versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.12 Rio de Janeiro dez. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182312.21992016
A lactose é o principal carboidrato encontrado no leite. É constituída por dois monossacarídeos, glicose e galactose, caracterizando um dissacarídeo. A intolerância à lactose consiste na má digestão e absorção de lactose proveniente da redução da atividade da enzima β-galactosidase, nomeada também como lactase, que possui a capacidade de hidrolisar a lactose em glicose e galactose1. Indivíduos com intolerância à lactose são incapazes de digerir a lactose, que consequentemente não será absorvida no intestino delgado. Ao chegar ao cólon, a lactose é fermentada, ocorrendo a produção de ácidos graxos de cadeia curta e a formação de gases (dióxido de carbono, hidrogênio e metano) pela microbiota intestinal2, que podem ocasionar problemas gastrointestinais, desconfortos e alguns sintomas, como: náusea, cólica, flatulência, diarreia, inchaço, dor abdominal, dentre outros3. Normalmente, estes sintomas iniciam por volta de 30 minutos a 2 horas após o consumo de algum alimento contendo lactose4.
A intolerância a lactose pode ser classificada em três tipos: congênita, primária e secundária. A congênita é provocada pela ausência completa de lactase jejunal ao longo de toda a vida de um indivíduo, sendo detectada desde o nascimento da criança. A primária pode se desenvolver em qualquer idade, sendo provocada pelo decaimento da concentração de lactase no organismo humano, geneticamente programado (lactase não persistente), desde a primeira infância até a fase adulta, acarretando em dificuldades na hidrólise da lactose. A secundária ocorre devido à presença de lesões ou doenças intestinais, sendo transitória e reversível5.
A persistência da lactase (ou tolerância à lactose) nas diferentes populações parece estar associada com a domesticação de gado leiteiro e com o hábito do consumo de leite após o desmame6 e, portanto, a prevalência da intolerância à lactose varia de acordo com a região geográfica e os hábitos da população.
Estudo aponta que a não persistência da lactase, ou intolerância à lactose, está presente em 65% da população mundial7, e acomete em torno de 2 a 15% dos indivíduos descendentes de norte europeus, 60 a 80% dos negros e latinos e 80 a 100% dos índios americanos e asiáticos5. No Brasil, um estudo mostrou que a prevalência de intolerância a lactose primária no adulto, em uma amostra de 567 indivíduos, foi de 57% nos brancos e mulatos, 80% nos negros e de 100% nos japoneses8. Outros estudos apontam prevalência elevada na população brasileira: 44,1% em 1088 indivíduos do Sul do Brasil9 e 60,8% em 115 indivíduos do Sudeste do Brasil, sendo 53,2% nos brancos e 91,3% nos não brancos10.
Para o aparecimento dos sintomas decorrentes da deficiência primária de lactase é necessária uma redução de pelo menos 50% da atividade da enzima, o que explica parte da variação na tolerância a pequenas doses de lactose por indivíduos com intolerância à lactose. Outra possível explicação é a adaptação da microbiota intestinal11.
Estudos mostram variação na quantidade tolerada entre 7 e 15g de lactose por dia11-13. Estudo conduzido por Vesa et al.14 demonstrou que indivíduos com má-digestão de lactose não apresentavam sintomas gastrointestinais induzidos pela ingestão de baixas quantidades de lactose (0,5 a 7,0g/dia).
Dessa forma, para o tratamento nutricional recomenda-se: evitar o consumo de produtos que contenham alta quantidade de lactose ou realizar a ingestão da enzima lactase com os produtos lácteos. Pode-se ainda consumir laticínios nos quais a quantidade de lactose tenha sido reduzida pela fermentação, como iogurte ou coalhada, ou excluída por processos industriais, como os alimentos industrializados sem lactose15,16. Caso não haja um adequado planejamento nutricional e/ou substituição do leite e derivados por seus respectivos produtos sem lactose, pode haver redução da ingestão de cálcio, fósforo e vitaminas15.
Na sociedade contemporânea, observa-se um alto consumo de alimentos industrializados17, e estímulo ao consumo de alimentos com informações nutricionais complementares e para fins especiais, como os diet/light/zero18. Com isso, e tendo em vista a tolerância de uma determinada quantidade de lactose pelos indivíduos com intolerância à lactose, a informação sobre a presença e a quantidade de lactose nos rótulos de alimentos industrializados deveria ser obrigatória na legislação brasileira de rotulagem nutricional de alimentos embalados. No entanto, tal legislação não obriga o fornecimento dessas informações19.
