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Leite e modernidade: ideologia e políticas de alimentação na era Vargas

Leite e modernidade: ideologia e políticas de alimentação na era Vargas

Autores:

Sören Brinkmann

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.21 no.1 Rio de Janeiro jan./mar. 2014 Epub 01-Jan-2014

http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702014005000004

ABSTRACT

In the 1930s the new science of nutrition was disseminated in Brazil, which also introduced the conviction that cow’s milk was the most important of staple foods. Despite the campaign promoted by the Ministério de Educação e Saúde Pública (Ministry of Education and Public Health) in the mid-1930s, the consumption of milk in Rio de Janeiro remained far short of the recommendations of experts due to the poor quality of the product and its high price. This paper analyzes the efforts of the Estado Novo to improve the milk supply system of the Brazilian capital as well as to mitigate the causes and effects of its ultimate failure.

Key words: nutrition policy; Estado Novo; milk supply; Ministério de Educação e Saúde Pública; Rio de Janeiro

A partir de novembro de 1931 um pequeno desenho mostrando uma garrafa de leite com uma figura esportista e o lema ‘Beba mais leite!’ tornou-se presença frequente nas páginas dos maiores jornais do país, enquanto toda uma série de slogansimpressos em negrito tratava de convencer o leitor, durante quatro anos seguidos, do alto valor do leite como alimento básico: “O leite encerra a vitamina”, “O leite faz de um fraco um forte”, “O leite dá bom humor”, “Leite: bebei e multiplicai-vos” ( Jornal do Brasil, 3 fev. 1933, 10 fev. 1933, 12 fev. 1933). Algum tempo depois do início dessa campanha publicitária, mais precisamente em 5 de novembro de 1935, Pedro Ernesto, o popular prefeito do Rio de Janeiro, inaugurou no Pavilhão dos Ministérios a Primeira Semana do Leite, que convidava o público da capital a presenciar uma grande exposição de imagens e cartazes informativos, filmes documentários, palestras de especialistas – transmitidas também pela Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, emissora educativa, dirigida pelo antropólogo Edgar Roquette-Pinto –, que incluía distribui-ção de leite, organizada pelo ramo brasileiro da companhia anglo-suíça Nestlé ( Boletim do Leite, 1935). Apesar do que se possa pensar com a participação da Nestlé, o responsável pela campanha do leite não foi unicamente a indús-tria de lacticínios. A Inspetoria de Propaganda e Educação Sanitária (Ipes), do recém-criado Ministério da Educação e Saúde Pública, foi de fato o financiador majoritário dos anúncios nos jornais do país, e a Semana do Leite contou com o auxílio de autoridades estatais e a participação da Sociedade Nacional de Agricultura.

A forte implicação do Estado na propaganda comercial do leite ao longo dos anos 1930 devia-se antes de tudo à grande consideração que a nova ciência da nutrição dedicava a esse alimento. Já em 1918 o bioquímico norte-americano e pioneiro da vitaminologia Elmer Verner McCollum havia declarado o leite de vaca o mais importante dos ‘alimentos protetores’ que não devia faltar na nutrição cotidiana nem da criança nem do adulto. Porque, devido a seu extraordinário conteúdo de sais minerais, vitaminas e proteínas de alto valor, ele justificava, não existia alimento melhor do que o leite para corrigir as deficiências nutritivas da alimentação habitual, tanto nos EUA quanto na maioria dos países do mundo ocidental. Na opinião do bioquímico estadunidense, o leite de vaca representava a máxima garantia de saúde para a população em período no qual a maioria dos povos na Europa e em outras partes do mundo experimentava privações e má nutrição em decorrência da Primeira Guerra Mundial. Além dos conselhos nutricionais, de acordo com McCollum, o consumo de leite revelou-se quase fator “eugênico” na formação de uma nação moderna, posto que os distintos níveis do consumo ao longo dos séculos pareciam explicar, segundo o autor, não só o progresso civilizador do mundo ocidental, especialmente dos EUA, mas também o suposto atraso material e cultural de “chineses, japoneses e dos povos dos trópicos em geral” ( McCollum, 1919, p.150 e s.; Valenze, 2011, p.238-252).

Figura 1 : Campanha do leite (O Paiz, 13 mar. 1938) 

A partir dos anos 1920 as novas hipóteses sobre o valor sanitário do leite de vaca conquistaram os círculos médicos e nutricionistas de praticamente todos os países ocidentais, abrindo caminho a uma verdadeira “ideologia do leite” que, por sua vez, daria nova orientação não só às políticas de nutrição, mas também ao fomento da agropecuária. Em muitos países do norte, o aumento do consumo de leite tornou-se quase prioridade das políticas sanitárias. Como consequência, podia-se observar, amiúde, estreita colaboração entre as autoridades estatais e a indústria do leite com relação à propaganda e comercialização do precioso líquido. O papel do pioneiro foi ocupado, sem dúvida, pelos EUA, onde já em 1915 fundou-se o National Dairy Council, agência de pesquisa e propaganda mantida pela indústria leiteira, que na década de 1920, em ampla cooperação com as autoridades sanitárias e agrícolas, inundou o país inteiro com campanhas publicitárias para fomentar o consumo de leite ( DuPuis, 2002, p.107 e s.). Em muitos países do oeste da Europa o modelo estadunidense serviu como exemplo a seguir, levando a medidas de fomento e propaganda muito semelhantes. Dessa maneira, em 1920, sob proteção do governo britânico, representantes das profissões sanitárias e da indústria de laticínios reuniram-se para organizar o National Milk Publicity Council, enquanto a fundação do Conselho Imperial do Leite (Reichsmilchausschuss) em 1926 baseou-se exclusivamente em iniciativa do Ministério Imperial de Alimentação e Agricultura alemão ( French, Phillips, 2000, p.171 e s.; Orland, 2004, p.909 e s.).

