versão impressa ISSN 0066-782X
Arq. Bras. Cardiol. vol.103 no.1 São Paulo jul. 2014
https://doi.org/10.5935/abc.20140101
A partícula de lipoproteína (a) apresenta estrutura semelhante à da LDL, diferenciando-se pela presença da apolipoproteína (a) ligada por uma ponte dissulfeto à apolipoproteína B. Sua síntese ocorre no fígado e sua concentração plasmática varia de < 1 mg a > 1.000 mg/dL, podendo ser dosada de rotina em laboratório clínico por método baseado em anticorpos monoclonais. Acima de 20 a 30 mg/dL o risco de desenvolvimento de doença cardiovascular aumenta em cerca de duas vezes, o que não é válido para os afrodescendentes, que já apresentam normalmente níveis mais altos dessa lipoproteína, do que caucasianos e orientais. Entretanto, o risco para indivíduos negros também deve ser levado em conta. Gênero e idade exercem pouca influência na concentração de lipoproteína (a). A homologia com o plasminogênio, que interfere na cascata fibrinolítica, pode ser um mecanismo da aterogenicidade da lipoproteína (a). Entretanto, a deposição direta na parede da artéria também é um dos mecanismos possíveis, sendo a lipoprotrína (a) mais oxidável do que a LDL. De forma geral estudos prospectivos confirmam a lipoproteína (a) como fator predisponente à aterosclerose. O uso de estatinas não interfere no nível da lipoproteína (a), diferentemente da niacina e da ezetimiba, que promovem sua diminuição, embora essa última dependa de confirmação. Não está demonstrado que a redução de lipoproteína (a) resulte em diminuição de risco de doença arterial coronária. Diante de concentrações mais elevadas de lipoproteína (a) e na falta de medicações mais efetivas e de boa tolerabilidade, deve-se, pelo menos, procurar controlar, de forma mais rigorosa, os outros fatores de risco de doença arterial coronária.
Palavras-Chave: Lipoproteína (a) / metabolismo; Lipoproteínas LDL / ultraestrutura; Fatores de Risco; Doenças Cardiovasculares
The chemical structure of lipoprotein (a) is similar to that of LDL, from which it differs due to the presence of apolipoprotein (a) bound to apo B100 via one disulfide bridge. Lipoprotein (a) is synthesized in the liver and its plasma concentration, which can be determined by use of monoclonal antibody-based methods, ranges from < 1 mg to > 1,000 mg/dL. Lipoprotein (a) levels over 20-30 mg/dL are associated with a two-fold risk of developing coronary artery disease. Usually, black subjects have higher lipoprotein (a) levels that, differently from Caucasians and Orientals, are not related to coronary artery disease. However, the risk of black subjects must be considered. Sex and age have little influence on lipoprotein (a) levels. Lipoprotein (a) homology with plasminogen might lead to interference with the fibrinolytic cascade, accounting for an atherogenic mechanism of that lipoprotein. Nevertheless, direct deposition of lipoprotein (a) on arterial wall is also a possible mechanism, lipoprotein (a) being more prone to oxidation than LDL. Most prospective studies have confirmed lipoprotein (a) as a predisposing factor to atherosclerosis. Statin treatment does not lower lipoprotein (a) levels, differently from niacin and ezetimibe, which tend to reduce lipoprotein (a), although confirmation of ezetimibe effects is pending. The reduction in lipoprotein (a) concentrations has not been demonstrated to reduce the risk for coronary artery disease. Whenever higher lipoprotein (a) concentrations are found, and in the absence of more effective and well-tolerated drugs, a more strict and vigorous control of the other coronary artery disease risk factors should be sought.