De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), os produtos isentos de lactose ou com baixa quantidade de lactose devem ser rotulados conforme a regulamentação específica de alimentos para fins especiais20. Porém, mesmo sendo classificados como tal, a portaria não prevê a possibilidade de se utilizar uma chamada na parte frontal do rótulo, informando de forma clara para o consumidor que o produto é isento de lactose ou que contém baixa quantidade de lactose1, com exceção dos alimentos industrializados a base de soja que, segundo a RDC 91/200021, devem obrigatoriamente declarar as seguintes informações: “Contém lactose”, “Contém proteínas do leite” ou “Contém lactose e proteínas do leite”.
O presente estudo justifica-se pela necessidade de mapeamento da disponibilidade da informação sobre a quantidade de lactose nos alimentos industrializados, uma vez que as pessoas acometidas pela deficiência de lactase apresentam dificuldade em eleger alimentos para o controle dos sintomas e muitas vezes os exclui sem necessidade, o que pode comprometer sua qualidade de vida relacionada à saúde, que se refere ao impacto da intervenção, ou seja, da restrição alimentar na percepção de bem-estar22, e seu estado nutricional. Além disso, a não declaração da quantidade de lactose gera dificuldades para a prática do nutricionista no cálculo de dietas e na orientação nutricional de pacientes intolerantes à lactose. Portanto, o objetivo é avaliar a disponibilidade de informações sobre quantidade de lactose nos rótulos de alimentos industrializados e pelo Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC).
Trata-se de um estudo observacional com caráter transversal e quantitativo, no qual foi executada uma avaliação da disponibilidade da informação para população referente à quantidade de lactose nos alimentos industrializados tradicionais e diet/light/zero, comercializados em um hipermercado na cidade de Uberlândia, Minas Gerais. O hipermercado foi selecionado de forma intencional, pois possui grande oferta de alimentos industrializados e é considerado pela Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS) a segunda maior empresa supermercadista do Brasil23.
A avaliação foi desempenhada em duas etapas, na primeira foi feito um diagnóstico referente à presença da informação sobre a quantidade de lactose nos rótulos dos alimentos industrializados e na segunda realizou-se o contato com as indústrias de alimentos, quando esse era gratuito, por meio telefônico, e-mail ou site da empresa, para solicitação da informação sobre a quantidade de lactose nos seus produtos, esclarecendo que esta informação seria utilizada para uma pesquisa científica.
A coleta de dados foi realizada no ano de 2015, com autorização por escrito da gerência do hipermercado. Foram incluídos alimentos industrializados que contivessem leite e/ou lactose em diferentes posições na lista de ingredientes, de marcas e sabores diferentes. Foram excluídos os alimentos com as características citadas acima, com mesma composição, porém com tamanhos de embalagens diferentes. Vale ressaltar que o posicionamento na lista de ingredientes indica, em ordem decrescente, a quantidade do ingrediente no produto final do alimento industrializado, ou seja, as primeiras posições são ocupadas pelos ingredientes em maior quantidade24.
A coleta das informações do presente estudo foi realizada por meio de um instrumento pré-testado pelos pesquisadores, com uma amostra de 20 alimentos para definição dos seguintes itens: nome técnico; nome fantasia; marca; telefone ou e-mail do serviço de atendimento ao consumidor (SAC); posição da lactose e/ou leite na lista de ingredientes; porção em gramas e composição nutricional.
Os alimentos foram divididos em dois grupos: tradicionais e diet/light/zero. Nesse último, foram incluídos apenas alimentos diet, para dietas com restrição de nutrientes ou para ingestão controlada de nutrientes (considerados alimentos para fins especiais)20 ou com informação nutricional complementar (light, que é aquele com redução de algum nutriente em comparação ao tradicional e zero, o qual não contém determinado nutriente)25. Cada grupo foi subdividido em 17 e 11 categorias, respectivamente, de acordo com o Sistema Brasileiro de Categorização de Alimentos26.
Posteriormente à coleta e digitação dos dados, foi feita uma revisão das informações digitadas por outros dois pesquisadores e executou-se análise estatística descritiva do número e da porcentagem dos resultados obtidos. A comparação dos percentuais de declaração da quantidade de lactose entre alimentos tradicionais e diet/light/zero foi realizada pelo teste qui-quadrado, com nível de significância de 5%. Utilizou-se para a análise estatística o software GraphPad Instat versão 3.05.
