versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758
Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.26 supl.1 Rio de Janeiro dez. 2019 Epub 27-Jan-2020
http://dx.doi.org/10.1590/s0104-59702019000500003
A assistência para enfrentamento da questão social, nomeadamente a saúde e a pobreza em Juiz de Fora oitocentista, organizou-se a partir de três vertentes: a primeira combinou elementos da filantropia das elites com as ações da municipalidade; a segunda ocorreu no âmbito privado, ligada ao escravismo; e a última – as esmolas – está inscrita na longa duração, no que podemos chamar de “economia da salvação” (Castel, 1998; Geremek, 1986). Ainda que a terceira maneira de assistir não esteja definida como objetivo deste artigo, vamos trazer à baila a discussão por considerar que compõe o interessante painel das formas de assistência nas Minas Gerais oitocentistas.
As principais fontes que subsidiaram esta reflexão foram documentos da Câmara Municipal de Juiz de Fora, inventários, jornais de circulação local e o Compromisso da Irmandade do Senhor dos Passos. A pesquisa se situa na segunda metade do século XIX, momento de acomodação e crise do sistema político imperial brasileiro, contestação do regime escravista de trabalho e gradual mudança no cenário urbano, marcado pelo crescimento das cidades, pelos deslocamentos populacionais provocados pelo fim da escravidão e pela chegada de imigrantes. O capital agrícola também financiou o desenvolvimento de indústrias e o crescimento dos serviços, alterando significativamente o panorama urbano e os rearranjos de poder, prestígio e assistência na virada do século XIX para o XX.
Para compreender a assistência à saúde no século XIX a partir da criação e manutenção dos equipamentos hospitalares – pequenos hospitais ou enfermarias –, é preciso indagar: quem recebia cuidados médicos, cirúrgicos e/ou farmacêuticos? Quem pagava por esses cuidados? Qual a relação entre o hospital e o fluxo populacional? Quem organizava a assistência? Como a longa experiência escravista matizou os arranjos de assistir os doentes no Brasil? A experiência da Zona da Mata mineira, discutida neste artigo, é um laboratório possível para perceber os atravessamentos da experiência brasileira, uma vez que essa região agrária foi território de produção cafeeira e fez grande uso do braço escravo?
Pensar a história da assistência à saúde requer observar os esforços privados e filantrópicos, em plena articulação entre o público e o privado, com instituições particulares sendo erguidas para benefícios públicos (Lindemann, 1999). Partindo dessa premissa, a assistência à saúde nas Minas Gerais oitocentistas nos remete à figura de José Antonio da Silva Pinto (1785-1870), barão de Bertioga. Nascido em junho de 1785 na freguesia do Lage, hoje município de Resende Costa, em Minas Gerais, integrava uma família de 13 filhos. A partir de 1820, há registros de sua presença na igreja matriz de Simão Pereira, localidade onde residiu. Proprietário da fazenda Soledade, foi um dos pioneiros no plantio de café na região, de onde se acredita que tenha vindo sua fortuna (Travassos, 1993). Deslocou-se por volta de 1830 para a vila de Santo Antônio do Paraibuna, atual cidade de Juiz de Fora.
José Antonio da Silva Pinto constituiu-se em um dos principais filantropos de Paraibuna, envolvido em todos os movimentos voltados para o desenvolvimento da cidade, reconhecido por utilizar seu capital econômico e político em prol da proteção aos pobres (Travassos, 1993). Ao longo de sua vida, acumulou títulos e circulou por diversas irmandades. Foi comendador da Ordem da Rosa e da Imperial Ordem de Cristo, membro das Irmandades Ordem Terceira do Carmo do Rio de Janeiro; Ordem São Francisco de Paula do Rio de Janeiro; Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro; Santíssimo Sacramento da Freguesia de Santa Rita; Nossa Senhora dos Homens de Barbacena do Caraça; Senhor Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas; além de fundador e provedor perpétuo da Irmandade de Nosso Senhor dos Passos de Santo Antônio do Paraibuna (Azzi, 2000). Apesar de seu envolvimento com essas instituições, o que implicava o pagamento regular de joias, também fez doações expressivas para auxílio aos pobres indigentes em momentos de epidemias, além de contribuir com as obras de instalação do cemitério público e aquisição do prédio que serviria de sede da Câmara Municipal, da qual foi vereador (Travassos, 1993; Oliveira, 2016).
A participação de Silva Pinto em diversas irmandades revela o crescente prestígio econômico e social desse barão do café à época, o que corrobora com estudos que apontam a presença de filantropos em vários espaços de sociabilidade, bem como no cenário político (Franco, 2015; Tomaschewski, 2015; Barreto, 2005; Boschi, 1986; Russel-Wood, 1981; Carvalho, 2018). Tais atitudes de contribuição financeira, apoio político ao Império e ações benemerentes faziam parte da etiqueta dos homens de posses para angariar os títulos de nobreza à brasileira (Holanda, 2010; Faoro, 2001; Barman, 1988).
