versão impressa ISSN 0102-311X
Cad. Saúde Pública vol.30 no.2 Rio de Janeiro fev. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE010214
“ Atualmente recorre-se às drogas diante das incertezas da vida, como forma de diminuir a ansiedade, de estar em um mundo conflituoso. (...) O consumo de drogas cresceu numa sociedade em que os valores humanos e afetivos são deixados de lado e as necessidades básicas emocionais são canalizadas para o consumo desenfreado, do prazer a qualquer custo, em que o eu sempre prevalece em detrimento do coletivo ” 1 (p. 52).
O mundo das drogas está em constante transformação. Os usuários experimentam novas drogas em busca de diferentes sensações e experiências e os fabricantes lançam novos produtos, com fórmulas diferenciadas para satisfazer a demanda do mercado e tentar burlar a lei 2 .
É nesse contexto que se enquadram as drogas legais ( legal highs ): fármacos criados ou modificados a partir de alterações na estrutura molecular de substâncias ilegais conhecidas, sem a perda dos efeitos psicotrópicos. O uso recreativo busca os mesmos efeitos das drogas ilícitas, mas esses compostos não são listados como produtos controlados pela legislação vigente, o que dificulta a apreensão dessas substâncias. Os usuários podem comprá-las facilmente pela Internet, sem prescrições médicas ou restrições legais 2 , 3 , 4 .
As legal highs são consideradas alternativas legais às drogas clássicas, porém são escassos os estudos farmacológicos e toxicológicos que demonstrem a sua segurança em humanos, sendo que, a informação de uso, dos riscos e efeitos são geralmente obtidas na Internet em sites informais ou com o próprio vendedor da substância 2 , 5 . Dessa forma, a falta ou a má qualidade das informações pode levar usuários à suposição equivocada da segurança desses produtos 6 .
As legal highs são produzidas por alterações na estrutura molecular de seus precursores e sua classificação tem como base o composto de origem 7 . Podem ser classificadas em catinonas sintéticas, piperazinas, canabinoides sintéticos, derivados da triptamina, da feniletilamina, do pipradrol e da fentanila e plantas contendo alcaloides ou terpenos com efeitos psicotrópicos 8 .
As brechas na fiscalização e controle de drogas propiciaram um novo mercado, focado principalmente em sites de vendas pela Internet de substâncias psicoativas supostamente “legais” e que representam um desafio de saúde pública devido à facilidade de aquisição pelo usuário 4 , 9 .
Outro desafio enfrentado pelas autoridades é a rapidez com que uma nova droga chega ao mercado. O tempo entre o surgimento de uma nova droga e sua chegada ao mercado é de alguns dias ou semanas 8 . Somente nos anos de 2009 e 2010 surgiram 65 novas substâncias no mercado europeu 2 . Essa rápida inserção de novas drogas possibilita o comércio “legal” de substâncias potencialmente nocivas à saúde. Atualmente, na União Europeia, a introdução de substâncias na lista de proibição leva cerca de um ano e existem mais de cem compostos com atividade canabimimética que estão à espera de identificação na Europa 3 , 8 , 10 , 11 .
Segundo o relatório do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, entre 1997 e 2010 mais de 150 novas substâncias psicoativas foram formalmente notificadas por meio do mecanismo de alerta rápido e estão agora sob controle 12 . Em contrapartida, no Brasil, apenas sete substâncias foram identificadas e entraram para a lista de substâncias proibidas nos últimos cinco anos 13 . Entre elas destacam- se: Salvia divinorum , salvinorina A, 1-(1,3-benzodioxol-5-il)-2-(pirrolidin-1-il)-1-pentanona (MDPV), ergina, 4-metilhexan-2-amina (DMAA) e metanfetamina 14 .
