versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.109 no.5 São Paulo nov. 2017
https://doi.org/10.5935/abc.20170152
O miocárdio não compactado (MNC) foi descrito pela primeira vez por Grant em 1926 como uma desordem heterogênea do miocárdio caracterizada por trabéculas proeminentes, recessos intratrabeculares e um miocárdio composto por duas camadas distintas: compactada e não compactada.1,2 Pode ocorrer de forma isolada ou em associação com outras miocardiopatias, síndromes complexas, distúrbios metabólicos e cardiopatias congênitas, como a anomalia de Ebstein, obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo (VE) ou direito, valva aórtica bivalvular, cardiopatias congênitas cianóticas e anomalias das artérias coronárias. Embora acometa geralmente o VE, pode-se encontrar comprometimento biventricular ou isolado do ventrículo direito.3
A etiologia da não compactação do VE ainda é incerta e diversas bases etiológicas têm sido implicadas. Acredita-se que seja decorrente de mecanismos patogênicos resultando em uma deficiência na fase final da morfogênese miocárdica, ou compactação miocárdica. Evidências crescentes têm suportado uma base genética por meio da identificação de mutação nos genes que codificam as proteínas sarcoméricas, do citoesqueleto e das membranas nucleares.4-6
Embora seja considerada rara por alguns autores, sua incidência e prevalência são incertas. Ritter et al.7 reportaram uma prevalência de 0,05% entre todos os exames ecocardiográficos de uma instituição de grande porte. Já em pacientes com insuficiência cardíaca (IC), a prevalência de MNC foi descrita ao redor de 4%.8
Atualmente, há controvérsias se o MNC consiste em uma miocardiopatia distinta ou uma característica morfológica compartilhada por diferentes cardiopatias. Assim, enquanto é considerado como uma miocardiopatia não classificada pela World Health Organization/International Society and Federation of Cardiology, a American Heart Association considera o MNC uma miocardiopatia genética primária.9,10 A mais recente classificação das miocardiopatias proposta pela European Society of Cardiology Working Group on Myocardial and Pericardial Diseases considera-o como uma miocardiopatia familiar não classificada.11
A apresentação clínica pode ocorrer em qualquer idade, sendo altamente variável. Os pacientes podem ser assintomáticos ou apresentar sintomas de IC grave, associados ou não a arritmias letais, morte súbita cardíaca e eventos tromboembólicos.12
Muitos pacientes assintomáticos são identificados incidentalmente pela ecocardiografia realizada para avaliação de sopro cardíaco ou para rastreio familiar após identificação de um caso índice.12
Os sintomas de IC ocorrem em mais da metade dos pacientes e a disfunção ventricular esquerda foi reportada em até 84% dos pacientes. As arritmias também são comuns, sendo que a fibrilação atrial pode ocorrer em cerca de 25% dos pacientes adultos e as taquiarritmias ventriculares em até 47% dos pacientes. A ocorrência de eventos tromboembólicos, como acidente vascular encefálico, ataque isquêmico transitório, embolia pulmonar e isquemia mesentérica, apresenta grande variação (de 0 a 38%) de acordo com estudos publicados até o momento.3,13,14
Anormalidades eletrocardiográficas podem ser encontradas em até 90% dos pacientes, porém, são inespecíficas. Os achados mais comuns incluem atrasos na condução intraventricular, hipertrofia ventricular esquerda, alterações da repolarização ventricular e achados de síndrome de Wolff-Parkinson-White.3,13,14
De qualquer modo, as crescentes evoluções dos métodos de imagem, além do aumento da aplicação dos testes genéticos para o diagnóstico do MNC, têm impacto significativo na compreensão dos mecanismos envolvidos na gênese do MNC e também na terapêutica clínica.