Em 1854-1855, foi de responsabilidade de José Antonio da Silva Pinto a criação de uma Casa de Caridade constituída a partir do compromisso da Irmandade do Senhor dos Passos e a ela vinculada, durante uma epidemia de cólera que atingiu o Império e chegou à vila de Santo Antônio do Paraibuna em meados do século XIX. Essa obra foi destacada, dentre suas iniciativas, como a mais importante contribuição à cidade (Travassos, 1993). O reconhecimento de seus relevantes gestos para a sociedade juiz-forana pode ser observado na sessão da Câmara Municipal de 25 de abril de 1866, quando o vereador doutor Avelino Milagres apresentou uma indicação de reconhecimento ao barão de Bertioga da Casa de Misericórdia, sendo aprovada de maneira unânime (Esteves, 1915).
Entre os que compunham a Irmandade de Nosso Senhor dos Passos, além de José Antonio da Silva Pinto e sua esposa, podemos observar, pelo livro de receitas e despesas, a presença de famílias ilustres do município. Entre elas a família Halfeld, nas figuras do comendador Henrique e de sua esposa dona Candida, a família Tostes, com a presença de dona Rita de Cássia, da família Lage, na figura de Domingos Antonio Barbosa Lage, da família Valle Amado, na pessoa de Domingos do Valle Amado, e da família Horta, com Antonio Caetano Oliveira Horta. Essas famílias compunham parte importante das elites detentoras de terras, escravos e cargos públicos no município. Destacamos ainda a participação do influente político João Nogueira Penido (pai) – deputado-geral no Império e deputado federal na República, de 1894 a 1899.
Os esforços de José Antônio da Silva Pinto em propor a criação do Hospital da Caridade lhe valeram o título de barão de Bertioga, concedido pelo imperador dom Pedro II quando visitou a cidade para a inauguração da estrada União e Indústria em 13 de maio de 1861 (Stehling, 1965). O título nobiliárquico conferia a Silva Pinto distinção social e política, além de externar o reconhecimento público do imperador. Como nos lembra Eul-Soo Pang (1988), para receber um título não bastava apenas os contos de réis, a esses se somava a boa política. E, no estudo de caso que ora apresentamos, as boas ações consistiam em prover a cidade com recursos que cabiam, a priori, ao poder público, a exemplo do cuidado com os doentes.
Vale lembrar que a lei imperial de outubro de 1828 estabelecia como atribuição das Câmaras Municipais prover vilas e cidades de estabelecimentos (casas de caridade) para curar os “doentes necessitados”, sendo esses assistidos por um médico ou cirurgião de partido.1 Além da assistência à saúde, as casas de caridade deveriam criar os expostos e realizar vacinação.
Quando o barão cria uma casa de caridade para assistir os enfermos, percebe-se o imbricamento entre o privado e o público, pois Silva Pinto toma para si uma atribuição que o lança como benfeitor, que terá suas “boas” ações reconhecidas pelo imperador por meio de um título nobiliárquico, constituindo assim um vínculo entre o barão e o monarca, conferindo a Silva Pinto uma marca distintiva em relação aos demais proprietários de terras.
Podemos concluir que a iniciativa do barão de criar, via Irmandade do Senhor dos Passos, uma Casa de Caridade em Juiz de Fora busca adequar o recém-constituído município às determinações das leis imperiais e provinciais. Na condição de provedor perpétuo da Irmandade e de membro da Câmara Municipal, ele assumiu o protagonismo de afinação entre os interesses privados e públicos no Brasil rural e escravista. Os demais membros da Câmara Municipal, pertencentes à elite agrária escravista, mantiveram-se subordinados à liderança do nobilitado José Antônio da Silva Pinto – barão de Bertioga –, e a assistência à saúde na cidade organizou-se sob base utilitarista,2 equilibrando-se nos vértices da filantropia, da virtude social e do capital político. Mary Lindemann (1999), ao analisar a medicina e a sociedade na modernidade, em particular a criação de hospitais, pontua a necessidade de levar em consideração as complexas forças socais, econômicas e culturais que convergiram na criação e administração desses equipamentos de saúde.
A historiografia sobre assistência à saúde nos séculos XVIII e XIX tem demonstrado a importância da fundação de hospitais para socorrer pobres, militares, trabalhadores locais e a população flutuante. Para o império português e suas colônias, a criação de irmandades foi a alternativa para a promoção da assistência, sendo a Misericórdia a de maior prestígio (Abreu, 2001; Barreto, 2005; Franco, 2011, 2014; Sá, 1997; Lopes, 2012; Boschi, 1996; Gandelman, 2005; Araújo, 2009). Algumas confrarias atendiam apenas seus membros, outras ampliavam o raio de atuação, abarcando pobres, trabalhadores, órfãos, viúvas, soldados, presos, estrangeiros e escravizados (Soares, 2002; Karasch, 2012). A Irmandade da Misericórdia, em particular, foi uma instituição que aliou os interesses do Estado, da elite local, da Igreja e das câmaras municipais.
Em Juiz de Fora – então Vila de Santo Antonio do Paraibuna – foi criada, em 1854-1855, na Capela do Senhor dos Passos, a Irmandade do Nosso Senhor, por iniciativa de José Antônio da Silva Pinto, barão de Bertioga, com a finalidade de promover cultos religiosos e socorrer a pobreza. O amparo espiritual era oferecido pela capela, e o amparo aos doentes ficou por conta da Casa de Caridade, também nomeada de Casa de Misericórdia, onde funcionou uma enfermaria.