Estudos recentes avaliaram os efeitos do uso de legal highs sobre a saúde humana 15 , 16 , 17 , 18 . Nesses trabalhos, evidenciou-se a ação dessas substâncias sobre os sistemas cardiovascular, digestivo, nervoso e endócrino de usuários. Em dois centros de toxicologia clínica nos Estados Unidos foram notificados 18 casos de intoxicação aguda por catinonas sintéticas, detectadas em sangue e urina de pacientes expostos a “sais de banho” 15 . Além disso, foram relatados dois óbitos 10 e um caso de lesão miocárdica após o consumo de uma legal high que continha desoxipipradrol (2-DPMP) 18 .
No Brasil, para que uma substância seja considerada proscrita ou controlada, ela precisa constar em uma das listas da Portaria nº 344/98 e tal decisão é da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) 4 , 13 . A legislação brasileira apresenta as mesmas limitações e inconveniências das legislações de outros países, pois exige que o nome químico da substância conste nos anexos da Portaria. Dessa forma, há disparidade cronológica entre a disponibilidade no mercado e o controle legal dessas drogas. Por exemplo, o único canabinoide sintético proscrito no Brasil é o JWH-018, enquanto que na Europa já foram apreendidas as variações JWH-019, JWH-073 e JWH-250 e cinco variações da série cicloexilfenóis 12 .
Como o número de compostos identificados em outros países é maior, acredita-se que estes compostos futuramente serão introduzidos no mercado brasileiro 4 . Sendo assim, é preciso adequar a legislação à nova realidade das drogas sintéticas.
A adoção de leis mais abrangentes com a introdução de cláusulas genéricas que permitam que classes inteiras de substâncias sejam proscritas ou controladas poderia ser uma ferramenta para limitar a produção, a comercialização e o uso de novas drogas sintéticas. Poder-se-ia também estabelecer uma proibição baseada nos efeitos farmacológicos das moléculas e nas classes de substâncias, incluindo seus sais e isômeros 4 .
Entretanto, a adoção de cláusulas genéricas poderia intensificar o “inchamento” da legislação penal 19 , além de inviabilizar o possível comércio de drogas para fins de pesquisa ou uso terapêutico.
O governo britânico criou um dispositivo para acelerar a inclusão de novas substâncias nas listas de controle chamado misuse of drugs: temporary class drugs . Nele, um novo composto, recomendado pelo Conselho Consultivo sobre o Abuso de Drogas, pode ser temporariamente incluído na lista de substâncias controladas. A agência reguladora tem 12 meses para realizar as análises necessárias a fim de passar a substância da lista de drogas temporariamente proscritas para a lista definitiva 4 . A iniciativa britânica pode ser mais viável à realidade brasileira, pois permitiria que instituições públicas fiscalizadoras enquadrassem de forma temporária as legal highs dentro de um prazo estabelecido. Nesse sentido, estaríamos em consonância com o ordenamento jurídico brasileiro e não geraria insegurança jurídica como a adoção de cláusulas genéricas.
Como forma de dificultar a entrada desses produtos no país, é necessária uma articulação maior entre as instituições responsáveis pela apreensão de compostos e a inserção de substâncias na lista de uso proscrito. Um sistema de notificação virtual poderia viabilizar essa interação entre instituições.
A colaboração internacional e a partilha de conhecimentos e de dados analíticos entre os especialistas de laboratórios forenses e clínicos também são fatores importantes quando considerada a amplitude de mercado atingida pelas legal highs .
O aumento da disponibilidade dessas drogas na Internet exige uma legislação de controle abrangente e rígida, com um Programa Nacional de Acesso a Medicamentos em que seja exigida habilitação para as farmácias que queiram realizar a venda online de medicamentos, com imposição de sanções penais para todos os envolvidos que facilitem a venda de legal highs 9 .
Considerando o risco à saúde dos usuários de legal highs, é necessária uma maior agilidade na proscrição dessas substâncias logo que comercializadas no país, por meio de inserção de cláusulas genéricas na Portaria n° 344/98 , ou a deliberação de Conselhos Consultivos que proíbam a droga temporariamente até o parecer conclusivo do órgão responsável. Uma articulação entre a ANVISA e as polícias, responsáveis pela apreensão e identificação desses novos compostos, também poderia agilizar e aumentar a eficiência do controle dessas substâncias.