versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.33 no.4 Rio de Janeiro 2017 Epub 18-Maio-2017
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00040717
Encontra-se em tramitação no Senado Federal o Projeto de Lei do Senado nº 415 (PLS 415; http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/122071), de 2015, que torna obrigatória a definição em regulamento e a divulgação do parâmetro de custo-efetividade utilizado na análise das solicitações de incorporação de tecnologias no âmbito do Sistem Único de Saúde (SUS).
Segundo o autor do projeto, Senador Cássio Cunha Lima: “Não está claro o fundamento legal segundo o qual a CONITEC analisa o custo-efetividade de um procedimento médico, nem qual é o limiar adotado para considerar que um procedimento é custo-efetivo. Essa lacuna propicia muitas vezes a adoção, pela administração pública, de discricionariedade técnica de baixa qualidade”.
Na sua justificativa, aponta como exemplos países europeus, Canadá e Austrália e dois parâmetros aceitos internacionalmente: (i) 50 mil dólares por ano de vida salvo (AVS); e (ii) a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de três vezes o Produto Interno Bruto (PIB) per capita por anos de vida ajustados para qualidade (QALY, do inglês quality-adjusted life years) ou anos de vida ajustados para incapacidade (DALY, do inglês disability-adjusted life years).
Em setembro de 2016, a Senadora Ana Amélia apresentou como argumento técnico para respaldar as medidas preconizadas pelo PLS 415, um artigo científico que defende a adoção de um limiar 1.
Antes de se embarcar ou ser levado por essa onda de definição de limiares de custo-efetividade transformada em regras de decisão simples, é importante discutir os fatores que influenciam o seu cálculo e apontar questões a serem consideradas quando se discute a possibilidade de adoção de um limiar, ao invés de aceitar regras internacionais e adotar de forma temerária números arbitrários, que não se aplicam ao contexto nacional.
O conceito de “limiar” de custo-efetividade (do inglês threshold) foi proposto originalmente em 1973 por economistas da saúde 2. Ele é representado por uma razão entre um custo monetário, geralmente expresso em moedas nacionais, por exemplo, o real (R$) no numerador e uma medida de ganho em saúde no denominador. Esse valor deve ser comparado ao resultado de estudos de avaliação econômica (razão de custo-efetividade incremental - RCEI) para orientar as decisões de incorporação de tecnologias em sistemas de saúde. Se uma RCEI estiver abaixo do limiar, a intervenção deveria ser incorporada.
Nos Estados Unidos, a discussão sobre um limiar (US$ 50.000 - US$ 100.000) iniciou em 1982, quando Kaplan & Bush 3 classificaram o valor da RCEI em três categorias, “custo-efetiva” (RCEI < US$ 20.000), “controversa” (RCEI entre US$ 20.000 - US$ 100.000) e “questionável” (RCEI > US$ 100.000), sem no entanto apresentarem justificativas razoáveis para a classificação descrita no artigo. No Canadá, em 1992, Laupacis et al. 4 sugeriram uma categorização semelhante: “evidência forte” para adoção (quando RCEI < Can$ 20.000 por QALY), “evidência moderada” (quando RCEI entre Can$ 20.000 - Can$ 100.000 por QALY) e “evidência fraca” (quando RCEI > Can$ 100.000 por QALY). Desde então, esses valores têm sido usados em outros países, de forma arbitrária, sem nenhum cálculo empírico que justifique ou suporte o seu uso.
Os valores de limiares têm sido calculados com base em diferentes abordagens: (1) baseadas na demanda; (2) baseadas na oferta; ou (3) uma combinação das duas. Quando baseadas na demanda focalizam nas preferências da população afetada, isto é, na sua disponibilidade para pagar por unidade de efeito. Valores baseados na oferta focalizam no custo de oportunidade da intervenção, ou seja, no custo por unidade de efeito da alternativa mais benéfica que seria financiada se a intervenção fosse implementada 5.
Há muitos anos o limiar de custo-efetividade mais citado é o publicado pela Comissão de Macroeconomia e Saúde da OMS em 2001 6. Baseado no PIB per capita do país e na estimativa do valor econômico de um ano de vida saudável, o limiar sugere que intervenções que evitem um DALY por menos de 1 PIB per capita do país sejam consideradas muito custo-efetivas; intervenções que custem até 3 PIB per capita ainda sejam consideradas custo-efetivas; e aquelas que excedam esse valor não são sejam consideradas custo-efetivas.
Tais valores foram calculados com uma abordagem baseada na demanda, e representariam uma estimativa da disponibilidade para pagar do indivíduo para acrescentar um ano à sua vida saudável. Não foram estimados de forma rigorosa e refletiam o contexto científico da época 5.
Recentemente, a OMS retirou a recomendação de uso do limiar de 3 PIB per capita/DALY evitado ao considerar que ele não possui a especificidade necessária para os processos de tomada de decisão nos países, podendo levar a decisões equivocadas de alocação de recursos 7.
Projeto de pesquisa recentemente desenvolvido na Universidade de York corroborou essa decisão, quando, ao estimar empiricamente o valor de limiar com base no custo de oportunidade para o Reino Unido, encontrou valores muito inferiores aos recomendados pela OMS no Reino Unido e em outros países 8,9.