Durante a segunda metade do século XIX, esse hospital não representou um espaço significativo de cura, nem de amparo à pobreza. Após a morte do barão de Bertioga (1870), e com o avanço do movimento abolicionista, rompeu-se o equilíbrio dos acordos fixados duas décadas antes. Poucos meses após a morte do barão, a Câmara Municipal constitui uma comissão para verificar as condições da “Cadeia, da Misericórdia e do Matadouro” (Câmara Municipal, 18--). A comissão era formada por um engenheiro, um magistrado, um advogado e dois médicos. Nesse relatório, a comissão destacou a inadequação e a precariedade da construção, que se encontrava em adiantado estado de ruína.
O relatório lista a relação dos bens da Irmandade, entre edifícios, escravos, créditos, dinheiro e doação imperial, perfazendo um patrimônio que ultrapassou 115 contos de réis. Segundo a comissão, a Casa de Caridade era “inconvenientemente construída”, “arruinada”, mas a única alternativa para tratar a “numerosa pobreza” do município (Câmara Municipal, 18--). Como solução, os signatários do documento propuseram reunir os membros da Irmandade do Nosso Senhor dos Passos a fim de providenciar os reparos necessários e solicitar à Assembleia Provincial algumas loterias, a exemplo de outras “Misericórdias”3 do Império, ou “qualquer outro favor provincial”.
A câmara enviou correspondência ao secretário da Irmandade do Nosso Senhor dos Passos em 2 de junho de 1870, convidando-o a reunir o mais rápido possível os irmãos, com o propósito de eleger um novo provedor para suceder ao barão de Bertioga. Vale lembrar que ele faleceu em 6 de maio de 1870 e que seu testamento foi lido e oficializado no mês de sua morte. Nesse documento, o barão nomeou como provedor da Irmandade seu sobrinho Elias Antonio Monteiro da Silva, fato não considerado pelos vereadores. Esse episódio nos permite inferir que o sucessor não possuía força política suficiente, nem liderança, tampouco capital social para substituir o tio. Ou, ainda, que o barão – provedor perpétuo da Irmandade – tentou uma última manobra acreditando que poderia interferir nos rumos da confraria por meio de seu testamento.
O poder político do barão e sua intenção de perpetuar sua influência na irmandade ficam explícitos no compromisso da dita irmandade:
Artigo 9º
O irmão instalador o Comendador José Antônio da Silva Pinto de sua própria espontaneidade é o Provedor perpétuo da Irmandade e seu Benfeitor, e durante sua vida não se procederá a eleição para se preencher aquele cargo (Compromisso..., 6 ago. 1854).
Seis anos depois, em 1876, a instalação do hospital com os recursos doados pelo barão ainda não ocorrera. Ao recorrer ao livro de receitas e despesas da irmandade, observamos uma inconstância nas prestações de contas. Além de não ocorrerem anualmente, não foram feitas entre 1865 e 1873, sendo neste último ano realizada uma única e ampla prestação de todo o período. Nota-se que, mesmo com a morte do fundador da irmandade, em 1870, não foi realizada uma prestação de contas ao final de sua provedoria. Nos períodos posteriores, elas voltam a ser irregulares, tornando-se anuais apenas a partir de 1886. Nas prestações existentes, as receitas são predominantemente oriundas de joias anuais, esmolas, aluguéis, doações, créditos e testamentos. As despesas, por sua vez, concentram-se em pagamentos a capelães e sacristãos, hóstias e ornamentos de procissão, raras vezes pagamentos nominais, sem a descrição da natureza da despesa. Somente para 1887 e 1888 passaram a constar receitas e despesas relativas especificamente à Casa de Caridade.
Fica evidente que, durante o Segundo Reinado, o hospital da Irmandade Senhor dos Passos não foi significativo na assistência aos doentes da cidade de Juiz de Fora. Criado por inciativa privada, ligado a uma irmandade, associado ao poder público, uma vez que desobrigava a Câmara Municipal de prestar assistência aos pobres, teve um protagonismo pífio. Por quê? Para compreender essa dinâmica, precisamos problematizar quem constituía o segmento social que necessitava de cuidados. Para o estudo em questão, o principal grupo a ser assistido era a população escravizada, e esse segmento não residia na cidade, mas na zona rural.
A historiografia sobre hospitais modernos tem associado sua existência à mobilidade populacional. Cidades que possuíam intenso fluxo populacional, seja por conta do porto, da agricultura ou da concentração de operários, tenderam a organizar hospitais com capacidade de assistir aqueles que estavam em trânsito e fora das redes de sociabilidade familiar e territorial (Lopes, 2017; Barreto, 2005, 2011; Correa, 2018).
Em Juiz de Fora, o fluxo populacional mais marcante foi dos escravizados. O aumento da mão de obra escrava esteve relacionado à expansão da lavoura cafeeira. Entre as últimas décadas do século XVIII e as primeiras do XIX, começam a ser percebidos os primeiros indícios de expansão da produção de café na parte sul da província, futura Zona da Mata mineira (Carneiro, 2008). Nesse período, as províncias de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais viam crescer sua produção de café e a consequente concentração de escravos nas regiões do Vale do Paraíba, centro-oeste de São Paulo e Zona da Mata mineira.