Transformar o leite em alimento básico para a maioria da população, contudo, não dependia apenas do auxílio propagandístico da ciência e da política, mas também do nível de desenvolvimento da indústria leiteira. Depois dos retrocessos decorrentes da Primeira Guerra Mundial, em muitos países do norte esse ramo da pecuária e das indústrias alimentícias entrou numa fase de acelerada concentração e racionalização que permitiu o sucessivo barateamento do produto, enquanto novas estratégias de comercialização, como, por exemplo, a instalação dos chamados milk barsou a distribuição massiva nas escolas, abriram caminho para o consumo em massa. Desse modo, em meados dos anos 1930 vários países do norte alcançaram quota de consumo diário per capitavariável de meio a um litro de leite, o que indicava a entronização definitiva do leite de vaca como novo alimento básico ( Valenze, 2011, p.263-270).

No Brasil, entretanto, a situação distava muito desse ideal. Não seria exagero afirmar que a propaganda do leite no começo dos anos 1930 antes de mais nada ocultava o fato de que a maioria das grandes cidades do país, a capital da nação incluída, não dispunha de oferta comercial de leite fresco apropriada para cumprir a exigência dos nutricionistas de aumentar o consumo diário. Partindo do caso do Rio de Janeiro, o presente trabalho reconstrói as intervenções do governo brasileiro até o final do Estado Novo com o fim de melhorar o sistema de fornecimento de leite, revelando uma feição da política de abastecimento da era Vargas que ainda não foi estudada a fundo pela literatura clássica sobre o assunto ( Linhares, Silva, 1979, p.96-117; Campos, 2006, p.8-14). Os resultados da pesquisa permitem corroborar a interpretação da ditadura como momento culminante das novas políticas alimentares, dado que foi nesse momento que o Estado empreendeu o mais ambicioso intento de oferecer solução definitiva à chamada questão do leite na capital da República. Ao mesmo tempo, foi precisamente nesse âmbito que se salientaram as dificuldades no projeto de transferir modelos alimentares dos países do norte para uma nação que não dispunha de “tradição do leite”, fosse no aspecto culinário ou agropecuário. A solução do “problema do leite” na capital brasileira, portanto, não exigia apenas a transformação dos hábitos alimentares da população, mas também radical reorganização do sistema de abastecimento, tarefa que – ao menos sob as condições da Segunda Guerra Mundial – excedia de longe a capacidade de intervenção do Estado brasileiro.

Consumo de leite como ‘eugenia da nutrição’

No Brasil foi especialmente a partir dos anos 1930 que a nova ciência da nutrição, a chamada newer knowledge of nutrition, divulgou-se nos círculos médicos, alcançando rápida aceitação pelo alto valor explicativo que oferecia para os “males” do país. Nesse sentido, o diagnóstico da subnutrição – confirmado por uma série de inquéritos alimentares realizados nas maiores cidades brasileiras – tornou-se verdadeiro paradigma para a explicação médico-social das supostas deficiências do povo brasileiro. Além disso, contribuiu igualmente o fato de que, no ambiente nacionalista dos anos 1930, as novas doutrinas aportaram um argumento científico para libertar o povo brasileiro dos tradicionais estigmas com respeito a sua suposta inferioridade racial e sua incapacidade para adaptar-se à civilização moderna do mundo ocidental ( Skidmore, 1974, p.53-69).

O pioneiro da ciência da nutrição no Brasil foi, sem dúvida, o médico pernambucano Josué de Castro que, já no final dos anos 1920, realizou estudos no Instituto Municipal de Nutrición de Buenos Aires, a única instituição especializada na região sul da América, dirigida pelo famoso nutricionista argentino Pedro Escudero ( Vasconcelos, 2001, p.323 e s.; 2002, p.128). No regresso, Castro organizou, em 1932, em Recife, sua cidade natal, o primeiro inquérito alimentar, cujos resultados chamaram a atenção do país inteiro e destacaram a questão da alimentação na agenda sanitária nacional. Com base em quinhentas famílias de três bairros proletários, o estudo revelou padrão alimentar bastante baixo e pobre, consistindo, antes de mais nada, da tradicional tríade charque, mandioca e feijão, que em praticamente todos os casos era insuficiente para satisfazer as necessidades calóricas individuais, sem considerar o fornecimento necessário de vitaminas, proteínas e minerais ( Castro, 1936, p.102-104). Inquéritos posteriores, levados a cabo pelas autoridades sanitárias em São Paulo e no Rio de Janeiro, mostraram também grandes diferenças regionais, posto que nessas cidades ao menos do ponto de vista energético as dietas dos trabalhadores supriam as necessidades básicas. Ainda assim, nelas também se confirmaram deficitpreocupante, sobretudo com respeito aos micronutrientes, e, por consequência, crônica malnutrição nas massas urbanas que se tornou explicação universal para praticamente todos os chamados defeitos do povo brasileiro. Numa síntese dos distintos aportes científicos à questão alimentar no Brasil, publicada em 1942, o médico João Peregrino Júnior (1942, p.93 e s.)constatou:

Nem seria exagero ou erro explicar pelas deficiências do nosso regime alimentar algumas das peculiaridades mais lastimáveis do povo brasileiro: a indolência do trabalhador rural; a predisposição à tuberculose dos pretos e mulatos; a ausência de gosto pelos estudos abstratos ou pelas questões especulativas; o baixo rendimento escolar das crianças das escolas públicas; a debilidade e desarmonia morfológica da nossa juventude do interior; a tristeza, a apatia e a preguiça das massas rurais e proletárias de quase todo o país. Porque, como toda gente hoje sabe, são numerosas e insidiosas as doenças ligadas à questão da alimentação. Doenças e subdoenças, porque dela dependem também esses estados semimórbidos, fronteiriços da saúde, que encontramos a cada passo no nosso caminho: a astenia, a preguiça, o mal-estar, a predisposição para as infecções, a inaptidão para o trabalho, a falta de alegria de viver, o precário desenvolvimento ponderal e estatural das crianças, a diminuição da capacidade reprodutora, o deficitdo rendimento pedagógico dos escolares, etc.

Um terço de século antes esses defeitos haviam sido explicados exclusivamente pelos efeitos “degenerativos” da miscigenação das raças, assim como pela influência do clima tropical, impróprio à fundação de uma civilização moderna ( Borges, 1993, p.239-251). A nova ciência da nutrição, pelo contrário, fornecia, além de explicação alternativa, a promessa de decisiva solução para o problema, mediante radical mudança no padrão alimentar da nação. Nesse sentido, os nutricionistas se conectaram diretamente com o reformismo social do movimento sanitarista que, já no final da segunda década do século XX, se havia oposto ao determinismo racista da época, buscando as causas dos defeitos nacionais em fatores corrigíveis, como as péssimas condições sanitárias e as enfermidades que grassavam na imensa vastidão do território nacional ( Lima, Hochman, 2005, p.150-158). Sob influência da ciência da nutrição, o antigo paradigma do Brasil como “vasto hospital” foi substituído pela nova imagem de nação que sofria de malnutrição e fome, ao passo que, no nível das políticas públicas, a ênfase se deslocou das medidas de saneamento para as de nutrição. Segundo a perspectiva nutricionista, umas das principais causas do mal encontrava-se na falta de recursos para comprar bons alimentos, devido ao baixo nível dos salários. Com relevância quase idêntica, os nutricionistas ressaltaram a ignorância generalizada com respeito às regras da alimentação saudável, assim como a persistência de hábitos alimentares de população constituída majoritariamente de analfabetos que ainda vivia em circunstâncias quase coloniais.

Foi o famoso sociólogo Gilberto Freyre que em sua obra principal, Casa-grande e senzala(1990, p.56), publicada em 1933, atribuiu à peculiar estrutura da sociedade colonial, determinada pela escravidão e pela monocultura do açúcar, a responsabilidade pelos erros da alimentação cotidiana do brasileiro de todas as classes. E pouco depois o nutricionista Josué de Castro diagnosticou na cultura popular toda uma série de verdadeiros tabus alimentares, que se dirigiam, ainda que não intencionalmente, contra um elevado uso dos chamados alimentos protetores. Sobretudo no Nordeste do país, o consumo de frutos tropicais ou de determinadas misturas de frutos foi rejeitado pelas crenças populares. Um dos preconceitos mais persistentes, presente em praticamente todas as partes do país, desde o rio Amazonas até a Campanha, no extremo sul, consistia na convicção de que o consumo simultâneo de leite de vaca e de frutos tropicais era prejudicial à saúde; particularmente o de leite e manga provocaria intoxicações ( Castro, 1945, p.32-34). Contudo, segundo os conselhos da ciência da nutrição, a “valorização eugênica do homem” brasileiro ( Costa, 1949, p.19) precisava não só de melhoramento das condições do abastecimento através de aumentos salariais e redução do custo de vida, mas também de campanhas educativas com o fim de implantar os princípios básicos da “alimentação racional” na consciência da massa popular.

O fato de a ciência da nutrição também ter recebido forte apoio das autoridades estatais devia-se, antes de tudo, ao novo rumo desenvolvimentista dos governos brasileiros após a Revolução de 1930, que, pela primeira vez, colocava o operário industrial na mira da política. Ao contrário da República Velha, que havia ignorado quase totalmente a questão social, o Estado varguista dos anos 1930 e 1940 tentava melhorar o padrão da vida do trabalhador urbano mediante ampla gama de benefícios sociais. As políticas sociais do regime, mais do que beneficência estatal, contudo, obedeciam a clara lógica política que visava integrar socialmente o trabalhador urbano para assim ampliar a base da legitimação social da nova situação política, originada pela violenta tomada do poder pelo presidente Vargas. Além disso, estaria ainda muito presente o fato de que, na história urbana do Brasil, a questão do abastecimento havia servido frequentemente como relevante fator de agitações sociais, como foi o caso, por exemplo, na primeira greve geral, em 1917. E desde os anos 1930 o governo brasileiro também tinha que enfrentar novos movimentos de massas como os comunistas e o partido integralista, que em meados da década conseguiu reunir aderência de mais de um milhão de seguidores ( Trindade, 1974).

Os conceitos da ciência da nutrição harmonizavam-se plenamente com os novos objetivos econômicos do governo revolucionário; afinal, o sucesso do esforço industrializador, impul-sionado pelo Estado varguista desde o começo dos anos 1930, dependia certamente também de trabalhadores saudáveis e bem nutridos, dispostos a subordinar-se ao ritmo da fábrica moderna ( Crocitti, 2006, p.146s.). Dessa maneira, a racionalização dos hábitos alimentares dos brasileiros, defendida por médicos e intelectuais da época e que prometia sacar a grande massa da população da letargia e improdutividade, tornou-se praticamente precondição do projeto de modernização nacionalista do governo Vargas ( Bezerra, 2012, p.157-179).