A adoção de um limiar para um determinado sistema de saúde pode ser explícita ou implícita. Limiares explícitos são definidos como valores oficialmente reconhecidos por tomadores de decisão de uma organização que adota formalmente esses valores e os torna públicos antes de uma decisão. Limiares implícitos são valores não oficiais, não explicitamente reconhecidos ou autorizados, que podem ser inferidos pela análise do padrão das decisões prévias de cobertura de um determinado sistema de saúde 10.
Foram identificados limiares explícitos nas principais organizações de avaliação de tecnologias em saúde da Tailândia (1,0-1,5 PIB per capita/QALY) 11, Irlanda (€ 45.000/QALY) 12 e Reino Unido (£ 20,00 - £ 30,00/QALY) 13.
Estudo acadêmico citado anteriormente estimou um limiar de £ 12.936 por QALY para o Reino Unido, bem abaixo do limiar usado tradicionalmente 9,14,15.
A definição explícita do limiar é politicamente sensível. Grupos de pacientes, provedores da atenção à saúde e fornecedores de tecnologias em saúde têm grande interesse em monitorar o processo de tomada de decisão e apontar inconsistências, para favorecer a incorporação de uma tecnologia. Em virtude do escrutínio público e de grupos com fortes interesses econômicos e políticos na alocação dos recursos da atenção à saúde, formuladores e implementadores dessas políticas têm sido pressionados a torná-las mais explícitas 10.
Foram identificados limiares implícitos na Austrália (A$ 50.000), Canadá (i.e., Ontário), Suécia e Estados Unidos (US$ 50.000/QALY ou ano de vida) e Brasil (1 a 3 PIB per capita/ano de vida) 13.
Brasil e Tailândia parecem usar o método baseado no PIB recomendado pela OMS 13. Contudo, usaram no denominador QALY ou anos de vida ganhos ao invés de DALY evitados, propostos pela OMS. Em vários lugares, esses denominadores são usados indistintamente sem os ajustes necessários.
No cenário brasileiro, não foi definido um valor explícito do limiar de custo-efetividade para o SUS, para ser aplicado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) 16. Publicação que tem como autores técnicos do Ministério da Saúde sugeriu um valor máximo de R$ 81.675/DALY (3 PIB per capita/DALY), uma faixa de limiar entre R$ 1.361 a R$ 147.016 17 e três níveis de limiar: baixo (< R$ 25.000), médio (R$ 25.000 a R$ 70.000), alto (> R$ 70.000), com base nos valores de limiares apresentados em relatórios de recomendação de medicamentos da CONITEC 18. Também não existem limiares explícitos para orientar a incorporação de tecnologias na saúde suplementar.
Pesquisadores da Universidade de York apresentaram para o Brasil a faixa de ($PPP 3.210 - $PPP 10.122) 8, e o Instituto de Efectividad Clínica y Sanitaria (Argentina) sugeriu a faixa de ($PPP 8.885 - $PPP 11.401/QALY), ambos inferiores a um 1 PIB/per capita.
Em virtude do pequeno número de relatórios de recomendação da CONITEC que apresentaram o cálculo da RCEI (11%), não é possível propor um limiar adequado para o Brasil com base na análise retrospectiva das recomendações feitas 19. Além do pequeno número, as avaliações econômicas apresentaram razões heterogêneas ($/QALY, DALY ou anos de vida) e distantes do padrão internacional esperado de qualidade metodológica 20.
Internacionalmente, há um debate em curso sobre a necessidade de adoção explícita de limiares pelos países. Os críticos argumentam que eles não conseguem capturar todos os valores importantes para a sociedade, em particular implicações éticas, justiça distributiva e outras preferências sociais.
Publicações recentes de países de alta, média e baixa renda enfatizam a necessidade de mais estudos e o interesse no desenvolvimento de limiares que incorporem com clareza as restrições orçamentárias e os custos de oportunidade desses países 14,21.
A fronteira entre a utilidade do limiar explícito e o seu mau uso pode ser tênue. O perigo do mau uso está na possibilidade de atores, com interesses outros, manipularem os valores das razões de custo-efetividade nos estudos apresentados, o que poderia tornar a alocação de recursos ainda mais ineficiente. O quadro técnico-científico capaz de produzir estudos e conduzir a avaliação da sua qualidade ainda é reduzido no nosso país 20.
Todos esses fatores despertam uma sensação de desconforto, aumentada pelas crises política e econômica vivenciadas atualmente. Como definir qualquer valor de limiar num cenário em que os investimentos e gastos públicos em saúde estarão congelados nos próximos 20 anos?
Os argumentos apresentados para suportar o PLS 415 - limiar adotado internacionalmente (US$ 50.000/AVS) ou o limiar não mais recomendado pela OMS (3 PIB per capita/DALY) - não possuem sustentação teórica ou empírica.
Não se pode simplesmente transpor experiências internacionais. A definição desse valor é contexto-específica, depende da riqueza local, das características do sistema de saúde, da disponibilidade e capacidade de pagar, bem como das preferências sociais. E o uso desse limiar deverá sempre ser feito em conjunto com outros critérios.
A pesquisa e reflexão acumuladas devem levar à ponderação sobre o risco de aplicar uma teoria que parece capaz de superar conflitos de interesses, sem reconhecer que o seu potencial de contribuição para maior efetividade, eficiência e equidade no SUS depende de condições políticas que permitam a defesa do bem-estar da população e do bem público. Que o limiar de custo-efetividade explícito não seja mais uma “ideia fora do lugar” a serviço de interesses implícitos.