Key words: Lipoprotein (a) / metabolism; Lipoproteins, LDL / ultrastructure; Risk Factors; Cardiovascular Diseases
A partícula de Lipoproteína (a) - Lp(a) -, cuja existência foi detectada inicialmente por Berg, em 19631, é constituída por um complexo macromolecular de estrutura esférica de cerca de 25 nm de diâmetro, na faixa de densidade de 1,05 a 1,12 g/mL. A estrutura da Lp(a) assemelha-se à das Lipoproteína de Baixa Densidade (LDL), pelo tamanho e pela composição lipídica das partículas e pela presença da Apolipoproteína B100 (apo B100). A maior diferença estrutural entre as duas é que a Lp(a) apresenta uma segunda proteína, além da apo B, a Apolipoproteína (a) - apo(a) -, que está ligada à apo B100 por meio de interações não covalentes e de uma única ponte dissulfeto. A presença de apo(a), assim, determina as diferenças na densidade e na mobilidade eletroforética entre a LDL e a Lp(a), sendo que o peso molecular dessa glicoproteína varia amplamente, de 400 a 700 kDa. Para comparação, a apo B100 tem peso molecular aproximado de 550 kDa, enquanto o da apo A1 e das apos C's está na faixa de 7 e de 29 kDa, respectivamente2.
Uma descoberta fundamental foi a de que a apo(a) apresenta marcante homologia com o plasminogênio, umas das proteínas do sistema fibrinolítico. A apo(a) é composta por um domínio de protease inativa ou serina-protease, cuja sequência de aminoácidos coincide com a do plasminogênio em 94%. Além deste, há outros dois domínios constituídos de estruturas tridimensionais de cadeia pesada e altamente glicosiladas, chamados kringles3.
O domínio serina-protease da apo(a) apresenta a substituição do aminoácido serina por arginina no sítio de ativação equivalente ao do plasminogênio. Isso impede a conversão da Lp(a) em protease ativa por ação do ativador tecidual do plasminogênio (t-PA), uroquinase ou estreptoquinase, como ocorre com o plasminogênio3.
Dos domínios kringlesda apo(a), um é semelhante ao Kringle V (KV) do plasminogênio, com apenas 9% de substituição de aminoácidos; o outro, o KringleIV (KIV), que está presente apenas uma vez na estrutura do plasminogênio, contém dez diferentes tipos na apo(a) (KIV tipo 1 a 10). Apenas o KIV tipo 2 ocorre de forma repetida na sequência da apo(a) e coincide em cerca de 84% da sequência de aminoácidos do KIV no plasminogênio. Assim, o KV se apresenta como cópia única e o KIV repete-se de 10 a 40 vezes na estrutura da apo(a). O número de repetições do KIV é geneticamente determinado, podendo variar de 12 a 51 vezes, resultando em 34 diferentes isoformas de apo(a)3,4.
Utilizando-se métodos de eletroforese e immunoblotting, foram identificadas seis diferentes alelos para Lp(a): Lp(a)F, Lp(a)B, Lp(a)S1, Lp(a)S2, Lp(a)S3 e Lp(a)S4. As denominações F, S e B para apo(a) foram designadas de acordo com sua mobilidade comparada à mobilidade da apo B100. F vem do inglês "fast", de mobilidade rápida; S, do inglês "slow", de mobilidade lenta; e B é referente à mobilidade similar à da apo B100. A isoforma é determinante na concentração plasmática da Lp(a), pois representa fator limitante na síntese da Lp(a). Proteínas menores são secretadas de maneira mais eficiente do que aquelas de maior peso molecular. Isoformas com menor número de repetições do KIV tipo 2, ou seja, sequências de apo(a) menores, tendem a determinar concentrações mais elevadas da Lp(a) e maior atividade pró-aterotrombogênica4. Há, assim, uma forte correlação inversa do peso molecular das isoformas de apo(a) e a concentração plasmática da Lp(a).
A possível existência de um sétimo alelo, denominado null- Lp(a)0 -, que levaria à ausência da lipoproteína no plasma, não foi confirmada, já que, à medida que foram sendo utilizados métodos mais sensíveis de detecção da Lp(a), foi-se verificando que não existem indivíduos totalmente negativos. Não existem tampouco indivíduos com mais de dois alelos para apo(a)4.
A presença da apo B100 na Lp(a) faz com que essa lipoproteína coprecipite com as LDL nos ensaios atualmente em uso para a separação de lipoproteínas por método de precipitação química. Isso acarreta na interferência nos valores de LDL calculados pela fórmula de Friedewald5. Assim, se a concentração de Lp(a) em um paciente for alta, o cálculo do LDL-colesterol pela fórmula não é exato sem correções que levem em conta a concentração de Lp(a).
