versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.3 no.1 São Paulo jan./mar. 2020 Epub 27-Fev-2020
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20200007
A dor é um sinal que apresenta uma importante função protetora1. Estudos sugerem que o sexo, dentre outros fatores, afeta a resposta de sensibilidade à dor, sendo que as mulheres apresentam maior experiência de dor quando comparadas aos homens, principalmente com respeito aos estímulos térmicos, e a composição corporal, e a massa magra influenciam na sensação de dor2, sendo que áreas com excesso de gordura subcutânea são menos sensíveis à sensação dolorosa3. Há algumas evidências de que o índice de massa corporal (IMC) elevado está associado a maiores limiares de dor4.
O uso do frio é uma modalidade terapêutica que visa reduzir quadros dolorosos e processos inflamatórios, especialmente em lesões agudas e subagudas5. Porém, o uso do frio é uma forma validada e aceita para a avaliação da dor6,7, bem como o limiar de dor à pressão8. O presente estudo teve como objetivo comparar o limiar e a intensidade de dor ao frio e pressão em homens e mulheres jovens, com diferentes percentuais de gordura.
Trata-se de um estudo experimental e quantitativo. A população foi eleita por conveniência e de maneira não probabilística. A amostra foi composta por 72 universitários de ambos os sexos. Foram 30 homens com idade entre 18 e 25 anos (21,26±2,46 anos), massa corporal entre 57,2 e 106kg (77,85±13,46kg), altura de 1,61 a 1,92m (1,77±0,074m) e IMC entre 18,5 e 30,1 (24,67±3,65) e 42 mulheres com idade entre 18 e 25 anos (21,1±1,8 anos), massa corporal entre 43 e 118,500kg (68,30±16,54kg), altura de 1,56 a 1,78m (1,65±0,05 m) e IMC entre 15,90 e 48,60 (24,87±6,34).
Os participantes foram divididos em dois grupos: grupo normal - IMC até 24,9, composto por 36 indivíduos, sendo 15 homens e 21 mulheres, classificados em baixo peso e peso normal e o grupo sobrepeso - IMC ≥25, composto por 36 indivíduos, sendo 15 homens e 21 mulheres que poderiam ser classificados em sobrepeso, pré-obeso, obeso grau I, obeso grau II e obeso grau III, de acordo com a classificação proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Os critérios de inclusão foram ausência de doenças sistêmicas, lesões musculoesqueléticas e cutâneas, crônicas ou agudas nos últimos seis meses e histórico de hipersensibilidade ao frio.
Antes de começar a avaliação foi realizado o teste de sensibilidade ao frio com o cubo de gelo, com temperatura entre 0º e 4ºC, colocado na face interna do antebraço por até 20 minutos. Cinco minutos após a retirada do estímulo foi considerado positivo o aparecimento de uma pápula, sendo excluídos os indivíduos nos quais o teste foi positivo.
Cada avaliador desempenhou sempre a mesma função em todos os momentos da avaliação e todas as medidas foram realizadas em um mesmo dia, no período da manhã. Cada sujeito passou por quatro condições: A, B, C e D.
A condição A consistiu na realização da estimativa do percentual de gordura (%G) pela bioimpedância tetrapolar (BIA), com equipamento Body fat analyser, modelo BF-906 (Maltron), sendo descrita como avaliação 1 (AV1) e foi devidamente registrada. Os dados antropométricos de cada indivíduo, estatura em centímetros e peso em quilos foram aferidos no momento do exame e inseridos na BIA, como também o sexo, a idade e o nível de atividade física realizada. A coleta da BIA foi realizada conforme preconizam a Associação Brasileira de Nutrologia e a Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral. Os indivíduos foram orientados a suspender o uso de fármacos diuréticos no mínimo 24h antes da realização do teste, evitar o consumo de alimentos e bebidas até 4h antes do teste, a prática de exercícios físicos até 8h anteriores e o uso de fármacos que causam retenção hídrica. O exame foi realizado com o indivíduo em repouso, sendo retirados todos os objetos de metal presos ao corpo, como anéis, brincos, pulseiras e correntes.