Caro e de mau gosto: o leite do Rio

Com respeito ao consumo de leite na capital brasileira, entretanto, o sucesso da mencionada campanha publicitária foi bem limitado. Segundo informações de Otto Frensel (ago.-out. 1939, p.21), redator do Boletim do Leite, o periódico da Associação dos Importadores do Leite para o Distrito Federal, ao final de quatro anos de propaganda o consumo diário na cidade passara de cerca de 113 mil para 183 mil litros, correspondendo a aumento de mais de 60%. Não obstante, calculado em quantidades per capita, isso significava que, em 1935, o consumo havia alcançado não mais do que 130ml diários o que, evidentemente, ficava muito aquém dos níveis dos chamados países civilizados e das recomendações da ciência da nutrição. A Comissão Técnica de Nutrição da Organização de Higiene da Sociedade das Nações, que durante a década de 1930 encabeçava a padronização internacional do que deveria ser uma alimentação ‘racional’ e saudável, exigia o consumo mínimo diário de 500ml por adulto e de 1000ml por criança até 14 anos ( Weindling, 1995, p.328; Barros, 1937, p.255).

Uma das causas do baixo consumo de leite no Rio de Janeiro e em muitas outras cidades bra-sileiras residia sem dúvida nos hábitos alimentares da população, que não estava acostumada a consumir leite fresco em grandes quantidades, salvo no obrigatório “café com leite” pela manhã. Mais importante como empecilho para um rápido aumento do consumo foi, no entanto, o elevado preço do leite comercial oferecido, assim como a péssima qualidade de sua maior parte.

Na metade dos anos 1930, o leite consumido na capital federal provinha de duas fontes distintas: cerca de 15% da oferta era leite cru, produzido nos estábulos da cidade sob precárias condições higiênicas, o que há anos vinha provocando violentos protestos por parte de médicos e pediatras, que consideravam o “leite do vaqueiro” um perigo para a saúde pública e reclamavam o imediato fechamento desses estabelecimentos. O restante da oferta comercial compunha-se de leite pasteurizado vindo, por vias férreas, de distintas zonas pecuárias no interior dos estados vizinhos de Minas Gerais e Rio de Janeiro, a maior parte de qualidade deficiente ( Doria, 1934, p.248 e s.).

O melhor fornecedor de leite pasteurizado da capital nesse momento foi a empresa Normandia, que dispunha das mais modernas instalações para a manipulação do produto e era proprietária de fazendas leiteiras no estado do Rio de Janeiro, o que lhe permitia controle sistemático da produção da “matéria-prima”. Além disso, a Normandia também possuía uma série de lojas em que vendia seus produtos. No final da década fundou-se outra empresa, a Joia, que, graças à organização da cadeia de produção, conseguiu elevar o padrão de qualidade de seu leite: trazia à capital o leite cru com o objetivo de só realizar a pasteurização imediatamente antes da venda e assim ampliar para o consumidor o efeito higiênico desse processo, fazendo de seu produto o “melhor leite” da cidade. A qualidade, porém, tinha seu preço, justificando o fato de os produtos dessas leiterias só serem acessíveis a público abastado e de sua oferta cobrir apenas a décima parte do mercado do leite na capital brasileira ( Comissão..., 1942, p.7).

A grande massa dos consumidores da cidade dependia da restante oferta de leite, realizada por um sem-número de pequenos comerciantes que em sua maioria só possuíam uma usina de pasteurização, situada nas imediações de uma das linhas ferroviárias que atravessavam os estados vizinhos e cujo negócio consistia principalmente em comprar o leite produzido pelos fazendeiros dos arredores, pasteurizá-lo e despachá-lo para a capital. Em meados dos anos 1930 contava-se com 66 usinas de pasteurização que forneciam leite para a capital, e praticamente todas trabalhavam com a técnica ultrapassada da pasteurização sob alta temperatura – superior a 80°C –, o que atestava ao leite o típico gosto de fervido. Mais prejudiciais à qualidade do produto, contudo, foram as precárias condições do transporte devidas à contínua recusa das companhias ferroviárias de organizar trens especiais com vagões frigoríficos e horários noturnos para agilizar as vias de fornecimento. O método de conservação habitualmente adotado pelas usinas de pasteurização consistia em congelar uma parte do leite para a via-gem ou coroar os vasilhames com blocos de gelo. As grandes distâncias entre as usinas e o mercado consumidor, que em muitos casos ultrapassavam 200km, chegando até 500km, bem como a reduzida velocidade e os frequentes atrasos dos trens, no entanto, inviabilizavam o sucesso desses métodos, insuficientes para garantir a refrigeração do produto ao longo da viagem. Portanto, apesar de pasteurizado, o “leite de Minas” apresentava quase sempre enorme contaminação bacteriana e alto teor de acidez, provocando sua rápida coagulação ( Doria, 1934, p.248).