O método mais comum para quantificar a Lp(a) consiste na determinação da concentração da apo(a) usando anticorpos monoclonais anti-apo(a). Os primeiros kits comerciais determinavam a Lp(a) por radioimunoensaio ou imunodifusão radial6. Atualmente, são muito utilizados o método de enzima imunoensaio (ELISA) e os métodos baseados em nefelometria ou turbidimetria7. A ampla variação no peso molecular da apo(a) faz com que a relação entre massa e concentração molar varie entre os indivíduos. Quando o método de determinação de Lp(a) utiliza anticorpos que reagem com a região kringleda apo(a), que apresenta grande variabilidade individual, podem ocorrer diferenças na reação não relacionadas à concentração molar. Daí as diferenças quanto aos valores normais plasmáticos de Lp(a) em amostras populacionais diversas. Nesse contexto, há dificuldades na padronização da metodologia para determinação de Lp(a) de forma a permitir uma comparação mais exata dos diversos estudos. Até hoje, ainda estão sendo desenvolvidos novos métodos para determinação da Lp(a).
Apesar das semelhanças estruturais entre a Lp(a) e a LDL, a síntese e o metabolismo da Lp(a), que não foram ainda completamente elucidados, são totalmente independentes da síntese e do metabolismo da LDL. Estudos in vitro demonstram que a síntese da apo(a) ocorre nos hepatócitos, e a associação da mesma com a apo B100 deve ocorrer na superfície celular8. Assim, o fígado tem sido descrito como o principal sítio de síntese de Lp(a). Não há coordenação entre as vias de síntese de apo(a) e de apo B100, tampouco entre a síntese de Lp(a) e a do plasminogênio, que é seu análogo estrutural.
A Lp(a) não é derivada do catabolismo de outra lipoproteína, como ocorre com a LDL9. Em hipertrigliceridêmicos, a Lp(a) está reduzida, provavelmente por aumento do clearanceplasmático da lipoproteína10. No entanto, quando a lipólise das VLDL foi estimulada pela inoculação de heparina durante procedimento de cateterismo em pacientes normolipidêmicos, houve redução dos níveis de triglicérides, sem que houvesse alterações na concentração de Lp(a). Isso confirma que os níveis de Lp(a) não estão ligados à atividade da lipase lipoproteica11.
A maneira pela qual ocorre a captação celular da Lp(a) ainda não está bem estabelecida. Vários estudos demonstraram que a Lp(a) liga-se aos receptores específicos da LDL, embora com menos afinidade. Duas possíveis explicações para essa diferença na afinidade são (1) que alguns domínios da Lp(a) próximos ao domínio de ligação à receptores de LDL estariam cobertos pela apo(a), ou (2) porque a apo(a) não estaria ligada a apo B100 no sítio de ligação do receptor, ocasionando modificações na região de ligação da apo B100. Entretanto, cabe ressaltar que, quando a apo(a) é dissociada da Lp(a) por clivagem das pontes dissulfeto, a capacidade de ligação da lipoproteína aumenta, tornando-se equivalente à das LDL12.
Há evidências de que o receptor da LDL possa não ser tão importante na remoção plasmática da Lp(a). Em grandes estudos clínicos, reportou-se não haver efeito das estatinas sobre a concentração da Lp(a). Como as estatinas induzem superexpressão dos receptores da LDL seria esperada maior remoção da Lp(a) e diminuição dos seus níveis plasmáticos, caso o receptor fosse crucial neste processo. Outros receptores também podem estar envolvidos na captação da Lp(a), como o receptor de asialoglicoproteína, o receptor de megalina e os receptores scavengerdos macrófagos13. A capacidade dos macrófagos de captarem a Lp(a) tem significado importante, já que a captação de lipoproteínas em excesso pelos macrófagos, com sua subsequente transformação em células espumosas, é justamente o principal mecanismo de aterogênese.