A amostra total de alimentos industrializados foi de 1209, dos quais 1092 (90,3%) representavam os alimentos tradicionais e 117 (9,7%) correspondiam aos alimentos diet/light/zero. Os alimentos devidamente categorizados e incluídos na análise estão descritos no Quadro 1.
Quadro 1 Descrição dos alimentos por categoria alimentar.
Categorias Alimentares | Alimentos incluídos |
---|---|
Leite | Leite de vaca UHT (integral, desnatado, semidesnatado); leite de vaca em pó (integral, desnatado, semidesnatado); leite de cabra (integral, desnatado, semidesnatado); e leite de vaca pasteurizado integral. |
Óleos e gorduras | Margarinas; e alimentos a base de manteiga e margarina. |
Gelados comestíveis | Sorvetes e pós para preparo de sorvetes. |
Balas, confeitos, bombons, chocolates e similares | Confeitos (amêndoas, farofas de castanha de caju, pastilhas, palitos, dentre outros); bombons (com chocolate ao leite, recheado de coco, chocolate com amendoim, e outros); cremes de avelã (avelã com cacau, chocolate e avelã com wafer); leites condensados; coberturas; torrones; chocolates (branco, meio amargo, aerado ao leite, ao leite, dentre outros); e balas (caramelo de leite com cappuccino, caramelo de leite recheada com coco dentre outros). |
Cereais e produtos de ou a base de cerais | Barras de cereais; cerais matinais; farinhas lácteas e macarrões. |
Produtos de panificação e biscoitos | Torradas; pães de queijos; biscoitos; pães; bolos; roscas; broa; misturas para o preparo de produtos de panificação; tortas; cookies e bolachas. |
Carnes e produtos cárneos | Embutidos; empanado de peito de frango; lombo espanhol e carne de cordeiro. |
Açúcar e mel | Adoçantes dietéticos. |
Sopas e caldos | Creme de milho verde; misturas para preparo de sopas; polenta e sopa de feijão com macarrão. |
Molhos e condimentos | Molhos (queijo e tomate com ricota) e patês (carne suína, peito de peru e presunto). |
Produtos proteicos e leveduras | Bebidas lácteas; coalhadas; cremes de leites; cremes de queijos; produtos de queijos; queijos; requeijões; iogurtes; fórmulas infantis; compostos lácteos e alimento com proteína isolada de soja e leite. |
Bebidas | Licores; misturas para preparo de cappuccino e pós para o preparo de cappuccino ou bebida instantânea a base de leite e café. |
Petiscos | Salgadinhos e snacks. |
Sobremesas e pós para sobremesas | Doces e misturas para o preparo de sobremesas tais como: flans, pudins, mousses, dentre outras. |
Preparações culinárias industriais | Lasanhas; escondidinhos; arroz; bolinhos; coxinhas de frango; folhados; purês; sanduíches; papinha; pizzas; panquecas; tortas salgadas; strogonoffs; empadas; dentre outras. |
Suplementos nutricionais | Alimentos para suplementação; barras de proteínas; complemento nutricional e pós para o preparo de bebidas para dieta de redução de peso e pós para o preparo de bebidas enriquecidas. |
Preparados para adicionar ao leite | Alimento achocolatado em pó e pós para o preparo de bebidas, por exemplo, milk-shakes, dentre outros. |
O percentual total de declaração da quantidade de lactose na tabela nutricional dos rótulos dos alimentos industrializados foi de 3,1%. A declaração foi mais frequente (p < 0,0001) no grupo de alimentos diet/light/zero (30,0%) que no de tradicionais (0,2%) (Tabela 1). Dentre os produtos que apresentavam a declaração da quantidade da lactose (n = 38), 36 (95,0%) eram diet/light/zero, os quais 30,6% declaravam que a quantidade de lactose era igual a zero, e os 2 (5,0%) restantes eram alimentos tradicionais.
Tabela 1 Percentual dos alimentos industrializados que contêm a declaração da quantidade de lactose na tabela nutricional dos rótulos de alimentos tradicionais e diet/light/zero.