Reitere-se que, apesar dessas falhas em sua qualidade, o leite não era alimento especialmente barato. No verão de 1934 o tabelamento oficial fixava em 600 réis o preço do litro de leite pasteurizado, enquanto o leite dos estábulos era vendido a 800 réis. Segundo observadores da época, porém, parece pouco provável que os comerciantes respeitassem os preços oficiais, devido às grandes oscilações na oferta de leite, em especial durante o período da seca, quando caía normalmente para menos da metade. Independentemente dos preços reais, um simples cálculo mostra que, para a maioria da população, o leite de vaca era alimento de luxo. Para um trabalhador comum, com salário variável entre quatro mil e cinco mil réis por dia e família de quatro cabeças, que segundo os inquéritos alimentares já gastava mais da metade de seus recursos com alimentação, comprar leite segundo as recomendações dos especialistas significava um desperdício irracional ( Coutinho, Cavalcanti, 1937, p.311).

A partir de 1938 o relativo luxo de consumir leite no Rio de Janeiro beirou a loucura econômica, pois uma alta acelerada em poucos meses levou o preço do litro a um mil réis, e um jornal da capital já augurava a iminência do próximo salto ( O Paiz, 16 mar. 1938). De acordo com a imprensa, o culpado desse rápido aumento foi o trustdos três grandes entrepostos destinados a engarrafar o leite vindo de fora e que, de fato, exerciam grande poder sobre o mercado leiteiro da cidade. Fator mais importante, entretanto, localizou-se nos efeitos da campanha contra a tuberculose bovina no Distrito Federal. Desde o começo do século XX, as autoridades sanitárias vinham suspeitando que grande parte das vacas leiteiras albergadas nos estábulos da cidade estava infectada com a “peste branca”, constituindo, assim, sério risco para a saúde pública, dada a transmissibilidade da infecção ao homem pelo leite cru ( Antunes et al., 2002, p.613-619). Não obstante, até o final dos anos 1920, todas as tentativas de fechar esses estabelecimentos haviam fracassado na justiça brasileira, porque em 1917 o Supremo Tribunal Federal havia concedido mandados de manutenção de posse a seus proprietários, bloqueando não só a remoção dos estábulos, mas também sua inspeção regular pelas autoridades sanitárias ( Correio da Manhã, 21 jun. 1917).

Pouco tempo depois da Revolução de 1930, nova lei federal prometia dar solução definitiva ao problema dos estábulos. Perante a onda de protestos por parte dos vaqueiros, no entanto, sua entrada em vigor foi adiada por mais quatro anos. Em 1937, porém, findo o prazo de adiamento, chegou finalmente a ‘hora da verdade’ para os vaqueiros da capital: sob direção do novo diretor dos serviços de saúde pública, o clínico Clementino Fraga, o pessoal do hospital veterinário municipal iniciou campanha para identificar sistematicamente todas as vacas tuberculosas da cidade, resultando no sacrifício de cerca de 1.100 do total de 2.500 animais no matadouro municipal, assim como no fechamento definitivo de 211 estábulos nas zonas urbana e suburbana da cidade ( O Paiz, 14 jan. 1938). O preço dessa campanha em prol da saúde pública, não obstante, foi nada menos do que a perda de cerca de 35 mil litros diários, o que, pelo visto, não podia ser facilmente substituído por incremento na produção do leite de fora, provocando, assim, séria falta do produto na capital.

Políticas de nutrição no Estado Novo: a “revolução do leite” no Rio

Com a proclamação do Estado Novo, em setembro de 1937, a questão alimentar ganhou ainda mais peso político. Isso se evidenciou, por exemplo, com a criação do Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps) em 1940. Ainda que suas atividades se limitassem principalmente ao Distrito Federal, o Saps chegou a ter visibilidade como instrumento das políticas alimentares do Estado Novo, organizando a distribuição de alimentos a baixo preço e construindo uma série de restaurantes populares em que mais tarde foram servidas até 25 mil refeições por dia ( Crocitti, 2006, p.156-163). Além disso, coincidia também com o período do Estado Novo a entrada em vigor da lei do salário mínimo. Já mencionado na plataforma eleitoral de Getúlio Vargas em 1930, o projeto do salário mínimo foi logo incorporado à Constituição de 1934 para tornar-se lei dois anos depois. Em 1938, foi lançado o regulamento que deu início à instituição das comissões executivas regionais, e, finalmente, em maio de 1940 fixavam-se os primeiros níveis para o salário mínimo em todo o país ( Saboia, 1985, p.10).

Para os nutricionistas a introdução do salário mínimo significava grande avanço porque prometia aumento considerável do poder de compra, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, em que os salários ficavam muito aquém da média nacional. Além disso, era precisamente uma “ração tipo” de alimentos básicos escolhidos segundo os preceitos da ciência da nutrição que daí em diante serviria como base para o cálculo das necessidades elementares em todas as partes do país. Foi nesse contexto que o leite recebeu mais uma vez statusextraordinário ao ser o único alimento na lista de gêneros básicos do regulamento designado como “essencial e imprescindível”, o que, segundo o nutricionista e membro da comissão do regulamento Alexandre Moscoso (1936, p.72), deveria enfatizar “sua inestimável valia”. Do ponto de vista dos nutricionistas, mais importante ainda era o fato de a “ração tipo” exigir de cada trabalhador brasileiro o consumo diário de meio litro de leite, refletindo assim os padrões internacionais para a chamada alimentação racional ( Brasil, 30 abr. 1938).