Outros estudos demonstraram níveis plasmáticos de Lp(a) elevados em pacientes com hipercolesterolemia familiar heterozigótica, comprovadamente deficientes em receptores de LDL. Levando em consideração que esse aumento é consequência direta de um defeito no receptor que interage com apo B100 da Lp(a), seria de se esperar que o defeito genético na própria apo B100 causasse a mesma situação, como acontece com a LDL; no entanto, essa condição não foi confirmada, uma vez que os níveis plasmáticos de Lp(a) não foram afetados pela mutação da apo B100. Além disso, apenas uma pequena fração de Lp(a) se liga a células de hepatoma via receptor de LDL, e a maior parte da lipoproteína se associa a essas células por outro mecanismo celular14. Portanto, embora o receptor de LDL atue na remoção da Lp(a), seu papel, nesse processo, é limitado.
As experiências realizadas até agora não evidenciaram função fisiológica da Lp(a) no transporte ou na regulação do metabolismo de lipídeos. Até o momento, a Lp(a) permanece conceitualmente apenas como uma "lipoproteína patogênica". Em indivíduos cuja concentração da Lp(a) é apenas residual não foram relatadas deficiências orgânicas ou predisposição para quaisquer doenças15.
No homem, o gene codificador da proteína apo(a), o LPA, foi clonado e sequenciado pela primeira vez em 1987 e apresenta até 70% de homologia com o gene do plasminogênio humano. Assim, o gene LPA está localizado no mesmo cluster do gene do plasminogênio, no braço longo do cromossomo 6 na região 6q2.6-2.73. O LPA é caracterizado por dez variantes diferentes presentes no domínio do KIV e por múltiplas repetições, que variam de 2 a 43, no domínio do KIV tipo 23,4.
Devido a essa impressionante variabilidade genética da apo(a) e, talvez, pelo envolvimento de outros genes ligados à síntese e ao metabolismo da Lp(a), os níveis plasmáticos dessa lipoproteína podem variar mais de mil vezes entre os indivíduos de uma mesma população16. Estimou-se que o LPA possa ser responsável por 91% da variação na concentração da Lp(a). Dessa variação, 69% se devem ao número de repetições do KIV tipo 2 e 22% a outros fatores17.
A frequência alélica varia ainda mais de acordo com a etnia, indicando que o fator racial tem influência importante sobre os níveis de Lp(a). Os níveis plasmáticos de Lp(a) apresentam uma distribuição não gaussiana em indivíduos brancos e orientais, sendo semelhantes nessas duas populações. Na população subsaariana e em afro-americanos, a distribuição é gaussiana e os níveis de Lp(a) são mais elevados, alcançando médias até duas a três vezes superiores às da população caucasiana ou oriental18.
Em estudo com vários grupos étnicos, o polimorfismo da Lp(a) influenciou em 17 a 77% na variação das concentrações de Lp(a)19. Dentre a variação nos níveis de Lp(a), 80% foram decorrentes do número de kringles(razão KIV/KV)20. Em mais de 7 mil indivíduos, divididos em brancos não hispânicos, negros não hispânicos e hispano-americanos, foram analisados 19 polimorfismos. Dentre os 19 polimorfismos, 15 estavam associados aos níveis de Lp(a) em pelo menos uma das subpopulações, seis deles em pelo menos duas e nenhum em todas as três subpopulações21. Esses dados são consistentes com os de outros estudos que demonstram pouco ou nenhum efeito de outros fatores, como gênero e idade, sobre as concentrações de Lp(a)7. O fator genético é o principal responsável por essa variação.
As concentrações plasmáticas de Lp(a) têm caráter hereditário, apresentando grande variação interindividual e praticamente não são alteradas por fatores ambientais, tendendo a se manter constantes ao longo da vida. Na população geral, as concentrações de Lp(a) podem variar de valores < 1 mg/dL a valores > 1.000 mg/dL.
Aumentos nos níveis de Lp(a) podem ser transitórios, quando na presença de processos inflamatórios ou de danos tissulares, como ocorrem com outras proteínas de fase aguda (haptoglobina, a alfa-1-antitripsina e a proteína C-reativa)22. Isso pode acontecer, por exemplo, após episódio de infarto agudo de miocárdio, no qual a Lp(a) aumenta consideravelmente nas primeiras 24 horas, retornando aos valores basais em aproximadamente 30 dias23.