Grupo de Alimentos | Total de alimentos avaliados | Alimentos tradicionais | Alimentos diet/light/zero | ||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
Total avaliado § | Total declarado n (%) £ | Total avaliado § | Total declarado n (%) £ | ||
Leite | 56 | 50 | 0 (0,0%) | 6 | 3 (50,0%)* |
Óleos e gorduras | 12 | 10 | 0 (0,0%) | 2 | 0 (0,0%) |
Gelados comestíveis | 74 | 72 | 0 (0,0%) | 2 | 0 (0,0%) |
Balas, confeitos, bombons, chocolates e similares | 123 | 114 | 0 (0,0%) | 9 | 5 (56,0%)* |
Cereais e produtos de ou a base de cereais | 49 | 41 | 0 (0,0%) | 8 | 0 (0,0%) |
Produtos de panificação e biscoitos | 165 | 160 | 0 (0,0%) | 5 | 0 (0,0%) |
Carnes e produtos cárneos | 12 | 12 | 0 (0,0%) | 0 | 0 (0,0%) |
Açúcar e mel | 8 | 8 | 0 (0,0%) | 0 | 0 (0,0%) |
Sopas e caldos | 8 | 8 | 0 (0,0%) | 0 | 0 (0,0%) |
Molhos e condimentos | 10 | 10 | 0 (0,0%) | 0 | 0 (0,0%) |
Produtos proteicos e leveduras | 461 | 396 | 2 (0,5%) | 65 | 18 (28,0%)* |
Bebidas | 23 | 19 | 0 (0,0%) | 4 | 2 (50,0%)** |
Petiscos (snacks) | 13 | 13 | 0 (0,0%) | 0 | 0 (0,0%) |
Sobremesas e pós para sobremesas | 74 | 65 | 0 (0,0%) | 9 | 8 (89,0%)* |
Preparações culinárias industriais | 82 | 82 | 0 (0,0%) | 0 | 0 (0,0%) |
Suplementos nutricionais | 14 | 8 | 0 (0,0%) | 6 | 0 (0,0%) |
Preparados para adicionar ao leite | 25 | 24 | 0 (0,0%) | 1 | 0 (0,0%) |
Total | 1209 | 1092 | 2 (0,2%) | 117 | 36 (30,0%)* |
* Valor de p < 0,0001; ** Valor de p<0,05; § Total avaliado: número total de alimentos industrializados tradicionais e diet/light/zero avaliados nesse estudo; £ Total declarado: número total de alimentos industrializados tradicionais e diet/light/zero que declaravam a quantidade de lactose na tabela nutricional dos rótulos alimentares.
Na Tabela 2 foram descritos os alimentos que continham o leite nas duas primeiras posições da lista de ingredientes, e que provavelmente, são os alimentos com maior quantidade de lactose. Os alimentos industrializados que apresentavam maior frequência de leite/lactose nas últimas posições na lista de ingredientes e aqueles que não possuíam um número importante de alimentos dentro da mesma categoria não foram apresentados.
Tabela 2 Alimentos industrializados que apresentaram leite na primeira e/ou segunda posições.
Alimentos industrializados | Total avaliado | Posição do leite na lista de ingredientes | |
---|---|---|---|
| |||
1ª | 2ª | ||
| |||
n § | n (%) £ | n (%) ǂ | |
Leite de vaca UHT | 44 | 44 (100%) | 0 (0%) |
Leite em pó | 8 | 8 (100%) | 0 (0%) |
Leite condensado | 5 | 5 (100%) | 0 (0%) |
Coalhadas | 5 | 5 (100%) | 0 (0%) |
Iogurtes | 121 | 120 (99%) | 1 (1%) |
Leite fermentado | 43 | 42 (98%) | 0 (0%) |
Produtos de queijos | 17 | 15 (95%) | 1 (6%) |
Queijo | 131 | 125 (95%) | 0 (0%) |
Sobremesas | 62 | 56 (90%) | 4 (6%) |
Bebidas lácteas | 70 | 57 (81%) | 12 (17%) |
Compostos lácteos | 5 | 4 (80%) | 1 (20%) |
Requeijão | 38 | 22 (58%) | 15 (39%) |
Mistura para o preparo de bebidas a base de café e leite | 16 | 8 (50%) | 7 (44%) |
Pós para o preparo de bebidas enriquecidas | 22 | 11 (50%) | 1 (5%) |
Molhos | 5 | 2 (40%) | 1 (20%) |
Fórmulas infantis | 15 | 6 (40%) | 2 (13%) |
Pós para o preparo de bebidas a base de café e leite | 4 | 1 (25%) | 3 (75%) |
Chocolates | 77 | 6 (8%) | 24 (31%) |
§ Número total de alimentos avaliados; £ Número total e porcentagem de alimentos com leite na primeira posição em relação ao total de alimentos avaliados; ǂ Número total e porcentagem de alimentos com leite na segunda posição em relação ao total de alimentos avaliados.