Independentemente disso, ficava evidente que, para alcançar essas quotas de consumo, faltava a necessária oferta de leite bom e barato não só no Rio, mas praticamente em todas as cidades do país. Visando à solução para o “problema do leite” na capital brasileira, o governo federal decidiu dar um verdadeiro “golpe libertador” no sentido de modernizar o conjunto do sistema de abastecimento. Assim, em julho de 1940, pouco antes da criação do Saps, o presidente Vargas assinou decreto estabelecendo a chamada Comissão Executiva do Leite. Ao novo órgão, constituído por um representante do Ministério da Agricultura e três delegados dos governos do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Distrito Federal, cabia tarefa dupla. Por um lado, cabia-lhe reorganizar tecnicamente o sistema de abastecimento para melhorar assim a qualidade higiênica e o sabor do produto; por outro, estimular a produção de leite nas zonas de abastecimento para satisfazer a crescente demanda e garantir preços acessíveis para a maioria da população ( Comissão, 1942, p.3 e s.).

O problema da produção, contudo, revelou-se extremamente complexo, posto que, antes de tudo, resultava da baixa produtividade na maioria das fazendas leiteiras do interior. Em outras palavras, o leite que vinha de fora não era o produto de fazendas especializadas com rebanho de vacas leiteiras de alto rendimento, mas, em sua quase totalidade, de agricultores de subsistência com vacas de pouca produção, para os quais a venda de leite constituía negócio secundário. Para muitos expertsa chave do problema residia na eliminação do comércio intermediário que praticamente em todas as zonas leiteiras pagava preços miseráveis pelo leite cru, esmagando assim todo incentivo para profissionalizar os métodos de trabalho e elevar a produtividade. Como consequência, a solução que a Comissão do Leite daria ao problema se constituía de dois aspectos, a saber, a nacionalização de todas as empresas de lacticínios que abasteciam a capital e a organização em cooperativas de produção dos aproximadamente dois mil produtores nas zonas leiteiras dos estados de Rio de Janeiro e Minas Gerais. Os objetivos dessas medidas eram, por um lado, transformar os fazendeiros em produtores de leite profissionais, aumentando assim a produtividade, e, por outro, garantir participação “mais justa” dos produtores nos rendimentos do negócio mediante a exclusão do comerciante intermediário. O objetivo final da Comissão seria a transferência da responsabilidade de todo o sistema de abastecimento de leite para as mãos das cooperativas leiteiras, reunidas sob a direção de uma organização de cúpula – a chamada Cooperativa Central – com sede na capital ( Brasil, 10 jul. 1940; Comissão..., 1942, p.8).

A transformação cooperativista do sistema de abastecimento de leite da capital brasileira começou de forma acelerada. Sete meses depois de sua criação, a Comissão do Leite já havia comprado os três grandes entrepostos mais as duas leiterias de qualidade – Normandia e Joia –, e a organização das cooperativas leiteiras também progredira bastante. Sob direção do Serviço de Economia Rural do Ministério da Agricultura percorriam-se as zonas leiteiras nos estados de Rio de Janeiro e Minas Gerais para convencer os produtores das vantagens da organização cooperativa. O segundo relatório da Comissão, do começo de 1943, constatava a fundação de 39 cooperativas, sendo 27 no Rio de Janeiro e 12 em Minas Gerais. Nos dois anos seguintes, o número de cooperativas subiu para 43, simultaneamente, 44 das setenta usinas de pasteurização no interior haviam sido encampadas pelas cooperativas, eliminando grande parte do comércio intermediário ( Comissão..., 1942, p.4-8; 1943, p.44). Inicialmente, também os efeitos econômicos para os produtores pareciam dar razão à propaganda cooperativista do governo. Segundo declarações de Ernani do Amaral Peixoto ( Entrevista..., 1944, p.1), interventor federal do Rio de Janeiro e chefe do Serviço de Abastecimento da Coordenação da Mobilização Econômica – órgão que desde 1943 coordenava o esforço bélico da economia brasileira –, os preços ao produtor haviam quase dobrado.

Para o consumidor urbano, no entanto, o mais importante, além do preço do leite, era sua melhoria qualitativa, o que a Comissão do Leite pretendia alcançar com a construção de novo entreposto central. Projetava-se, para esse fim, colossal e muito moderna usina de pasteurização e engarrafamento, com capacidade diária de até quinhentos mil litros, que deveria, já em futuro próximo, substituir não só os entrepostos de leite na cidade, mas também as velhas usinas de pasteurização nas zonas leiteiras do interior. Além da introdução da pasteurização em baixa temperatura, a comissão visava melhorar a qualidade higiênica pelo tratamento do leite cru no próprio lugar de consumo, quer dizer, imediatamente antes da venda, o que efetivamente prometia teor bacteriano e acidez muito menores. Servia de modelo a essa reorganização a recém-fundada empresa Joia, que, no final dos anos 1930 havia adotado esse método. Como primeiro sucesso da reorganização do sistema de abastecimento a Comissão pôde celebrar o aumento da quota do leite pasteurizado na cidade que, no curso de 1943 subiu de cinco mil para 25 mil litros por dia. Esse avanço se devia à reforma das instalações do entreposto da antiga empresa Normandia que, segundo a Comissão, já funcionava como protótipo para o futuro entreposto central ( Mendes, 1943, p.205 e s.).