Entre 1830-1850, houve uma expansão considerável da produção cafeeira na região do vale do Paraibuna, atingindo patamares de produção em larga escala. De rústicos pontos de abastecimento de tropeiros no século XVIII, a região experimentou grandes transformações, tornando-se o principal polo produtor e exportador de café da província. Cabe ressaltar que a Zona da Mata era responsável pela quase totalidade da produção de café de Minas (Machado, 2002; Freire, 2011).
O crescimento das populações cativa e livre da cidade de Juiz de Fora reflete o aumento da importância da produção e do escoamento de café na região. Em 1833, a comarca do Paraibuna apresentava a terceira maior população da província (15,2%) e a primeira em número de escravos (19,2%). Tomando como base 118 inventários do período de 1830 a 1854, Vittoretto (2012) estimou o quantitativo da população escravizada na região de Juiz de Fora, onde 30,49% do conjunto de proprietários possuía mais de 20 escravos. Esse grupo contabilizou a quantidade de 1.648 cativos, do total de 2.131, correspondendo a 77,32% (Vittoretto, 2012).
De 1855 a 1870, houve expansão na concentração da mão de obra cativa entre grandes proprietários, em comparação ao período anterior. O grupo de proprietários possuidores de 20 a 50 cativos totalizava 47 fazendeiros e correspondia a 16,04% do total de inventários, e a 19,01% do total de escravos. Para aqueles com plantéis superiores a 50 escravos, observou-se um universo de 45 proprietários, ou seja, 15,37% do total. Esse grupo possuía a quantidade de 4.474 cativos, correspondendo a 61,15% do total. Considerando a soma dos médios e grandes proprietários (entre 20 e mais de 150 escravos), ocorreu um avanço de 77,32% dos cativos nas mãos desse grupo no período de 1830-1854 para 80,16% no período de 1855-1870 (Vittoretto, 2012).
Tabela 1 : Estrutura de posse dos escravos em Juiz de Fora, 1855-1870
ESCRAVOS | QTDE. PROP. | % | TOTAL ESCRAVOS | % | MÉDIA |
---|---|---|---|---|---|
1-5 | 92 | 31,39 | 252 | 3,44 | 2,73 |
6-10 | 62 | 21,16 | 475 | 6,49 | 7,66 |
11-19 | 47 | 16,04 | 716 | 9,8 | 15,23 |
20-50 | 47 | 16,04 | 1.397 | 19,1 | 29,72 |
51-100 | 29 | 9,9 | 1.934 | 26,44 | 66,68 |
101-150 | 10 | 3,41 | 1.168 | 15,96 | 11,68 |
+ 150 | 6 | 2,06 | 1.372 | 18,75 | 228 |
TOTAL | 293 | 100 | 7.314 | 100 | 24,96 |
Fonte: Vitoretto (2012).
No período estudado, o tratamento das doenças ocorria no espaço doméstico, onde o enfermo era cuidado por familiares, parentes e amigos. Os escravos estavam definitivamente fora dessa rede de apoio, dadas as características específicas dessa população submetida à diáspora, particularmente no ambiente rural. Assim, se os escravizados formavam o principal grupo de trabalhadores alijados dos espaços familiares de proteção e solidariedade, onde eram tratados? Nos hospitais e enfermarias rurais.
As pesquisas historiográficas recentes revelam que, no Brasil, as grandes e médias fazendas possuíam hospitais e enfermarias. Keith Barbosa (2014b) também se debruçou sobre o tema, discutindo a realidade escrava relativa à saúde e à doença para a região do Cantagalo, importante polo cafeeiro da segunda metade do XIX no vale do Paraíba fluminense. Utilizando como fontes primárias inventários, periódicos, relatórios médicos, cobranças judiciais de honorários médicos, bem como manuais e teses médicas publicados no período, retratou as experiências dos enfermos e as ações dos senhores na prevenção e no tratamento das enfermidades. A relação entre assistência e prosperidade econômica fica evidente no editorial publicado no periódico Gazeta da Bahia em 25 de agosto de 1866, quando conclamavam os proprietários a não deixar sem proteção tantas vidas necessárias à prosperidade do país (Editais, 25 ago. 1866).
Rosilene Mariosa (2006) trabalhou com os arquivos familiares do comendador Manoel Antonio Esteves, proprietário da fazenda Santo Antônio do Paiol, localizada na região do vale do Paraíba fluminense, no município de Valença, estado do Rio de Janeiro. Ao estudar as doenças e formas de tratamento dos escravos da fazenda Paiol – que possuía cerca de 320 escravizados –, ela demonstra que ali havia um hospital, construído na parte mais alta do terreno, próximo da sede. Os escravos eram atendidos pelo médico Ernesto Frederico da Cunha, por farmacêuticos, práticos em farmácia, além de cativos destacados para auxiliar.
Júlio César Pereira (2009, 2011) nos traz dados sobre a Imperial Fazenda de Santa Cruz (Rio de Janeiro) durante a segunda metade do século XIX. A fazenda possuía hospital desde 1700, construído pelos jesuítas para atender os escravos doentes. Em 1820, o hospital era composto por uma construção de dois andares, onde os doentes eram separados por sexo e idade. O hospital também tratava viajantes e homens livres. Havia uma botica no andar térreo, e o corpo clínico era composto também por escravos hábeis na arte de sangrar.