Dentre os métodos de imagem cardíaca, a ecocardiografia e a ressonância magnética cardíaca (RMC) são as principais ferramentas diagnósticas. Devido a sua ampla disponibilidade, custo e facilidade de acesso, além de não necessitar de uso de agentes de contraste, não expor o paciente a radiação e principalmente pelo baixo custo quando comparada à RMC, a ecocardiografia é o método inicial e mais comumente utilizado para o diagnóstico de MNC.8,12-14
Usualmente, o diagnóstico de MNC deve ser considerado na presença de um miocárdio composto por duas camadas, sendo uma camada epicárdica mais fina e uma camada endocárdica espessa, com trabeculações proeminentes na presença de profundos recessos intraventriculares. As trabeculações são identificadas principalmente ao modo 2D ou bidimensional, mas também podem ser evidenciadas ao Modo M ou unidimensional. O estudo Doppler colorido demonstra a presença de fluxo sanguíneo nesses recessos em continuidade com o VE.8,12-15
Até o momento, têm sido empregados diferentes critérios ecocardiográficos para o diagnóstico de MNC. Os principais critérios ecocardiográficos utilizados na prática clínica são descritos a seguir (Tabela 1):
Tabela 1 Critérios propostos para o diagnóstico de miocárdio não compactado.6,13
Critério | Chin et al.2 | Jenni et al.16 | Stöllberger et al.17 |
---|---|---|---|
Número de pacientes | 8 | 7 | 104 |
Fase do ciclo cardíaco | Final da diástole | Final da sístole | Trabeculações avaliadas ao final da diástole e MNC e MC avaliados ao final da sístole |
Corte | Paraesternais transversais e/ou apicais | Paraesternal transversal | Cortes convencionais e modificados |
Relação MNC/MC | - | > 2 | - |
Jenni et al.,16 consideram para o diagnóstico a presença de miocárdio composto por duas camadas, sendo uma fina compactada (C) e outra mais espessa não compactada (NC) com profundos recessos endomiocárdicos preenchidos por fluxo sanguíneo ao Doppler colorido, na ausência de outras anormalidades cardíacas. É considerada diagnóstica uma relação NC/C > 2. As medidas devem ser adquiridas ao final da sístole no corte paraesternal transversal16 (Figura 1).
Chin et al.,2 definem MNC na presença de trabeculação proeminente excessiva e aumento progressivo da espessura total da parede miocárdica a partir da valva mitral em direção à região apical caracterizado por uma proporção de MC/(MNC + MC) ≤ 0,5 avaliada ao final da diástole nos cortes paraesternais transversais e/ou cortes apicais (Figura 2).
Stöllberger et al.,17 definem MNC como a presença de três ou mais trabeculações ao longo das bordas endocárdicas do VE, distintas dos músculos papilares, falsos tendões e bandas musculares aberrantes e que se movimentam sincronicamente com o MC. Nesse estudo, as trabeculações foram melhor visibilizadas ao final da diástole, enquanto o miocárdio composto por duas camadas foi melhor avaliado ao final da sístole (Figura 1).
Recentemente, Paterick et al.,13 (Wisconsin) propuseram o diagnóstico de MNC como uma razão de MNC/MC > 2, medidas tomadas ao final da diástole ao corte paraesternal transversal. Esse critério necessita validação clínica (Figura 1).
Os critérios diagnósticos descritos por Jenni et al.,16 e Chin et al.,2 baseiam-se nas medidas da espessura do MNC e do MC. Porém, os critérios diferem no momento do ciclo cardíaco em que as medidas devem ser realizadas. Enquanto Chin et al.,2 propõem que as medidas da espessura do MNC e do MC sejam realizadas ao final da diástole, Jenni et al.,16 propõem a medida ao final da sístole.
Os critérios propostos por Jenni et al.,16 utilizam a relação MNC/MC > 2 ao final da sístole, gerando maior especificidade e menor sensibilidade em comparação aos critérios de Chin et al.,2 que empregaram a relação MC/(MNC + MC) ≤ 0,5. O aumento da sensibilidade, porém, se dá à custa de redução da especificidade, quando comparado aos critérios de Jenni et al.16
Um estudo recente avaliou a acurácia dos critérios ecocardiográficos descritos por Chin et al.,2 Jenni et al.,16 e Stöllberger et al.,17 para o diagnóstico de MNC em pacientes com IC comparados a um grupo controle composto de indivíduos normais. Foram avaliados o tamanho e o número de trabeculações identificadas no corte apical ao final da diástole e a medida da espessura da camada de MNC no corte paraesternal eixo curto ao final da sístole. Somente casos concordantes avaliados por dois revisores foram considerados positivos.18
Nesse estudo, 79% dos pacientes preencheram critérios diagnósticos de MNC pelos critérios de Chin et al.,2 64% pelos critérios de Jenni et al.,16 e 53% pelos critérios de Stöllberger et al.17 Nesse estudo, os critérios de Chin et al.,2 apresentaram maior sensibilidade, porém com maior percentagem de diagnóstico falso-positivo. Houve fraca correlação entre os três critérios ecocardiográficos aplicados, com apenas 30% dos pacientes preenchendo todos os três critérios. Todos os indivíduos do grupo controle apresentaram dimensões ventriculares e função sistólica preservadas. Cinco indivíduos do grupo controle (4 negros e 1 branco) preencheram um ou mais critérios para o diagnóstico de MNC. Esse resultado ressalta a limitação dos critérios ecocardiográficos para o diagnóstico de MNC, particularmente em indivíduos negros, resultando em excesso de diagnósticos de MNC.18 Nesse estudo, foi realizada comparação com indivíduos normais e, talvez se fosse realizada a comparação com pacientes com IC, os resultados poderiam ser ainda mais discrepantes.