A Lp(a) encontra-se aumentada em doenças de caráter inflamatório crônico, como artrite reumatoide24, lúpus eritematoso sistêmico25 e síndrome da imunodeficiência adquirida26, e em condições como o pós-transplante cardíaco27, insuficiência renal crônica28 e hipertensão arterial pulmonar29. Por outro lado, doenças hepáticas e o uso abusivo de hormônios esteroides diminuem os níveis de Lp(a)28.
Não está bem estabelecida a relação da Lp(a) com o diabetes melito. No que toca ao diabetes melito tipo 1, alguns estudos relataram níveis mais altos de Lp(a)30, o que não foi confirmado por outros31. Resultados conflitantes também foram encontrados no diabetes tipo 2. Em subestudo realizado a partir do San Antonio Heart Study, homens e mulheres diabéticos não apresentaram diferenças nas concentrações de Lp(a) quando comparados aos indivíduos não diabéticos32. Por outro lado, estudo prospectivo em 26.746 mulheres americanas mostrou que houve incidência maior de diabetes melito tipo 2 entre as que tinham níveis mais baixos de Lp(a)33.
Vários mecanismos de participação da Lp(a) no processo de aterogênese têm sido propostos. Um deles consistiria na deposição direta da lipoproteína na parede arterial, como acontece com a LDL e LDL-oxidada. O fato da Lp(a) estar mais sujeita à oxidação do que a própria LDL pode facilitar a captação pelos macrófagos pela via dos receptores scavenger13. Trata-se do mecanismo mais universal de aterogênese, segundo os quais os macrófagos se locupletam do colesterol da LDL e, eventualmente, da Lp(a), e se transformam em células espumosas, precursoras da aterosclerose. Outro mecanismo pró-aterogênico da Lp(a) estaria ligado à correlação inversa entre os níveis da lipoproteína e a reatividade vascular. Nesse caso, o aumento plasmático da Lp(a) seria indutor de disfunção endotelial34.
Há controvérsia sobre a influência dos níveis de Lp(a) e a espessura da placa de ateroma de carótida. Enquanto Kotani e Sakane35 encontraram associação inversa em população japonesa, nenhuma relação entre espessura e nível de Lp(a) foi encontrada por Calmarza e cols.36 em espanhóis.
Outros autores encontraram associação positiva de polimorfismos no gene da Lp(a) e dos níveis da lipoproteína com a incidência de acidente vascular encefálico isquêmico de grandes vasos, doença arterial periférica e aneurisma aórtico abdominal. Não houve associação com a espessura da íntima/média da carótida, mas houve com o número de artérias coronárias com obstrução. Além disso, pacientes com Doença Arterial Coronária (DAC) que apresentam tais polimorfismos estão mais suscetíveis a manifestações ateroscleróticas fora da árvore coronária37.
Têm-se verificado associações entre Lp(a) e citocinas inflamatórias, incluindo Fator de Necrose Tumoral Alfa (TNF-α), Fator de Crescimento Transformador Beta (TGF-β), Interleucina 6 (IL-6) e Proteína Quimioatrativa de Monócitos 1 (MCP-1)38,39. Dessa forma, a participação da Lp(a) na aterogênese, potencialmente, seria multifacetada. Envolveria, além da redução da fibrinólise, agregação plaquetária, indução da expressão de moléculas de adesão, remodelamento vascular via alterações na capacidade proliferativa e migratória das células endoteliais e musculares lisas residentes, modificação oxidativa e formação de células espumosas.
É interessante ressaltar que o gene da apo(a) contém múltiplos elementos de resposta de IL-6, e estudos in vitro demonstraram que a expressão desse gene é aumentada pela IL-6, levando ao acúmulo de partículas de Lp(a)39. Nos dados do estudo LIANCO (sigla do inglês Lipid Analytic Cologne) encontrou-se associação entre o polimorfismo -74G/C de IL-6 e níveis elevados de Lp(a) (≥ 60 mg/dL)40.