Faz-se necessário pontuar que a existência de hospitais para cuidar dos escravizados foi uma prática recorrente em outros quadrantes geográficos, marcados pela plantation escravista, como Caribe e EUA. Richard B. Sheridan (1985) analisou a medicina escrava e a experiência demográfica dos cativos a partir das taxas de natalidade, mortalidade, longevidade, doenças de escravos, entre outros aspectos, detalhando o funcionamento dos hospitais das plantations caribenhas. Os fazendeiros geralmente construíam hospitais que combinavam características de enfermarias e prisões. A equipe que ali trabalhava variava de acordo com o número de escravos da fazenda, o tamanho do hospital e a disposição do proprietário para treinar e empregar escravos e libertos no serviço hospitalar. Em uma grande fazenda, o hospital era servido por um negro ou negra versados na arte de curar, um assistente, várias enfermeiras – em geral mulheres doentes –, cozinheiras, uma parteira e enfermeiras para cuidar da sala de parto. Havia ainda uma escrava ou um escravo destacado para cuidar da enfermaria onde estavam os acometidos por bouba. Esse ambiente ficava afastado do hospital (Sheridan, 1985).
Todd L. Savitt (1978) estudou a relação entre proprietários, escravizados e médicos como componente da história da medicina no Sul dos EUA. Para o autor, os donos de escravos ditavam as condições de vida e trabalho dos cativos, promovendo ou destruindo a saúde da população escravizada. Portanto, saúde, doença e cuidados médicos ajudaram a moldar a experiência escravista.
Interpretações mais datadas tenderam a definir a elite proprietária como acostumada a uma fácil “reposição” de braços escravos, em face da oferta contínua promovida pelo tráfico humano. Por conta disso, reservavam aos negros uma rotina de extrema violência, trabalhos pesados e pouca ou nenhuma preocupação com a preservação de sua saúde. Nessas condições, o escravo adoecido tendia a ser visto como estorvo, um fardo para seu senhor, pouco interessado em investir nos recursos que promovessem sua recuperação. Trabalhos recentes, como os de Almeida (2012), Loner et al. (2012), Pereira (2011) e Barbosa (2014a), além dos já citados, trazem novas questões ao demonstrar que os fazendeiros desenvolveram, para várias regiões do Brasil e alhures, estruturas voltadas para o cuidado e preservação da saúde de seus escravos.
Os manuais agrícolas publicados a partir da década 1830, em alguns casos com apoio político do Estado brasileiro, procuravam oferecer uma solução para os dilemas dos grandes proprietários, público-alvo desses trabalhos, quanto à gestão de suas fazendas (Marquese, 2001; Porto, 2008). Refletiram sobre questões diversas, como saúde, trabalho, descanso, habitação, alimentação, vestuário, castigo, religiosidade e formação familiar da população cativa (Oliveira, 2016).
Os manuais agrícolas revelam um cenário em que as condições precárias de vida dos escravos acabavam por determinar uma alta taxa de mortalidade. Seriam muitos os fatores desencadeadores desse cenário: alimentação, moradias inadequadas, trabalho exagerado, descanso insuficiente, excessos sexuais, consumo exagerado de bebidas alcoólicas e a violência do cativeiro. Propuseram, de forma detalhada, ações que visassem à manutenção do sistema escravista, mas que também promovessem a ampliação de suas potencialidades produtivas, incorporando à rotina das fazendas preocupações relacionadas a saúde, vestuário, alimentação, disciplina, religião, habitação, trabalho, descanso e relações familiares entre os escravos (Taunay, 1839; Imbert, 1834).
A mudança de comportamento dos grandes proprietários de terras e escravos quanto ao tratamento dispensado aos trabalhadores é vista como necessária e imprescindível pelos autores, sendo crucial para a própria sobrevivência da engrenagem escravista. Para convencê-los da necessidade de incorporar novas práticas no trato dos escravos, sustentavam em seus argumentos que não haveria outra forma de se relacionar com a escravidão, que somente pelo caminho da assistência e conservação garantiriam a satisfação dos interesses econômicos, combinando-os com a exaltação do sentimento de benevolência associado à condição humana. “Se o próprio interesse lhes não ditasse essa obrigação, a humanidade lhes imporia um tal dever” (Imbert, 1834). Taunay (1838, p.63) se utiliza de uma definição muito próxima, atribuindo o cuidado aos pretos doentes ao interesse e à humanidade. O médico David Jardim (1847, p.15) segue na mesma direção ao sustentar que “não só a humanidade, como o interesse, ordenavam que se praticasse” maior atenção dos senhores sobre o tratamento dos escravos quando adoecidos.
Observamos no discurso desses autores uma preocupação comum de que as fazendas possuíssem espaços construídos de forma adequada e voltados especificamente para o tratamento de escravos doentes. Diversas são as menções feitas por eles à presença de enfermarias e/ou hospitais como parte da estrutura fundamental das fazendas destinadas à grande produção.
Keith Barbosa (2014b) observou uma elite proprietária empenhada em ampliar seus investimentos em infraestrutura voltada para socorrer os escravos adoentados. Essa estrutura incorporava enfermarias e hospitais, mas também a contratação de boticários, médicos de partido, cirurgiões e a presença de escravos enfermeiros e barbeiros, uma estratégia elaborada pelos proprietários para garantir a manutenção dos plantéis e não interromper a lucratividade do empreendimento agrícola cafeeiro.
