paciente com mastoidite associada. 

Figura 4 RNM sequência FIESTA, corte coronal. Seta mostra hipossinal em cóclea e projeção do vestíbulo. Mesmo paciente da figura 3. 

Figura 5 Tomografia de osso temporal esquerdo, corte axial. Demonstra ossificção coclear. Nota: mastoide hipodesenvolvida, preenchida por material com densidade de partes moles. 

Discussão

Sabe-se que a sequência de eventos que ocorrem durante um episódio de labirintite segue, tipicamente, três fases. Na fase aguda, bactérias e leucócitos surgem no espaço perilinfático; na fase fibrosa, otecido de granulação constituído de fibroblastos associados à neovascularização resulta em fibrose; e, por fim, a fase de ossificação é caracterizada por formação óssea metaplásica. 12 Em animais com labirintite purulenta, a fibrose foi observada precocemente, em duas semanas, e a ossificação em dois meses após a infecção. 8 Na presente coorte, todos os indivíduos que desenvolveram ossificação da cóclea foram diagnosticados pelo menos seis meses após o início da infecção, e todos evoluíram para perda completa de audição.

Destaca-se que os diagnósticos otológicos predominantes foram a OMCC e a OMA, embora a amostra seja pequena (n = 14). Padrões semelhantes são relatados em estudos realizados com números maiores de pacientes. 4,5 A maioria dos pacientes com OMCC teve fístula labiríntica como complicação associada. Supõe-se que o processo fisiopatológico, nestes casos, transcorra através do íntimo contato do tecido de granulação infectado abaixo da matriz de colesteatoma com a membrana endosteal e a perilinfa subjacente. 1,3-5 Já nos casos de OMA, acredita-se que a infecção se estende para o labirinto através de uma membrana da janela oval vulnerável ou deiscente. 2,12

Há poucas evidências diretas de inflamação ocorrendo durante a labirintite, e o conhecimento da dinâmica das respostas inflamatórias no interior da orelha interna humana é, ainda, limitado. 8 Acreditamos que a melhor compreensão do processo inflamatório e a possibilidade de estabelecer o seu curso em um determinado indivíduo auxiliariam na identificação do tipo e da localização da lesão coclear, resultando no desenvolvimento de tratamentos customizados, com o intuito de reduzir os efeitos deletérios nas delicadas estruturas da orelha interna. Tal fato alteraria o paradigma atual de ministrar corticoesteroides sistêmicos em todos os casos.

Alguns estudos em animais investigaram os mecanismos dos distúrbios da orelha interna inflamatório-induzidos; contudo, estudos em humanos são limitados. As razões podem ser: os fluidos e tecidos intralabirínticos, alojados internamente no complexo osso temporal, são difíceis de coletar para a cultura; a perda auditiva aguda ou a vertigem são raramente fatais, tornando os tecidos da orelha interna raramente disponíveis para autópsias; e o osso temporal, excepcionalmente, é removido em autópsias de rotina, limitando, dessa forma, ao estudos histológicos. 1,4

Os exames de imagem superam esses obstáculos e, na atualidade, desempenham papel importante no diagnóstico. Poucas áreas da Medicina têm se beneficiado dos avanços em diagnóstico por imagem, como a Otologia. 8,9 Foi possível a realização de RNM em 64% dos pacientes neste estudo, sendo esta uma ferramenta decisiva na confirmação do diagnóstico e na avaliação da extensão da doença.

Estudos anteriores 8-11 salientaram a importância da utilização do gadolínio em RNM, a fim de detectar lesões inflamatórias da orelha interna. Destacaram, ainda, que alterações incipientes no processo da doença são detectáveis ​​por essa técnica de ressonância magnética. Acredita-se, também, que o realce pelo meio de contraste resulte de uma ruptura da barreira hematolabiríntica (BHL). A BHL mantém a composição dos fluidos da orelha interna, protegendo-ade substâncias tóxicas através da propriedade de permeabilidade seletiva. 9,13

Na literatura radiológica, geralmente, três fases da labirintite são descritas: fase aguda, fase fibrosa e labirintite ossificante. 14 É importante mencionar que esta é uma divisão didática, sendo possível a ocorrência concomitante de fases. Na fase aguda, há intenso realce das estruturas da orelha interna nas imagens de RNM ponderadas em T1 após a injeção intravenosa de gadolínio ( fig. 3 ). Acreditamos ser justamente nessa etapa da doença que a RNM é determinante para o diagnóstico, visto que a labirintite apresenta, muitas vezes, sintomatologia frustra, não sendo possível identificá-la apenas clinicamente.

Nessa fase, estudos tomográficos são de pouca valia, assim como na fase fibrosa da labirintite. Com a substituição dos fluidos intralabirínticos por septações de tecido fibroso, característico da fase fibrosa, ainda pode haver realce da orelha interna pelo gadolíneo, porém, de forma menos pronunciada. À RNM ponderada em T2 e na sequência FIESTA ( fig. 4 ) é possível observar diminuição de sinal na orelha interna. Por sua vez, na fase da labirintite ossificante, onde debris e partições ósseas se formam, a TC de ossos temporais ( fig. 5 ) é o melhor exame para identificar a extensão e a localização das lesões. À RNM, tipicamente, não há captação de contraste, e nas sequenciais FIESTA e T2 observa-se hipossinal na região labiríntica.

Salientamos que todos os pacientes (100%) queixavam-se de zumbido, e todos evoluíram para algum grau de perda auditiva neurossensorial (com ou semgap aéreo-ósseo), e 71% queixaram-se de vertigem, geralmente correlacionada com a gravidade da infecção. Em uma série de casos mais abrangente, 2 os autores observaram perda auditiva profunda ou completa em todos os casos. Relataram ainda que a vertigem associada à labirintite foi compensada em todos os pacientes. Igualmente, observamos que, superado o quadro infeccioso agudo, os pacientes com queixas vestibulares evoluíram satisfatoriamente. Destaca-se, também, a importância de se valorizar a queixa de zumbido (onipresente neste estudo) que, apesar de ser bastante frequente em outras doenças otológicas, pode sinalizar para uma agressão incipiente ao neuroepitélio coclear.

É pertinente observar que a labirintite ocorreu com outras complicações em todos os casos, com exceção de um paciente (93%). Estas complicações normalmente recebem maior atenção devido à sua apresentação clínica mais urgente, causando atraso no diagnóstico da labirintite. No momento em que é identificada, a perda auditiva já está estabelecida. Com os tratamentos existentes na atualidade, mesmo que fosse possível diagnosticar precocemente, uma vez iniciado o processo inflamatório na orelha interna, este evolui para um processo inexorável de dano celular. Infelizmente, o diagnóstico precoce da labirintite ainda não muda o prognóstico auditivo, exceto em casos de doenças imunomediadas, como a granulomatose de Wegener, na qual é possível melhorar os limiares auditivos com tratamento específico. 15,16 Complicações concomitantes têm sido amplamente reportadas na literatura, 3-6 o que deve alertar os otorrinolaringologistas para a importância do exame meticuloso dos pacientes com complicações de otites médias, com o intuito de excluir complicações associadas.

Conclusões

A labirintite foi frequentemente associada a outras complicações. A RNM auxiliou no diagnóstico definitivo da labirintite em sua fase aguda; a sequela auditiva da labirintite foi significativa.

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