versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.37 no.2 São Paulo abr./jun. 2015
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20150041
Visceral leishmaniasis (VL) is a severe and potentially fatal disease caused by different Leishmania species, Leishmania chagasi prevailing in Brazil. Main symptoms include fever, malaise, anorexia, weight loss and abdominal enlargement with typically occurring hepatosplenomegaly Currently, VL is considered an opportunistic infection in immunocompromised hosts, including solid organ transplanted patients. The present study reports a case of VL associated to pregnancy after renal transplantation.
Keywords: kidney transplantation; leishmaniasis, visceral; pregnancy; therapeutics
A leishmaniose visceral (LV), ou Calazar, é uma doença grave e potencialmente fatal ao homem. Causada por protozoários do gênero Leishmania, predomina no Brasil a L. chagasi. É transmitida pela picada de mosquitos do gênero Lutzomia. No ambiente doméstico, o cão é considerado um importante hospedeiro e fonte de infecção para os vetores.1
A LV ocorre em 21 unidades da federação, com média anual de 3.379 casos, predominando há 20 anos na região Nordeste, que atualmente comparece com 48% dos casos do país.2 No noroeste do Estado de São Paulo, a LV foi reintroduzida em 1999. Em 2006, estava presente em 24 municípios ao longo da rodovia Marechal Rondon.3 A cidade de Marília não registra casos autóctones, mas é contígua àquele eixo viário.
Nas últimas décadas, a LV tem sido considerada infecção oportunista em pacientes imunocomprometidos, incluindo receptores de transplante.4,5 Os nefropatas crônicos e HIV positivos podem apresentar doença silenciosa.6 Portanto, o diagnóstico pode ser desafiador, devido às diferentes apresentações, atrasando o início do tratamento, o que pode explicar a mortalidade de 20% descrita em transplantados renais.7 Os principais sintomas da infecção são febre intermitente, mal-estar, anorexia, perda ponderal, aumento do volume abdominal, associados à hepatoesplenomegalia, pancitopenia, hipergamaglobulinemia e hipoalbuminemia.8 Todavia, a apresentação clínica é variável, havendo descrição de casos diagnosticados por esfregaço de medula óssea em transplantados sem evidências clínicas ou esplenomegalia.9 Embora o Brasil seja o líder em transplantes de órgãos sólidos na América do Sul, poucos casos de LV pós-transplante foram relatados, sendo o primeiro deles descrito em 2007 em um transplante de fígado.10
O objetivo deste estudo foi relatar um caso de LV pós-transplante renal em paciente que desenvolveu gestação durante a evolução da doença.
Paciente de 24 anos, feminina, branca, 41 kg de peso, recebeu transplante renal de doador falecido em julho de 2006, aos 18 anos de idade. Relatava antecedentes de hipertensão arterial sistêmica moderada na adolescência e insuficiência renal crônica estágio V de etiologia indeterminada. Após hemodiálise durante 13 meses, recebeu transplante renal (TX) de doador falecido de oito anos de idade e 30 Kg de peso, vítima de traumatismo crâneo-encefálico, creatinina 0,9 mg/dL, compatibilidade 1A1DR, painel zero de reatividade a linfócitos. A imunossupressão consistiu de indução com metilprednisolona 500 mg e manutenção inicial com prednisona (0,73 mg/Kg/dia), azatioprina (1,8 mg/ Kg/dia) e tacrolimus (0,29 mg/Kg/dia). Evoluiu favoravelmente com creatinina sérica 0,7 mg/dL e normotensão ao 45º dia pós-TX. No 10º mês pós-TX, apresentou diabetes tratado com hipoglicemiante oral, sendo internada por quadro febril associado à esplenomegalia a 8 cm e pancitopenia (Tabela 1).
Tabela 1 Leishmaniose visceral. Evolução laboratorial pós-transplante renal
Meses Pós-Tx | 10 | 34 | 35 | 39 | 41 61 | |
Hemoglobina - g/dL | 8,9 | 9,5 | 12,4 | 8,7 | - | - |
Leucócitos/mm3 | 2100 | 1700 | 5500 | 2100 | - | - |
Linfócitos % | 36 | 22 | 29 | 22 | - | - |
Creatinina mg % | 0,7 | 0,8 | 0,6 | 1,1 | 0,6 | 0,9 |
Proteinúria g/d | - | - | - | - | 0,2 | 3,6 |
Observações | Diagnóstico de Leishmaniose | Pós-Anfotericina | Recaída + Gestação | Puerpério |
Com suspeita de doença linfoproliferativa ou mielotoxicidade, foi suspensa a azatioprina. Biópsia de medula óssea (MO) sem alterações. Permaneceu assintomática por aproximadamente 35 meses, persistindo leucopenia entre 2.900 e 4.500 leucócitos/mm3. Introduzido o micofenolato sódico 180 mg 2x/dia. Em abril de 2010, quadro de diarreia, febre e esplenomegalia a 6-8 cm, leucopenia e elevação de gamaglobulina sérica, com antigenemia citomegalovírus negativa. O exame de urina revelou hemácias 55.000 a 90.000/ml e leucócitos de 15.000 a 21.000/ml, com + a +++ de sangue. À eletroforese, albumina 3,0 g/dl, e gamaglobulina 5,0 g/dl, com IgG 3,92 e IgM 0,71 g/dl. Biópsia de MO: formas amastigotas de Leishmania. Instituída anfotericina B lipossomal (ABL) 4 mg/Kg/dia/5 dias, retirado micofenolato.
Na evolução, gestação de 12 semanas em setembro de 2010, com recaída da LV, esplenomegalia, pancitopenia e mielograma positivo. Reintroduzida ABL 4,8 mg/Kg/dia/7 dias e reforço ao décimo dia. Em dezembro de 2010, desenvolveu doença hipertensiva da gestação, piora da função renal e óbito fetal. No puerpério, normalizou a função renal e surgiu proteinúria nefrótica. Biópsia renal: nefropatia crônica do enxerto, fibrose intersticial e atrofia tubular, glomeruloesclerose segmentar e focal secundária 5/20 e esclerose global 3/20 glomérulos. A exacerbação do diabetes e nefrose requereu insulinoterapia e inibidor da enzima conversora de angiotensina. Em novembro de 2012, mielograma reconfirmou LV, passando a receber terapia quinzenal de ABL.
O transplante de órgãos descortina infecções oportunistas dependentes das características regionais. Em áreas endêmicas, os transplantados com febre e esplenomegalia devem ter LV como hipótese diferencial, que se relaciona diretamente à redução da morbimortalidade. São apontadas como fatores de risco para o desenvolvimento da LV em TX, dentre outros, a fase tardia do enxerto e a citomegalia.11
O tratamento da LV em imunocomprometidos compreende antimoniais pentavalentes e anfotericina B, sendo esta considerada mais efetiva.12 O SUS disponibiliza a ABL pela menor toxicidade aos pacientes com risco de toxicidade à anfotericina B desoxicolato, dentre eles os transplantados renais.13 A paciente foi tratada com ABL, apresentando evidente melhora clínica, porém, sem erradicação do parasita, do mesmo modo relatado para pacientes com HIV, que necessitam manutenção prolongada de ABL.14 É relatada a transmissão transplacentária do parasita, não documentada no presente caso, para a qual se considera segura a utilização de ABL.15 Há uma revisão recente das diferentes opções de tratamento da LV disponíveis.16