versão impressa ISSN 0102-311X
Cad. Saúde Pública vol.30 no.1 Rio de Janeiro jan. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE010114
Os Jogos Olímpicos de Londres-2012 1 e os do Rio de Janeiro-2016 2 inovaram em seus projetos ao abordarem a questão do legado olímpico. Tal legado compensaria os investimentos bilionários na organização desses megaeventos e teria múltiplas dimensões: sustentabilidade, infraestrutura, empregos, turismo, acessibilidade e promoção da saúde. Especificamente, o legado para a saúde seria gerado por investimentos diretos e indiretos, por meio dos determinantes socioeconômicos relacionados 3. O tema tem sido objeto de discussão e críticas, positivas ou negati- vas 1 , 3. A pouco menos de três anos para os Jogos do Rio de Janeiro-2016, apesar de existirem projetos que visem à avaliação do impacto econômico e urbano das Olimpíadas 4, parece-nos oportuno estimular esse debate no âmbito da saúde pública brasileira.
Uma revisão recente focou o legado olímpico para a saúde com base na perspectiva do aumento dos níveis de atividade física e desportiva entre a população dos países-sede 5. O estudo, além de apontar a ausência de evidência sobre o tema, indicou algumas estratégias a serem consideradas se quisermos deixar esse legado para a saúde das futuras gerações. Os estudos incluídos indicaram a importância de se construir um “efeito de festival” (múltiplos eventos associados aos Jogos em formato de festival olímpico nacional), o qual pode influenciar positivamente a participação durante as Olimpíadas. Mediante atividades associadas a eventos lúdicos e de promoção de rede social (em contraposição à promoção de esportes de competição), esses eventos podem provocar um aumento efetivo nos níveis de atividade física da população. Em contrapartida, identificou-se que, se a organização dos Jogos, por razões políticas ou administrativas, gerar uma percepção negativa na população, o efeito é o inverso, ou seja, diminui-se a participação no evento, com efeito negativo para os níveis de atividade física e saúde das pessoas 5. É interessante notar que esse último aspecto foi objeto de preocupação de um editorial publicado pelo jornal Folha de S. Paulo em 2012, assinado por organizações não governamentais envolvidas com o tema do legado olímpico 6.
A temática apresentada nos faz perguntar se esse legado deve ser objeto dos campos da saúde pública e coletiva brasileira, em especial o legado para a saúde. Editoriais dos principais jornais científicos internacionais, entre eles The Lancet 7 e o British Medical Journal 3, abordaram a questão. Há consenso sobre a pertinência e a complexidade do desafio, principalmente em relação a intervenções intersetoriais, implantadas em grandes áreas geográficas, as quais produzem efeitos catalíticos e multiplicadores 7.
Um inequívoco benefício para a saúde dos brasileiros seria o aumento nos níveis de atividade física da população, tanto em nível local, na cidade-sede do evento, quanto em nível regional e nacional. Esse tipo de legado poderia ser avaliado utilizando-se o VIGITEL 8, nosso sistema de vigilância dos fatores de risco e proteção para as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Realizado por inquéritos telefônicos, o sistema poderia gerar séries históricas de dados medidos antes e depois dos Jogos.
Outras variáveis relacionadas ao benefício direto ou indireto à saúde poderiam ser criadas a partir do dossiê da candidatura Rio-2016, que explicita quatro eixos principais para o legado olímpico brasileiro 2: (1) transformação da cidade – inclui a melhora da qualidade do ar por meio do controle mais rigoroso das emissões industriais e do transporte urbano, aprimoramento do transporte público por meio do desenvolvimento do anel de transporte de alta capacidade, melhora na segurança pública, preservação da maior floresta urbana do planeta, entre outros projetos de regeneração da cidade, como a transformação da área portuária; (2) inserção social: habitação, treinamento e emprego – inclui o desenvolvimento de habilidades entre jovens (treinamento de voluntários) e o suporte ao desenvolvimento de produtos locais, ecológica e socialmente sustentáveis; (3) juventude e educação – inclui a expansão do Programa Segundo Tempo, apoiado pela Organização das Nações Unidas (ONU), que incentiva o esporte nas escolas públicas, além de investimentos extras no programa Mais Educação, um programa federal que financia a infraestrutura esportiva também nas escolas públicas; (4) esportes – inclui o apoio financeiro à formação de jovens atletas, o aumento dos investimentos federais em esportes e a ampliação da infraestrutura para a prática esportiva dentro e fora da cidade do Rio de Janeiro, principalmente nas áreas próximas às escolas públicas.
Apesar de não estarem explicitamente citadas no Dossiê Olímpico 2, outras ações, sabidamente custo-efetivas, poderiam ser incentivadas e avaliadas, como a promoção da atividade física no combate às DCNT pelos serviços de atenção primária à saúde, assim como campanhas educativas sobre saúde. Ambas as ações seriam vinculadas às mensagens dos Jogos 9.
As Olimpíadas Rio-2016 podem ser vistas como uma intervenção complexa em saúde, o que torna a avaliação de seu legado uma ação multifacetada 10, embora algumas questões gerais sejam fundamentais 7: o desenvolvimento de estudos de custo-efetividade que meçam desfechos de interesse em saúde pública e coletiva, buscando os efeitos adicionais e atribuídos das ações e intervenções vinculadas ao Dossiê Olímpico. Tais resultados devem ser comparados aos dos modelos de cenários “controle”, ou seja, o que teria acontecido se os Jogos Olímpicos não tivessem sido realizados. Uma pergunta importante é se a mesma ação, como a construção de uma piscina olímpica, por exemplo, seria uma prioridade se não houvesse os Jogos 3 , 11.
Sugere-se, ainda, que se triangulem métodos avaliativos 3, abordando-se, por um lado, a avaliação de programas específicos vinculados ao projeto olímpico e, por outro, estudos observacionais de larga escala, com pouca ou nenhuma manipulação de cada componente, incluindo a monitorização de indicadores em vários níveis (local, regional, nacional), por meio de diversas fontes de dados e métodos de análise. Um cuidado adicional deve ser levado em conta na seleção dos desfechos a serem medidos. Desfechos de escopo biomédico, como morbidade e mortalidade, não são apropriados para os objetivos de curto e médio prazos. Por sua vez, constructos como “capital social” e “orgulho e engajamento comunitário”, apesar de interessantes do ponto de vista da qualidade de vida, apresentam resultados ambíguos cientificamente. É crucial que, por meio de pesquisa avaliativa, as consequências negativas que possam estar relacionadas aos Jogos Olímpicos sejam avaliadas 7.
Em conclusão, há ainda escassez de estudos científicos bem delineados que apoiem a noção de que sediar as Olimpíadas leva a um aumento da participação em atividades físicas e desportivas, aumentando os níveis de saúde da população. Vale lembrar que ausência de evidência não quer dizer necessariamente evidência de ausência de benefícios. É consenso que o verdadeiro legado dos Jogos Olímpicos deve ser avaliado por estudos de alta qualidade metodológica, com base em projetos que sejam desenvolvidos antes, durante e após a realização dos eventos. É fundamental que o Brasil monitorize e avalie o impacto dos Jogos do Rio de Janeiro-2016, gerando evidência científica que dê suporte aos formuladores de política locais e nacionais, como também aos organizadores das futuras Olimpíadas. Assim, parece-nos imprescindível que os campos da saúde pública e coletiva sejam protagonistas nesse processo, em especial na avaliação do impacto dos Jogos Olímpicos para a saúde dos brasileiros.