Na esteira da descoberta da homologia da apo(a) com o plasminogênio, causou grande excitação no meio científico um mecanismo que ligaria a trombogênese e a aterogênese com as lipoproteínas plasmáticas por meio da Lp(a). Trata-se da hipótese de que a Lp(a) interferiria no sistema de fibrinólise, sugerindo que a Lp(a) compita com o plasminogênio por sítios de ligação a células endoteliais, inibindo a fibrinólise e promovendo trombose intravascular41. Nesse cenário, a Lp(a) seria um elo entre aterogênese e trombogênese, daí o interesse redobrado nesse possível mecanismo.
Uma questão interessante foi levantada por Edelberg e cols.42, que observaram que Lp(a) interfere in vitro com a ação trombolítica do t-PA. No entanto, Santos Filho e cols.43 testaram a hipótese em pacientes submetidos à trombólise pós-infarto agudo do miocárdio com rt-PA e não observaram diferença na frequência de reestenose em pacientes com Lp(a) alta.
Tem sido estudada a possibilidade de haver acúmulo de Lp(a) no estado pós-prandial em pacientes com doença cardiovascular, por competição entre Lp(a) e remanescentes de quilomícron gerados pela absorção de gordura da dieta. Contudo, essa possibilidade foi descartada quando se verificou que os níveis de Lp(a) não se alteraram após a alimentação gordurosa nestes pacientes44.
Estudos transversais realizados até o momento têm confirmado amplamente a associação entre os níveis de Lp(a) e o risco de desenvolver DAC, independente de outros fatores de risco. Kostner e cols.45 estimaram o risco como sendo de 2,3 vezes maior em pacientes com Lp(a) acima de 50 mg/dL, enquanto que Riches e Porter38 calcularam o risco como sendo duas vezes maior com Lp(a) acima de 20 mg/dL. A relação entre Lp(a) e doença coronária e infarto cerebral foi confirmada por Murai e cols.46 em população japonesa e por Rhoads e cols.47 em descendentes de japoneses no Havaí. Nesse último trabalho, foi reportado que o risco em indivíduos abaixo de 60 anos e Lp(a) acima de 30 mg/dL era de 2,5 vezes e se atenuava com o progredir da idade, caindo para 1,6 na faixa de 60 a 69 anos e para 1,2 vez se > 70 anos. Em população brasileira de São Paulo, Maranhão e cols.48 encontraram risco de desenvolvimento de DAC de 2,3 vezes maior com Lp(a) > 25 mg/dL.
Vários estudos prospectivos têm sido publicados e, ao contrário dos estudos transversais, não têm sido tão assertivos em apontar a Lp(a) como fator de risco independente. São um tanto conflitantes e foram reportadas desde fortes associações positivas até ausência completa de associação entre Lp(a) e doenças cardiovasculares. No entanto, a maioria dos trabalhos prospectivos sustenta a hipótese de que a Lp(a) seja, realmente, um fator de risco independente para a doença cardiovascular.
Em um dos primeiros estudos, realizado em Boston, nos Estados Unidos, com quase 15 mil homens, de 40 a 84 anos, não houve prevalência de Lp(a) alta entre os que viriam, subsequentemente, a apresentar infarto agudo de miocárdio49. No estudo prospectivo conduzido em Quebéc, no Canadá, por 5 anos, em 2 mil homens entre 47 a 76 anos, a Lp(a) também não apareceu como fator de risco independente para eventos cardíacos, embora, aparentemente, Lp(a) alta tivesse exacerbado a potência como fatores de risco tanto da hipercolesterolemia quanto da concentração baixa de HDL-colesterol50.
A Lp(a) apareceu como fator de risco independente em população de 6 mil coreanos com DAC; pacientes com Lp(a) alta tiveram pior evolução da doença51. Meta-análise englobando 27 estudos prospectivos envolvendo cerca de 5.500 indivíduos mostrou clara associação independente entre Lp(a) e DAC, apesar de nove desses estudos apresentarem indivíduos com doença preexistente52.