Vendia-se esse leite especial, daí em diante, sob a marca C.E.L. – a sigla de Comissão Executiva do Leite –, como produto exclusivo em lojas por ela diretamente administradas, e cujos desenho moderno e aura de limpeza e higiene estabeleceram também novo critério para a comercialização de leite em geral. As antigas leiterias da cidade funcionavam em lojas mal cuidadas em que se vendia todo tipo de alimentos e que, com frequência, nem mesmo dispunham de um simples refrigerador com gelo. As leiterias C.E.L., pelo contrário, eram lojas novas, com pisos e paredes azulejadas, dotadas de geladeiras elétricas, balcões refrigerados e envidraçados, que tinham em oferta não só leite fresco, como também creme de leite, manteiga, queijos, assim como ovos e mel a preços supostamente “acessíveis”. Os balconistas vestiam-se de branco, o que, evidentemente, também se inspirava na estética de laboratório mais do que na do empório habitual. O único defeito resultou do fato de que no começo a Comissão só dispunha de nove lojas C.E.L., a maioria no Centro e nos bairros abastados da zona sul – Catete, Botafogo, Copacabana, Ipanema –, enquanto os bairros operários da zona norte praticamente não eram atendidos ( Novo posto..., 1944). De acordo com suas próprias declarações, porém, a Comissão esforçava-se para ampliar sua rede de filiais, a fim de abastecer todos os bairros da cidade com o leite C.E.L. Assim, no final de 1943, mais trinta lojas da Comissão já se encontravam em construção ( Mendes, 1943, p.214).

Figura 2 : Loja da C.E.L. ( Meireles, 1983, p.63) 

Guerra e crise: a política do leite no impasse

Um grande avanço também se podia relatar com respeito à edificação do novo entreposto central. Para esse propósito a Comissão adquirira terreno de mais de 48.000m 2, na proximidade da estação ferroviária de Triagem, zona norte do Rio de Janeiro, e já em meados de 1942 haviam sido concluídos os trabalhos de alicerce e se iniciara a construção dos diversos edifícios ( Comissão..., 1942, p.4-8). Quando, porém, em junho de 1944, o presidente do país, junto com altos funcionários e uma delegação da imprensa, em ato oficial percorreu o esqueleto concluído do futuro entreposto, todo o projeto da Comissão do Leite se encontrava em sérias dificuldades financeiras. A culpa recaía, evidentemente, no aumento de preços de maquinaria e material de construção, decorrentes da Segunda Guerra Mundial, que tinha elevado drasticamente os custos da obra, invalidando, assim, o planejamento financeiro original. Por conseguinte, no final de 1945, a Comissão do Leite havia acumulado enorme montante de dívidas – razão pela qual os trabalhos nos diferentes projetos de construção haviam sido suspensos há algum tempo ( Rodrigues, 1946, p.30 e s.).

Mais grave, entretanto, foi o fato de que, afinal de contas, também os produtores não se haviam beneficiado com a nova política do leite, pois, apesar de o preço para o leite cru ter sido duplicado, a receita para a maioria dos fazendeiros só melhorou, quando muito, temporariamente. Também aqui a culpa seria da onda de encarecimento provocada pela guerra, que no ramo da economia leiteira aumentara os custos de produção muito acima da média. Segundo a declaração do secretário da Agricultura do estado do Rio de Janeiro, Rubens de Campos Farrulla, praticamente tudo o que os fazendeiros e as novas cooperativas precisavam para seu negócio havia encarecido desde o início dos anos 1940, a saber: forragens, ferramentas, máquinas agrícolas, material de construção, peças de reposição, mão de obra, assim como o combustível para o funcionamento das instalações das usinas e dos caminhões. Além disso, havia aumentado o frete no setor ferroviário, o qual tinha ainda de lutar com os gargalos no transporte devido à falta de locomotivas, material rolante e trilhos ( O problema..., 1944, p.135).

Um verdadeiro fracasso para a Comissão significou o fato de que, em vez do esperado, desde o início de 1943 a produção de leite começou a diminuir. Ainda em 1942 o consumo na capital aumentara 4% em relação ao ano anterior. Todavia, na virada de 1942 para 1943 – ou seja, em meio à época das chuvas, quando a oferta do leite cru normalmente alcançava seu apogeu – o abastecimento de leite do Rio sofreria drástica queda, levando a média anual à redução de 5,5% em relação ao ano anterior ( O consumo..., 1943, p.216; Novo posto..., 1944, p.4). Para estimular a produção, no curso de 1943, as autoridades introduziram uma série de medidas emergenciais, cujo efeito, porém, permaneceu limitado. Em abril, o Ministério da Agricultura, com vistas ao iminente período de seca, decretou que toda a produção brasileira de farelo de trigo e torta de algodão 1 deveria ser vendida apenas como forragem, dada a “urgente necessidade de aumentar a produção de leite” ( O problema..., 1944, p.136). Além disso, a partir de junho, nas zonas de abastecimento do Rio de Janeiro, a Comissão tentaria limitar a utilização do leite cru na produção de manteiga e queijo, a fim de reservar maiores quantidades para o abastecimento da cidade com leite fresco ( Brasil, 18 jun. 1943).

A medida mais polêmica, porém, foi o sucessivo aumento do preço do leite ordenado pela Comissão a partir de maio, o que, evidentemente, contradizia as promessas originais de abastecer a cidade com leite bom e barato. Embora esse passo tivesse sido praticamente inevitável, dado o drástico aumento dos custos de produção, foi “lenha na fogueira” para os críticos da política do leite do Estado Novo. Ainda assim, a medida evidentemente não servia para frear a contínua diminuição da oferta do leite na cidade. Quando, em fevereiro de 1944, o consumo diário da cidade despencou para valor médio abaixo de duzentos mil litros e longas filas se formavam diante das leiterias, finalmente, também pelo lado oficial, não se podia mais deixar de falar em uma crise do leite. Segundo estimativas do veterinário do Ministério da Agricultura José Assis Ribeiro (1945, p.25)faltavam até oitenta mil litros de leite para o abastecimento diário do Rio de Janeiro no começo de 1945, quando a empresa Nestlé lançou campanha publicitária para promover a venda de seu leite em pó Ninho, que argumentava: “Não entre na ‘fila’! Para quem usa NINHO não existe o problema do leite. Nem ‘filas’, nem receio quanto à qualidade, nem imprevistos...”.