O testamento do barão de Bertioga registra a concessão de alforria a alguns de seus cativos, desde que Manuel, alfaiate, e sua mulher, Julia, prestassem serviços por um período de seis anos na enfermaria da fazenda Soledade, de propriedade do barão (Travassos, 1993).
Seis anos representa muito tempo se considerarmos a média de vida de um escravizado. No caso de Manuel e Júlia, infere-se que poderiam cuidar das roupas usadas na enfermaria da fazenda, ou quiçá limpar, cozinhar e servir os negros e negras doentes. Fato é que, para essa família escrava, o caminho para a liberdade passava por serviços prestados por mais de meia década em uma enfermaria. Cabe ressaltar que, ao condicionar concessão da liberdade a um período de trabalho na enfermaria, o barão revelava a importância dada por ele ao estabelecimento e a profunda necessidade de que os serviços ali prestados não fossem interrompidos. Logo, essa necessidade se sobrepunha ao benefício da liberdade.
Os periódicos locais também evidenciaram a existência de hospitais/enfermarias na região ao divulgar anúncios de leilão de bens, um relato de visita de médico, uma fuga de escravo, um anúncio de serviços médicos e um artigo abolicionista que, de maneiras distintas, mencionavam a existência de enfermarias nas fazendas da região. Dada a importância dessas informações na dinâmica de organização da assistência aos cativos, pedimos licença ao leitor para uma descrição pormenorizada.
Em março de 1876, o periódico Pharol publicou, a pedido do visconde de Prados, carta do doutor Luiz de Mello Brandão (12 mar. 1876) tratando da influência do milho na epidemia de febre amarela. Em seus relatos, destaca a visitação a escravos doentes na enfermaria da fazenda do senhor Marcelino de Brito Pereira Andrade.
Em 1884, o mesmo jornal trouxe o anúncio de um farmacêutico oferecendo seus serviços a fazendeiros da região, autoproclamando-se hábil na aplicação de sangrias e no trabalho em enfermarias (Aos Srs. Fazendeiros..., 15 abr. 1884). Não está explícito no texto tratar-se de enfermaria para escravos, mas sendo o anúncio direcionado no seu título aos fazendeiros, em uma região escravista, acreditamos não ser essa dedução fantasiosa. Esse mesmo anúncio foi publicado em algumas edições posteriores. A ênfase nas habilidades relacionadas à enfermaria indica ser essa uma demanda significativa na região, daí receber destaque no texto anunciado.
Em 1888, o Pharol reeditou um artigo originalmente publicado em Taubaté, interior de São Paulo, favorável ao trabalho livre. Entre os vários argumentos abolicionistas apontados pelo artigo, chama atenção o trecho em que salienta: “O trabalho livre assim remunerado dispensa-lhe guardas, despesas com fugas, enfermaria, médico, botica e outras coisas. A diferença é a favor do trabalho livre” (Transformação..., 5 abr. 1888, p.1). Nota-se que o articulista observa a enfermaria, o médico e a botica como elementos essenciais e rotineiros nas fazendas, destacando o peso que produziam sobre os custos dessas unidades.
Em 1883, o Pharol publicou edital do Juízo Municipal divulgando a realização de leilão dos bens penhorados por José Bernardo da Silva Moreira em execução movida contra o comendador José Pereira Darigue Faro e sua mulher. Na descrição e valorização dos bens, nota-se a existência em sua fazenda de uma “casa envidraçada, assoalhada e forrada de pinho com cinco cômodos e dois salões onde serve de enfermaria” avaliada em 1:000$000 (um conto de réis) (Editais, 28 jun. 1883).
Em 1884, o Pharol dá publicidade ao leilão de bens penhorados de José Rodrigues Goulart e esposa em execução hipotecária que lhe moveram Forquim Jappers & Comp. e Araújo Ferraz & Comp., onde consta uma “enfermaria com 60 palmos coberta de telha e assoalhada” (Juízo Municipal, 12 jun. 1884, p.2). Esses anúncios são importantes porque trazem os valores estabelecidos para a enfermaria: como se tratava de um primeiro leilão, o valor foi de quinhentos mil réis (500$000), caindo para quatrocentos mil réis (400$000) na segunda convocatória. Apesar de serem os únicos entre os anúncios a informar o valor específico de uma enfermaria, retratam o valor médio atribuído a esses estabelecimentos na região da Zona da Mata mineira na segunda metade do século XIX.
O Pharol anuncia o leilão dos bens penhorados do comendador Antonio Lopes Coelho e sua mulher em ação movida pelo Banco do Brasil. Encontrava-se entre os bens um “lance de casas com 200 palmos de frente e 30 de fundos coberto com telhas e parte assoalhada servindo de enfermaria, tulhas e paiol” avaliadas em 1:400$000 (um conto e quatrocentos mil réis) (Editais, 2 set. 1882).
Na edição de 13 de junho de 1885, o Pharol deu publicidade ao leilão do espólio de Manoel Ribeiro Ferreira, em processo movido pelo doutor Antero José Lage Barbosa. Também nesse caso, entre os bens relacionados encontrava-se uma “casa com 240 palmos de frente e 25 de fundos servindo de senzala e enfermaria” avaliada em 1:000$ (um conto de réis) (Editais, 13 jun. 1885).