Como vimos, além da DAC, a Lp(a) pode ser também fator de risco de aterosclerose em outros leitos arteriais, como no caso da doença cerebral isquêmica, na qual o risco aparece com valor de corte de Lp(a) de 30 mg/dL 53.
Em estudo prospectivo americano com cerca de 14 mil participantes, observou-se que mulheres caucasianas e homens e mulheres afrodescendentes com Lp(a) alta tiveram maior incidência da doença cerebral isquêmica em um período de 13 anos de observação. Homens caucasianos, no entanto, não apresentaram risco aumentado associado a Lp(a) alta54.
Smolders e cols.55, revendo 31 estudos, tanto transversais quanto prospectivos, englobando cerca de 50 mil indivíduos, sugeriram que Lp(a) elevada pode estar associada com risco para acidente vascular encefálico isquêmico. Estudo de coorte composto por 2.365 indivíduos com DAC, 284 com acidente vascular encefálico isquêmico e 596 com doença arterial periférica demonstrou associação entre níveis aumentados de Lp(a) e eventos futuros das doenças arteriais, mas não com doença cerebral isquêmica. É importante ressaltar que essa associação foi independente dos níveis de LDL-colesterol56.
A aterogênese é comumente fator causal do aneurisma aórtico abdominal, enquanto o aneurisma aórtico torácico é decorrente da dissecção aórtica e não está associado à aterosclerose. Níveis de Lp(a) aparecem mais elevados no aneurisma abdominal do que no aneurisma torácico, o que é consentâneo com o conceito da lipoproteína estar associada à aterogênese57.
Um aspecto importante refere-se aos níveis extremamente altos de Lp(a), se eles podem representar um fator de risco de maior peso. Nesse sentido, estudo prospectivo dinamarquês em mais de 9.000 indivíduos com seguimento de 10 anos mostrou que níveis extremamente elevados de Lp(a), ou seja, ≥ 120 mg/dL, aumentaram de três a quatro vezes mais o risco de DAC58.
Em meta-análise de 40 estudos prospectivos com 58 mil participantes, foi encontrado aumento de duas vezes no risco de desenvolver DAC e acidente vascular encefálico em portadores de isoformas de apo(a) menores, independentemente da concentração de Lp(a) e dos fatores de risco clássicos59.
Outro aspecto importante é o da relação que a Lp(a) possa manter com o gênero. Apesar da maioria dos estudos não apresentar diferença entre os sexos nas concentrações de Lp(a), níveis mais elevados da lipoproteína parecem ser fatores de risco mais importantes no sexo feminino do que no masculino60. O último estudo ARIC (nome do ingês Atherosclerosis Risk in Communities Study), que avaliou Lp(a) como fator de risco, encontrou diferença entre os sexos já na concentração plasmática dessa lipoproteína, sendo maior em mulheres, tanto caucasianas, quanto negras61. Knoflach e cols.62, ao avaliarem fatores de risco para aterosclerose em mulheres jovens, mostraram que os níveis de Lp(a) relacionavam-se com a razão íntima/média carotídea, enquanto que fatores de risco clássicos não tiveram influência sobre esse parâmetro. Em mulheres pós-menopausa, níveis elevados de Lp(a) e triglicérides mostraram-se preditivos da presença de DAC63.
Em negros, as médias de concentração de Lp(a) são acentuadamente altas, de duas a três vezes maiores que em caucasianos e orientais18. Em trabalhos mais antigos, com poder estatístico mais limitado, presumiu-se que a Lp(a) não seria fator preditor de doença cardiovascular em negros. No entanto, em estudo recente com quase 3.500 afro-americanos, encontrou-se maior incidência de eventos cardiovasculares comparando-se a faixa de concentração de Lp(a) mais alta com a mais baixa61.
Na Tabela 1 estão relacionados vários estudos transversais e prospectivos avaliando a Lp(a) como fator de risco de doenças vasculares de natureza aterosclerótica.