Figura 3 : Publicidade do leite em pó Ninho em 1945 (Nestlé, s.d.) 

A causa principal do fracasso da política do leite do Estado Novo, contudo, não residia só na carestia provocada pela Segunda Guerra Mundial, mas principalmente nas deficiências estruturais do sistema de produção. O cooperativismo leiteiro, impulsionado pelo governo federal, constituiu certamente passo importante no longo caminho para a especialização dos fazendeiros nas zonas leiteiras. Em curto prazo, porém, seu valor resultou praticamente nulo, porque as cooperativas, organizadas apressadamente, em sua curta existência quase não poderiam ter corrigido nem os primitivos métodos de exploração leiteira em quase todas as fazendas no interior nem a má aptidão de grande parte do rebanho leiteiro, composto em sua maioria de gado zebu ou de raças misturadas que não alcançavam produção diária de mais de três ou quatro litros. A esse respeito, o especialista do Departamento Nacional de Produção Animal do Ministério da Agricultura Sampaio Fernandes, já em 1944 havia constatado:

É uma irrisão falar e criar ‘cooperativas’ com essa massa humana, de fazendeiros essencialmente circunstanciais, simples aproveitadores dos benefícios que o Governo lhes outorga. Como é possível a exploração leiteira intensiva onde o braço falta e onde centenas de milhares de metros quadrados são percorridos pelo gado dito leiteiro, sem uma ração, ou com a magra ração de compensação dos pastos ressequidos, tangido às carreiras por dois ou três retireiros boçais? E é essa a situação de parte para não dizer da quase totalidade das propriedades pastoris dos Estados citados (citado em Lima Sobrinho, 1946, p.111).

Afinal de contas, o golpe mortal na produção do leite foi o acelerado aumento do preço da carne, provocado pela Segunda Guerra Mundial e que, já no final dos anos 1930, fez crescer a demanda de gado de corte, enquanto as rendas da onerosa produção do leite provavelmente diminuíram em consequência da alta dos custos. Perante o fato de que, na maioria dos casos, o rebanho leiteiro compunha-se de animais de raças mistas e de reduzido valor econômico, para muitos fazendeiros e criadores tornou-se mais atraente levar suas vacas para o matadouro, derrubando, assim, o maior e mais ambicioso esforço estatal para melhorar o abastecimento de leite da capital brasileira ( O problema..., 1944, p.137).

Parece evidente, portanto, que a falha principal do projeto da C.E.L. consistia no atraso do sistema de produção e das condições econômicas da pecuária leiteira no interior dos estados produtores, onde a criação de gado ainda era atividade com pouca tradição profissional. Em outras palavras, faltavam em muitas fazendas não só conhecimentos básicos para orientar os trabalhos, mas também a iniciativa, os meios e a estabilidade jurídica, dado que em muitos casos tratava-se de pobres arrendatários em terras latifundiárias, trabalhando sobretudo para sua própria subsistência. Resulta especialmente evidente essa problemática estrutural em comparação com a de casos vizinhos. Nos países da região do Prata o desenvolvimento superior da pecuária havia levado ao desenvolvimento de indústria do leite relativamente mais rentável. Também nas colônias dos imigrantes europeus no sul do Brasil se haviam desenvolvido empresas de lacticínios e cooperativas leiteiras estáveis, com base nos conhecimentos técnicos e organizacionais trazidos do Velho Mundo ( Azevedo, 1923, p.128-135). Na capital brasileira, a tentativa do Estado de compensar a falta de iniciativa privada se evidencia – no melhor dos casos – em projeto de longo prazo que, entretanto, fracassou inteiramente pela deterioração das condições econômicas sob influência da Segunda Guerra Mundial.

Considerações finais

À guisa de conclusão, resulta necessário afirmar que o intento do Estado Novo de modernizar o sistema de abastecimento de leite para a capital da nação se apresenta como esforço singular. Se é verdade que a transformação cooperativista da indústria leiteira não foi revogada depois da queda da ditadura, também é verdade que os governos posteriores não se mostraram dispostos a ressuscitar os planos originais, provavelmente devido às grandes necessidades financeiras do projeto. Logo depois da renúncia forçada do presidente Vargas, em outubro de 1945, a C.E.L. foi dissolvida, e todos os entrepostos, junto com o esqueleto do futuro entreposto central na estação de Triagem, passaram para a Cooperativa Central. Apesar disso, a conclusão e inauguração do projetado entreposto seriam adiadas até o final dos anos 1950, o que significa que antes desse prazo também não foi possível melhorar substancialmente a qualidade da maior parte do leite comercial ( No Rio..., 1957, p.64). Diante dessas circunstâncias, resulta também evidente que depois da queda do Estado Novo perdeu-se igualmente de vista a finalidade original do projeto de aumentar o consumo de leite fresco na cidade. Em consequência, havia cada vez mais consumidores que – especialmente com respeito ao aleitamento artificial – lançaram mão do leite em pó ou outras conservas de leite. Segundo afirmação do agrônomo uruguaio Juan Minut (1950, p.200), o consumo de leite fresco per capita, até mesmo no começo dos anos 1950, situava-se claramente abaixo da quota de antes da guerra, alcançando apenas 113ml diários.

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