Em março de 1888, o Pharol publicou a execução do Banco do Brasil contra os herdeiros da baronesa de São Mateus. Entre os bens penhorados e sujeitos ao leilão descreveu-se uma “casa de vivenda coberta de telhas, assoalhada e forrada, dividida em muitos compartimentos ... com 23 janelas de frente e duas portas, com enfermaria anexa e quartos para criados” avaliada em 7:000$000 (sete contos de réis). Todos os bens pertenciam à fazenda da Boa Esperança, freguesia da Vargem Grande, município de Juiz de Fora (Editais, 13 mar. 1888).
De todos os exemplos relatados, em apenas um dos anúncios não constava o leilão de escravos. Nos casos em que escravos estavam entre os bens penhorados, os plantéis eram consideráveis, variando entre 50 e 100 escravos leiloados (Editais, 5 jul. 1884; Editais, 24 jun. 1884). Seguindo modelo proposto por Rômulo Andrade (1991), relacionando a propriedade da terra ao número de cativos, todos os casos relatados envolveriam grandes proprietários de terra. Assim, a existência de enfermarias para escravos fazia parte da estrutura do empreendimento escravista e cafeeiro na Zona da Mata mineira na segunda metade do século XIX.
Outra análise pertinente se refere à forma como essas enfermarias eram descritas. Em quatro dos cinco exemplos, vinculam-se a elas características como assoalhos, forros e telhas. Em nenhum dos casos esses edifícios foram apresentados como estando em mal estado de conservação (o que é possível perceber em relação a outros tipos de construções). Por sua valorização, percebe-se que eram instrumentos considerados importantes e que sua presença contribuía para que as propriedades alcançassem valores majorados nos leilões.
O que esses anúncios evidenciam é a inegável existência de equipamentos de assistência à saúde da população cativa, organizados em moldes bem diferentes da Casa de Caridade da cidade de Juiz de Fora. No espaço rural havia botica, médico, enfermeiro e enfermarias/hospitais. Era para o campo que se dirigia o grande fluxo populacional oriundo da diáspora africana, potenciais usuários dos cuidados hospitalares devido às duras condições de trabalho, à ausência de uma malha social de proteção – ainda que novas relações e estratégias de sobrevivência tenham sido inventadas no cativeiro – e ao significado mercantil de uma mulher ou homem escravizado.
Concluímos que os grupos urbanos de Juiz de Fora não mobilizaram esforços para manutenção do hospital urbano, uma vez que as famílias de posses eram proprietárias rurais e nas fazendas dispunham de médico de partido, hospitais e enfermarias. Esse aparato de assistência à saúde fez parte da estruturação plantation escravista, como se pode observar também no Sul dos EUA e na Jamaica (Savitt, 1978; Sheridan, 1985). Portanto, em Juiz de Fora, escravos e agregados eram assistidos pelos médicos de partido nas enfermarias/hospitais rurais, e os pobres urbanos eram providos com outros meios: as esmolas.
As instituições de assistência urbana em Juiz de Fora durante o período imperial não desempenharam a função de manutenção de enfermarias e hospitais de forma que pudessem assistir os doentes excluídos da rede de solidariedade horizontal. Defendemos a tese de que as fazendas, com seus hospitais e enfermarias, formaram um modelo sui generis de cuidado a grupos populacionais atravessados pela experiência do cativeiro. No âmbito dessa pesquisa, não tivemos acesso a dados quantitativos dos atendidos, mas não nos espantaria se os agregados – homens e mulheres livres e pobres – também recebessem atendimento nos hospitais rurais.
No entanto, é no espaço urbano que o problema da pobreza se torna mais visível, e diante das fragilidades da assistência organizada, os pobres se valiam do auxílio informal e das atitudes marcadas pela piedade cristã, a exemplo das esmolas.
A mendicância em Juiz de Fora se tornou tão intensa a ponto de ser questionada nas páginas do jornal Pharol em 1885, na matéria intitulada “A mendicidade”:
Já tivemos ocasião de nos referirmos, por mais de uma vez nas colunas desta folha, ao grande número de indivíduos de ambos os sexos que andam pelas ruas desta cidade implorando pela caridade pública, sem nenhum título que os recomende à compaixão dos seus semelhantes ... Estas considerações, que já por vezes temos feito, foram-nos suscitadas de novo pela enorme quantidade de pedintes que aparecem aos sábados, dia destinado por quase todos à distribuição de esmolas, e perguntamo-nos se não havia um meio de pôr termo a esta especulação por parte de uns, e a essa exibição de chagas e enfermidades por parte de outros? (A mendicidade, 18 jan. 1885).
O jornal Correio de Juiz de Fora, em janeiro de 1886, também bradou contra a “inconveniência” de tolerar o “abuso” da “aluvião de pedintes”. O articulista prontamente relacionou a ação de esmolar “à caudalíssima fonte de especulações criminosas armadas à generosidade e filantropia do povo” (A mendicidade, 31 jan. 1886).