Dentre os alimentos que apresentaram a lactose como ingrediente principal na sua formulação, destacam-se as fórmulas infantis, nas quais 50% continham a lactose na primeira posição (n = 8) e 19% na segunda posição (n = 3).
Das 257 indústrias de alimentos responsáveis pela produção dos alimentos avaliados, 156 (60,7%) oferecem acesso ao SAC gratuito e foram contatadas. Dentre elas, apenas 14 (9,0%) informaram a quantidade de lactose contida nos alimentos solicitados. Noventa e três empresas (59,6%) responderam a solicitação, no entanto não informaram as quantidades. Dentre estas, 61 (65,6%) responderam que tais informações são segredos de formulação e, de acordo com a política interna, não podem ser fornecidas, e 32 (34,4%) comunicaram que não poderiam disponibilizar essas informações, pois não fazem a análise dos açúcares separadamente por não ser obrigatória à declaração no rótulo do alimento. E 49 empresas (31,4%) não responderam o solicitado.
A principal contribuição do estudo foi demonstrar a baixa disponibilidade de informações sobre a quantidade de lactose em alimentos industrializados, seja nos rótulos ou pelo Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC). Apenas 3,0% dos alimentos industrializados analisados apresentam declaração da quantidade de lactose na tabela nutricional de seu rótulo e somente 9,0% das indústrias contatadas disponibilizaram tais informações. Os alimentos tradicionais apresentaram menor percentual de alegação da quantidade de lactose nas tabelas nutricionais quando comparados aos alimentos diet/light/zero.
Vale destacar que grande parte dos alimentos diet/light/zero que informavam a quantidade de lactose eram alimentos com ingestão controlada de açúcar, com isenção ou restrição de lactose. Esses dados encontrados certamente retratam a conformidade por parte das indústrias às legislações específicas, tais como Portaria 29/199820 e RDC 54/201225 que dispõem, respectivamente, sobre os alimentos com ingestão controlada de açúcares e aqueles com informação nutricional complementar em relação aos açúcares, que, por sua vez, obrigam a declaração da quantidade de açúcares na tabela de informação nutricional quando realizada uma Informação Nutricional Complementar. No entanto, nem todos os alimentos diet/light/zero continham a declaração da quantidade de lactose.
A falta de acesso à informação sobre a quantidade de lactose no rótulo dos alimentos industrializados fere o direito básico do consumidor à informação, o que consequentemente, prejudica sua autonomia mediante a orientação nutricional recebida e liberdade de escolha em relação ao alimento a ser consumido16. Por outro lado, dificulta o trabalho do nutricionista no cálculo e orientação de quantidades controladas de lactose para que haja devida tolerância, uma vez que algumas pessoas toleram em torno de 11g (correspondente a 240 ml de leite por dia), enquanto outras com a ingestão de pequenas quantidades (2 a 3g de lactose, que corresponde a um tablete pequeno de chocolate) apresentam sintomas decorrentes da intolerância12. O aparecimento de sintomas depende da quantidade de lactose ingerida, do tipo de alimento em que a lactose foi consumida e do grau de deficiência de lactase27.
O desconhecimento da quantidade de lactose nos alimentos pode implicar no aparecimento de sintomas no indivíduo, além de ser fonte de angústia para a família (principalmente para mães das crianças com essa condição clínica)28. Por isso, esse tema supera a ação do núcleo da prática profissional do nutricionista, e envolve um campo maior de abrangência, em que os profissionais da equipe de saúde terão que lidar com o cuidado físico e emocional do indivíduo e da família, e promover educação em saúde, agindo de maneira complementar29.
Outras doenças que também apresentam como parte fundamental do tratamento a exclusão total de algum nutriente para evitar o aparecimento de sintomas e de consequências mais graves à saúde, como a fenilcetonúria e a doença celíaca, já apresentam regulamentações específicas para a declaração da presença no rótulo, que nesses casos específicos, são para fenilalanina e glúten, respectivamente30-34. No entanto, ainda há falhas na legislação para regulamentação da rotulagem nutricional para a declaração de nutrientes importantes para o tratamento dietoterápico de algumas doenças, como é o caso da galactosemia e intolerância a frutose, erros inatos do metabolismo que implicam na necessidade de restrição do substrato (galactose e frutose, respectivamente) para controle da doença35.