O critério proposto por Paterick et al.,13 em 2014 apresentou boa correlação com os achados da RMC e, de acordo com os autores, esse critério permitiu medidas mais acuradas da espessura do MNC e do MC. Porém, esses critérios não foram validados e necessitam de confirmações adicionais e comparação com outras populações com doença estrutural cardíaca, antes de serem adotados como uma opção diagnóstica viável.13
Apesar do diagnóstico cada vez mais frequente do MNC, os critérios ecocardiográficos aplicados para esse fim baseiam-se em estudos com número limitado de pacientes e metodologias distintas. O momento do ciclo cardíaco em que são realizadas as medidas do MNC e MC tem influência direta na relação entre as duas camadas avaliadas. A espessura miocárdica é máxima na sístole e mínima na diástole o que impacta diretamente no valor da relação entre o MNC e o MC. Além disso, outro ponto a ser considerado é o corte em que são realizadas essas medidas. A maioria dos critérios sugere que as medidas sejam realizadas no corte paraesternal transversal, porém, na prática clínica diária, as medidas são feitas frequentemente nos cortes apical 4 e 2-câmaras. Finalmente, não há até o momento consenso acerca da razão entre MNC e MC a ser adotada como critério diagnóstico devido à falta de uniformidade aceita para o diagnóstico.
Além disso, alguns estudos demonstram um número considerável de atletas jovens que apresentam critérios diagnósticos de MNC reforçando a falta de especificidade dos critérios diagnósticos atuais quando aplicados em populações de atletas de elite.19
Embora infrequente, é descrita em literatura a ocorrência de não compactação miocárdica em ventrículo direito. Porém, nesses casos, os critérios diagnósticos apresentam ainda mais limitações quando comparados àqueles aplicados ao VE pela ecocardiografia, dada a limitação para a análise do ventrículo direito pela ecocardiografia por sua geometria complexa e que não pode ser contemplada em apenas um corte ecocardiográfico.20,21
Assim, apesar do maior reconhecimento do MNC pelos ecocardiografistas, são frágeis as bases diagnósticas que fundamentam os critérios aplicados. Portanto, são necessários estudos com maior número de pacientes com diagnóstico de MNC, além de uniformização dos cortes a serem utilizados para as medidas, bem como o momento mais adequado para esse fim. Esses estudos idealmente deveriam comparar grupo de indivíduos saudáveis e grupo de pacientes com IC, uma vez que alguns pacientes "normais" podem preencher os critérios ecocardiográficos diagnósticos de MNC, porém, sem quadro clínico aparente e prognóstico benigno e visto que a prevalência de MNC parece ser mais elevada em pacientes com IC. Adicionalmente, para a definição dos critérios diagnósticos, devem ser levadas em consideração as particularidades de populações específicas, como atletas de alta performance e indivíduos da raça negra, e também as características morfológicas do ventrículo direito.
A ecocardiografia é o método de imagem cardíaca inicial e também o mais empregado para o diagnóstico de MNC. O maior conhecimento e entendimento do MNC consistem no primeiro passo para maior acurácia diagnóstica nos laboratórios de ecocardiografia. Porém, os critérios ecocardiográficos utilizados até o momento para essa finalidade apresentam grande variação entre si e foram baseados em estudos que avaliaram um número reduzido de pacientes.
Técnicas avançadas, como a ecocardiografia tridimensional, utilização de agentes de contraste para melhor definição das bordas endocárdicas principalmente da região apical em pacientes com janela acústica limitada, bem como a análise da deformação miocárdica (strain) pela técnica de speckle tracking são métodos promissores e apresentam grande potencial para aumentar a acurácia diagnóstica da ecocardiografia em pacientes com MNC. O emprego dessas técnicas na prática clínica tem aumentado nos últimos anos, porém a evolução dos métodos de imagem exige estudo e redefinição constante dos critérios ecocardiográficos para o diagnóstico de MNC.22-25
A identificação de alta prevalência de não compactação miocárdica em populações de baixo risco como atletas e indivíduos normais da raça negra sugere que o aumento de trabeculação e recessos em VE possam representar um padrão de resposta ao incremento crônico da pré-carga. Assim, devido às limitações atuais para o diagnóstico do MNC, sugere-se uma integração entre avaliação clínica, eletrocardiográfica e abordagem multimodalidade pela ecocardiografia e técnicas da RMC.26-28
Perspectivas futuras incluem além da avaliação multimodalidade, modificações que se adequem às diferentes etnias e avaliação funcional embasada por uma colaboração multicêntrica e internacional, incorporando dados genéticos para um diagnóstico mais acurado do MNC.26-28