O indivíduo foi posicionado em decúbito dorsal, descalço e com os membros inferiores afastados, ficando os pés distantes um do outro em cerca de 30cm e com os membros superiores posicionados ao longo do corpo, permanecendo nessa posição por ao menos 10min antes do exame. Foi realizada antissepsia dos pontos de contato do eletrodo com algodão embebido em álcool a 70%, e um par de eletrodos foi posicionado no pé direito, um eletrodo distal na base do terceiro e quarto dedo e o proximal entre os maléolos medial e lateral, com distância de cerca de 5cm entre eles. O outro par de eletrodos foi colocado na mão direita, com o eletrodo distal na base do terceiro e quarto quirodáctilo, e o eletrodo proximal próximo ao processo estiloide ulnar, também com uma distância de 5cm.
Na condição B, os participantes foram submetidos à avaliação da dor por pressão, sendo orientados para relatar o momento em que sentissem dor quando submetidos à pressão progressiva. O instrumento utilizado foi o dolorímetro da marca Kratos®, com capacidade de produzir pressão de até 50Kgf. A aplicação da pressão foi realizada sobre a região interna da coxa dominante, 30cm acima da articulação tibiofemoral. A força em quilograma força (Kgf,) necessária para ocorrer o estímulo doloroso foi descrita como avaliação 2 (AV2).
Em seguida, a condição C foi realizada, na qual foi avaliado o limiar de dor ao frio na região interna da coxa dominante, 30cm acima da articulação tibiofemoral, aplicando-se 1kg de gelo moído acondicionado em um saco plástico e o tempo foi cronometrado até o limiar de dor (avaliação 3 - AV3). Em seguida, o indivíduo apontou a intensidade da dor pela escala analógica visual (EAV). Esse procedimento foi descrito como avaliação 4 (AV4). Para a confirmação exata do peso do gelo moído foi utilizada uma balança da marca Techline Digital Bal 150pa.
Na condição D foi reaplicada a condição B e os dados obtidos nessa última etapa foram registrados como avaliação 5 (AV5).
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, sob parecer nº2.588.581, com prévia assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Os resultados foram tabelados no Programa Excel 15.0 (Microsoft®) e, para os cálculos, foi utilizado o programa Bioestat 5.0. Os dados foram avaliados quanto à sua normalidade pelo teste de Kolmogorov-Smirnov, apresentados em média e desvio padrão, comparados entre os grupos pelo teste t não pareado, intragrupos teste t pareado e teste de Mann-Whitney para variáveis discretas. O nível de significância aceito foi de 5%.
A caracterização da amostra estudada está apresentada na tabela 1. Todas as variáveis estudadas apresentaram distribuição normal. Em relação à estatura os grupos IMC normal e IMC sobrepeso, não houve diferença estatisticamente significativa (p=0,240). Houve diferença estatisticamente significativa maior no grupo IMC sobrepeso, na massa corporal, no IMC (p<0,0001) e na idade (p=0,0032).
Tabela 1 Caracterização da amostra
Variáveis | Grupos IMC | Média e desvio padrão | Valor de p |
---|---|---|---|
Idade (anos) | Normal Sobrepeso |
20,6±1,7 21,9±2,1 |
0,0032* |
Massa corporal (kg) | Normal Sobrepeso |
60,5±9,6 84±11,79 |
< 0,0001* |
Estatura (m) | Normal Sobrepeso |
1,71±0,076 1,7±0,096 |
0,240 (ns) |
Índice de massa corporal (kg/m2) | Normal Sobrepeso |
20,47±2,31 29,11±3,81 |
< 0,0001* |
Grupos IMC normal (até 24,9) e IMC sobrepeso (≥25); ns = não significativo;
*significativo ao nível de p<0,05.
Em relação às variáveis da composição corporal analisadas pela BIA, todas tiveram diferença significativa entre os grupos IMC normal (IMC até 24,9) e IMC sobrepeso (IMC≥25), as variáveis: gordura corporal (%, kg), IMC, massa magra (%) e água (%) - (p<0,0001), o metabolismo basal em repouso (p= 0,016), massa magra (kg) - (p=0,0006) e água (L) - (p=0,0005).
Quando comparadas entre os sexos, exceto pelo IMC, não houve diferença significativa (p=0,424) (Tabela 2).