Para a lactose, recentemente foi aprovada a Lei nº13.305, de 4 de julho de 2016, que delibera que deve haver a declaração da presença de lactose nos rótulos de alimentos com lactose e deve ser informado o teor de lactose remanescente nos alimentos cujo teor original de lactose tenha sido alterado36. No entanto, não obriga a declaração da quantidade de lactose nos alimentos que não tenham sofrido nenhuma alteração, informação fundamental para os pacientes com intolerância à lactose, uma vez que a lactose não necessariamente precisa ser excluída totalmente, mas restringida de acordo com a tolerância.
Atualmente também foi aprovada a RDC 26/201537 que estabelece os requisitos para rotulagem obrigatória dos principais alimentos que causam alergias alimentares, dentre eles, o leite, que também auxiliará os indivíduos com intolerância à lactose na escolha dos alimentos, mas ainda assim não disponibilizará a quantidade de lactose para o ajuste adequado à tolerância individual. Vale ressaltar que a alergia a proteína do leite e a intolerância a lactose são situações clínicas diferentes. Na primeira o indivíduo apresenta uma resposta imunológica à presença da proteína do leite (caseínas e proteínas do soro) enquanto na intolerância a lactose há uma má digestão do carboidrato do leite, a lactose16.
Outro fator importante é que mesmo alimentos considerados recomendados e mais tolerados pelos pacientes com intolerância a lactose, como os iogurtes, podem apresentar quantidades variáveis (2,1 a 6,4 g de lactose por 100g de iogurte) dependendo da forma de apresentação (líquidos, aromatizados ou com pedaços)38, o que pode ocasionar sintomas naqueles que os consumirem. Vale destacar que os iogurtes são recomendados por apresentarem, teoricamente, baixa concentração de lactose, decorrente de sua hidrólise no processo de fermentação pela participação dos microrganismos, o que reduz a quantidade de lactose no produto final39.
No processamento industrial de alguns alimentos pode ocorrer a adição do leite e/ou lactose, devido sua influência na viscosidade, textura e ao papel desempenhado pelas proteínas que contribuem para a maciez, diminuição da umidade e aumento da vida de prateleira dos alimentos40,41.
Além disso, a lactose apresenta um baixo poder adoçante quando comparado à sacarose. Porém, sua hidrólise é uma alternativa para aquisição de um xarope mais doce contendo glicose e galactose, o qual representa um processo proveitoso à indústria alimentícia, pois permite a produção de produtos fermentados (iogurte), possibilita sua utilização na formulação de alimentos sem prejudicar o sabor natural de outros componentes e fornece vantagens tecnológicas na medida em que ela reduz os riscos de cristalização nos derivados lácteos e aumenta o poder adoçante42-44. Outra característica útil e promissora para a indústria, especialmente no caso das formulações infantis, é que a lactose tem a capacidade de promover a absorção de cálcio e fósforo44.
Como são amplamente utilizados pela indústria de alimentos devido às propriedades anteriormente citadas, esses alimentos podem ser consumidos por pessoas com intolerância à lactose, sem que tenham o conhecimento da presença e quantidade do leite e/ou lactose, podendo gerar o aparecimento de sintomas, uma vez que atualmente essas informações não são declaradas nos rótulos alimentares. Desse modo, se faz necessário alertar os consumidores, especialmente os intolerantes à lactose, para o consumo desses produtos.
O presente estudo colaborou para preencher uma lacuna na discussão sobre rotulagem de lactose em alimentos industrializados, visto que não foram identificados estudos científicos prévios que verificassem a disponibilidade de informações aos consumidores, principalmente àqueles com intolerância a lactose, sobre a quantidade de lactose nos alimentos.
No entanto, foi considerado que a declaração do leite e/ou lactose na lista de ingredientes implica, necessariamente, na presença de lactose no produto final, o que se configura como uma limitação, visto que o processamento do leite e derivados e a raça do animal influenciam na composição nutricional, e em especial na concentração de lactose45,46.
Há baixa disponibilidade de informações sobre quantidade de lactose em alimentos industrializados. Isso foi demonstrado no presente estudo pelo baixo percentual de alimentos tradicionais e diet/light/zero que informam de maneira direta a quantidade de lactose nos rótulos alimentares e o alto percentual de empresas que não fornecem esses dados quando requeridos.
Diante disso, torna-se indispensável à normatização e fiscalização da rotulagem nutricional de lactose de modo eficaz para a população geral e em particular para os indivíduos com intolerância à lactose. A ausência da informação viola o direito a informação do consumidor e pode comprometer a segurança alimentar e nutricional das pessoas que necessitam do controle da ingestão de lactose, além de prejudicar a autonomia no momento da escolha alimentar e dificultar o aconselhamento nutricional por parte dos profissionais.