Mesmo com essas indagações, que refletiam a crítica de parte da sociedade a essa prática, ainda assim ela persistiu, alimentada pela busca de uma lógica objetiva de resgate de uma caridade anônima e silenciosa, a despeito das progressivas tentativas de controle. O verbo “esmolar” representa ações diversas que variavam de mamposteiros autorizados a esmolar pelas instituições, no socorro a órfãos e expostos, até o suporte imediato aos flagelados que circulavam pelas ruas. Apesar da expressa proibição de mendigar imposta aos vadios e mendigos e da defesa em relação ao pobre merecedor, a mendicância generalizada enraizou-se na sociedade juiz-forana. Mesmo com diversas medidas de controle, a confusão entre esmolas autorizadas e ilícitas era uma constante. Era comum as esmolas serem concedidas sem qualquer evidência de comprovação da real necessidade do assistido.
A intensidade da prática chegou a tal magnitude na cidade que o Pharol publicou, já na edição de janeiro de 1885 (A mendicidade, 18 jan. 1885), um cálculo dos valores arrecadados com esmolas no município. Considerando, a partir de relatos dos pedintes, uma arrecadação média de 4$000 (quatro mil réis) para um universo especulado em ao menos cem pessoas pedindo pelo menos aos sábados, o periódico concluiu que se despendia mensalmente, em Juiz de Fora, a quantia de 1:600$ (um conto e seiscentos mil réis), ou seja, 19:200$ (dezenove contos e duzentos mil réis) por ano. O jornal considera que, com essa quantia distribuída com critério, “ninguém precisaria estender a mão nesta cidade”.
Os testamentos do barão e da baronesa de Bertioga sustentam essa afirmativa. A baronesa, além das 25 missas com 2$000 (dois mil réis) de esmola, 50 missas para sua alma, 25 para a de seus pais e outras 50 para as de seus escravos, 2:000$ (dois contos de réis) para dez órfãos, ainda destinou 500$000 (quinhentos mil réis) para pobres necessitados, a critério do barão, seu testamenteiro. Por sua vez, o barão de Bertioga determinou 50 missas para sua alma, 25 para a dos pais e outras 25 para a dos irmãos, além de 50 para as dos escravos. Dois contos de réis para órfãs pobres e honestas do município. Cinco mil réis para cada pobre em seu enterro até a quantia de 2:000$ (dois contos) (Travassos, 1993).4
O testamento de dona Maria José de Oliveira Coelho, publicado no Pharol em 13 de fevereiro de 1881, relata que serão distribuídos, no dia 17 de fevereiro de 1881, após a missa de sétimo dia, na matriz da cidade, a quantia de 1:000$ (um conto de réis) em esmolas de 5$000 (cinco mil réis). Nessas circunstâncias, as esmolas atraíam para os funerais e missas toda sorte de necessitados. Essa era uma estratégia dos pobres e uma prática dos ricos, em que a assistência não era mediada por uma instituição de caridade ou de filantropia. Ela se firmava e se retroalimentava na relação direta entre assistido e benemerente.
A organização da assistência à saúde na Zona da Mata mineira durante o Segundo Reinado se organizou de forma díspar entre o campo e a cidade. Nas fazendas existia um aparato de cuidados médicos para a população escravizada e, muito provavelmente, para os agregados e familiares, que mesmo não frequentando o mesmo espaço físico das enfermarias poderiam usufruir do médico em suas visitas regulares à fazenda e dos remédios manipulados na botica. Os custos dessa assistência cabiam ao proprietário rural, mas parte do corpo de enfermagem era oriunda da população cativa.
Enquanto a escravidão persistiu no Brasil, os equipamentos de saúde das cidades de pequeno porte e que orbitavam em torno da agricultura – a elite agrária possuía casa na cidade, mas sua residência era no campo – foram pouco significativos. Em Juiz de Fora, a criação da Casa de Caridade foi mais uma moeda de troca política do que um hospital moderno.
A partir de 1889, no período republicano, o hospital da Santa Casa de Misericórdia – como passou a ser chamada apesar de continuar atrelado à Irmandade da Senhora dos Passos – passou por mudanças significativas. Os novos provedores estavam ligados à medicina, ao direito, à engenharia, ao comércio, à farmácia, à indústria, ao jornalismo e aos investimentos. Embora alguns ainda mantivessem seus vínculos com a produção agrícola, essa não era a principal fonte de renda e prestígio. Ressalta-se que os fazendeiros ainda permaneceram na provedoria, mas deixaram de ser hegemônicos como acontecia no Império. O hospital recebeu investimento material e humano: abriu novas enfermarias e salas de cirurgia com equipamentos modernos, instalou atendimento especializado em obstetrícia e ginecologia, trouxe as irmãs de Santa Catarina para fazerem a administração hospitalar e ampliou exponencialmente o público atendido, composto por trabalhadores nacionais e imigrantes (Fonseca, 2018). Todas essas mudanças estão relacionadas à reconfiguração da assistência pós-abolicionismo. Nesse período, quem precisava de assistência era o trabalhador urbano que resvalava para a pobreza por alguma incapacidade física, moral, intelectual ou velhice. Essa é a definição do pobre merecedor expressa no Código Sanitário de Juiz de Fora (1911), escrito pelo médico Eduardo de Menezes (Fonseca, 2018).
A história da Zona da Mata mineira revela as particularidades de uma região onde a experiência escravista atravessou e redefiniu as formas de organização da assistência à saúde no Brasil do século XIX.