Tabela 2 Comparação das médias das variáveis da composição corporal - bioimpedância tetrapolar
IMC | Média e DP | Valor de p | Sexo | Média e DP | Valor de p | |
---|---|---|---|---|---|---|
Gordura corporal (%) | Normal | 16,89±5,14 | <0,0001* | M | 18,33±7,22 | <0,0001* |
Sobrepeso | 30,44±9,68 | F | 26,76±10,81 | |||
Gordura corporal (kg) | Normal | 10,24±3,7 | <0,0001* | M | 14,70±7,58 | 0,0341* |
Sobrepeso | 25,39±10,95 | F | 19,17±12,79 | |||
Índice de massa corporal | Normal | 20,47±2,31 | <0,0001* | M | 24,23±3,67 | 0,424 (ns) |
Sobrepeso | 29,08±3,83 | F | 24,43±6,36 | |||
Taxa metabólica basal (kal) | Normal | 1590,1±212,3 | 0,016* | M | 1884,9±167,7 | <0,0001* |
Sobrepeso | 1726,4±306,7 | F | 1496,4±201,5 | |||
Massa magra (kg) | Normal | 50,27±8,48 | 0,0006* | M | 62,17±8,42 | <0,0001* |
Sobrepeso | 58,44±11,7 | F | 48,02±8,46 | |||
Massa magra (%) | Normal | 83,14±5,13 | < 0,0001* | M | 80,70±7,26 | 0,0003* |
Sobrepeso | 70,09±10,83 | F | 72,79±11,58 | |||
Água corporal (LT) | Normal | 36,8±6,2 | 0,0005* | M | 45,40±6,13 | <0,0001* |
Sobrepeso | 43,16±9,87 | F | 35,36±8 | |||
Água corporal (%) | Normal | 60,87±3,73 | < 0,0001* | M | 58,97±5,20 | 0,0005* |
Sobrepeso | 51,15±8,77 | F | 53,10±9,12 |
*Significativo ao nível de significância p<0,05; ns = não significativo.
A intensidade da dor provocada pelo frio mensurada pela EAV não apresentou diferença significativa entre os grupos IMC normal e sobrepeso (p=0,169). Na comparação entre os dois grupos, o limiar de dor ao frio também não teve diferença estatisticamente significativa (p=0,258). O mesmo comportamento aconteceu com o limiar de dor à pressão inicial (p=0,299) e final (p=0,107). A diferença no percentual de gordura, após o resfriamento do tecido, não influenciou no tempo de resposta do limiar de dor à pressão final (Tabela 3).
Tabela 3 Comparação das médias de tempo do limiar de dor ao frio, limiar de dor à pressão inicial e final em ambos os grupos
Variáveis | Grupos | Média e DP | Valor de p |
---|---|---|---|
Limiar de dor ao frio (seg) | Normal | 75,3±106 | 0,258 (ns) |
Sobrepeso | 93,1±125,1 | ||
Limiar de dor à pressão inicial (Kgf) | Normal | 3,929±3,871 | 0,299 (ns) |
Sobrepeso | 4,407±38,15 | ||
Limiar de dor à pressão final (Kgf) | Normal | 3,291±2,996 | |
Sobrepeso | 4,297±3,791 |
Grupos IMC normal (até 24,9) e IMC sobrepeso (≥25); ns = não significativo.
O mesmo comportamento ocorreu intragrupos. Os homens com limiares de dor à pressão inicial (7,633±3,156Kgf) e final (6,966±2,684Kgf) com (p=0,065) e nas mulheres (0,928±0,866Kgf) e (0,881±0,861Kgf), com (p=0,299) respectivamente, embora sem diferença estatística entre eles, (Tabela 4).
Tabela 4 Comparação das médias e desvio padrão do limiar de dor à pressão inicial e final em ambos os sexos
Sexo | Limiar de dor à pressão inicial (Kgf) | Limiar de dor à pressão final (Kgf) | Valor de p |
---|---|---|---|
Masculino | 7,633±3,156 | 6,966±2,684 | 0,065 (ns) |
Feminino | 0,928±0,866 | 0,881±0,861 | 0,299 (ns) |
Teste t pareado; ns = não significativo.
Por outro lado, quando comparada a diferença entre os sexos, todos os limiares expressos em Kgf tiveram valores significativamente maiores nos homens. Quando analisado o limiar de dor ao frio, os homens apresentaram (176,8±131,3seg) e as mulheres valores marcadamente inferiores (18,0±10,9seg) e p<0,0001. Na análise do limiar de dor à pressão verificou-se que tanto os homens quanto as mulheres tiveram o limiar final diminuído em relação ao inicial, ou seja, após o resfriamento. Apenas a intensidade da dor atingiu escores semelhantes e sem significância estatística entre os sexos (Tabela 5).
Tabela 5 Comparação das médias e desvio padrão do limiar de dor à pressão inicial e final, limiar de dor ao frio e intensidade da dor (EAV entre sexos)
Variáveis | Sexo | n | Média e DP | Valor de p |
---|---|---|---|---|
Limiar de dor à pressão inicial (Kgf) | F | 42 | 0,928±0,866 | <0,0001* |
M | 30 | 7,633±3,156 | ||
Limiar de dor à pressão final (Kgf) | F | 42 | 0,881±0,861 | <0,0001* |
M | 30 | 6,966±2,684 | ||
Limiar de dor ao frio (s) | F | 42 | 18±10,9 | <0,0001* |
M | 30 | 176,8±131,3 | ||
Escala analógica visual (0-100mm) | F | 42 | 4±2,2 | 0,47 (ns) |
M | 30 | 4,1±1,8 |
Teste t não pareado e Mann-Whitney; ns = não significativo;
*significante a 0,05.
O presente estudo apresentou diferenças significativas na avaliação de estímulos álgicos ao frio e a pressão, entre homens e mulheres, porém, sem diferenças com relação ao percentual de gordura. Diversos estudos têm abordado diferenças nos níveis sensoriais em populações distintas, com comparações entre raça9, faixa etária9,10, nível de gordura1 e sexo2. Contudo, a literatura nacional ainda é escassa a esse respeito.
A avaliação da dor por estímulos térmicos tem sido bem descrita, tanto com estímulos quentes quanto frios11. Na presente pesquisa foi utilizada a técnica de aplicação local com gelo na região interna da coxa dominante, o que gerou estímulos álgicos em todos os voluntários, sem diferenças com respeito à intensidade quando comparados os diferentes IMC, bem como entre homens e mulheres, mas os homens apresentaram um limiar significativamente maior. Tais achados são semelhantes aos do estudo12 que analisou o limiar de dor ao frio, intensidade da dor pela EAV e pressão ao frio em 30 mulheres e 30 homens universitários libaneses. Não foi observada diferença na intensidade da dor, mas sim com relação ao limiar, sendo maior para os homens. De forma semelhante, estudo que avaliou a tolerância ao frio em jovens de ambos os sexos, evidenciou que os homens toleraram o estímulo por mais tempo13.
O presente estudo apresentou resultados semelhantes ao estudo14 que comparou os efeitos álgicos do frio em 117 jovens, sendo 55 homens e 62 mulheres, por imersão da mão dominante. O estudo evidenciou que os homens apresentaram maior limiar e tolerância à dor induzida pelo frio que as mulheres, sem diferença significativa com relação à intensidade da dor.
As mulheres apresentaram maior sensibilidade à dor de natureza mecânica, isquêmica ou pelo frio15, assim como, também maior sensibilidade à dor pressórica16. Corroborando tais afirmações, considerando que é um método objetivo e válido17, na presente pesquisa o limiar de dor à pressão foi maior nos homens do que nas mulheres. Fatores biológicos e psicossociais explicam tais diferenças, sendo que mulheres são mais vulneráveis ao desenvolvimento e manutenção de distúrbios dolorosos musculoesqueléticos18.
O presente estudo não evidenciou diferença significativa de acordo com a quantidade de gordura, contrariando resultados que sugerem um limiar à dor maior em indivíduos com maior quantidade de gordura1,3,4. O resultado encontrado, de certa forma, foi surpreendente, pois apesar das mulheres apresentarem percentual de gordura significativamente maior que os homens, tiveram menor limiar de dor ao frio e à pressão. Neste estudo, a amostra foi de jovens universitários, pois grandes discrepâncias na idade podem induzir resultados conflitantes9,11,19,20, sendo necessários mais estudos com amostra maior e inclusive em indivíduos de faixas etárias distintas.
O percentual de gordura não interferiu nos limiares de dor ao frio e pressão, bem como na intensidade da dor ao frio em adultos jovens. Em relação ao sexo, a intensidade da dor foi semelhante. Contudo, o limiar de dor ao frio e à pressão foi significativamente maior nos homens.