Tabela 1 Estudos que avaliaram a lipoproteina (a) - Lp(a) - como fator de risco de doença vascular de natureza aterosclerótica: doença arterial coronária (DAC), infarto agudo do miocárdio (IAM) e acidente vascular encefálico isquêmico (AVEI)
Tipo de estudo/tempo de observação | População | Valor de corte da Lp(a) (mg/dL) | Risco independente ou associação | Manifestação da aterosclerose | Referência |
---|---|---|---|---|---|
Transversal | 183 homens | > 50 | 2,3 vezes maior | IAM | Kostner e cols.45 |
Transversal | 426 japoneses: 268 homens e 158 mulheres | > 17 | Positiva | DAC e AVEI | Murai e cols.46 |
Transversal | 711 homens japoneses no Havaí | > 30 | IAM | Rhoads e cols.47 | |
1,2 vez: >70 anos de idade | |||||
Transversal | 162 brasileiros: 112 homens e 50 mulheres | ≥ 25 | 2,3 vezes maior | DAC | Maranhão e cols.48 |
Prospectivo (5 anos) | 15 mil homens norte-americanos | 30 | Negativa | IAM | Stampfer e cols.49 |
Prospectivo (5 anos) | 2 mil homens canadenses | 30 | Negativa | DAC | Cantin e cols.50 |
Meta-análise (10 anos) | 27 estudos prospectivos, 5.500 indivíduos de ambos os sexos | 20-100 | Positiva | DAC | Danesh e cols.52 |
Retrospectivo (1997-1999) | 182 mulheres brasileiras na pós-menopausa | 2 a 3 vezes maior | DAC obstrutiva | Sposito e cols.63 | |
Prospectivo | 346 homens e 184 mulheres com descendência europeia | 2 vezes maior | DAC Lp(a) 2 vezes mais alta em mulheres | Frohlich e cols.60 | |
Prospectivo (13,5 anos) | 14 mil caucasianos e afrodescendentes de ambos os sexos | 30 | Positiva | AVEI, exceto em homens caucasianos | Ohira e cols.54 |
Meta-análise (1966-2006) | 31 estudos transversais e prospectivos, 50 mil indivíduos de ambos os sexos | ≥ 30 | Positiva | AVEI | Smolders e cols.55 |
Meta-análise (1966-2008) | 2 mil indivíduos de ambos os sexos | Positiva | Aneurisma aórtico abdominal | Takagi e cols.57 | |
Transversal | 205 mulheres jovens (18 a 22 anos de idade) | ≥ 30 | Positiva | Razão íntima-média da carótida | Knoflach e cols.62 |
Prospectivo | 730 caucasianos, negros e hispânicos de ambos os sexos | ≥ 30 | Positiva | AVEI Maior incidência nos homens e negros | Boden-Albala e cols.53 |
Meta-análise | 58 mil indivíduos de ambos os sexos | apo(a) menor | 2 vezes maior | DAC e AVEI Portadores de isoformas menores de apo(a) apresentaram maior risco | Erqou e cols.59 |
Prospectivo | 6 mil coreanos de ambos os sexos | ≥ 20,1 | 1,8 vez maior | DAC Pior evolução da doença | Kwon e cols.51 |
Prospectivo | 2 mil europeus do Reino Unido de ambos os sexos | ≥ 25 | Positiva | Eventos futuros das doenças arteriais: coronária e periférica, exceto na AVEI | Gurdasani e cols.56 |
Prospectivo (20 anos) | 3.467 afro-americanos e 9.851 caucasianos de ambos os sexos | Positiva | Número de eventos cardiovasculares maior em mulheres e com maior incidência na faixa de concentração de Lp(a) mais alta com a mais baixa | Virani e cols.61 | |
≤ 30 e > 30 | |||||
Prospectivo (10 anos) | 9 mil dinamarqueses de ambos os sexos | ≥ 120 | 3 a 4 vezes maior | DAC | Kamstrup e cols.58 |
As intervenções terapêuticas hipolipemiantes tradicionais, como estatinas ou fibratos, não resultam consistentemente em diminuição da concentração de Lp(a). Com o uso da atorvastatina, foram encontradas tanto ausência de efeito sobre a Lp(a), na dose de 20 mg/dia durante 24 semanas64, quanto diminuição dos níveis da lipoproteína em indivíduos hipercolesterolêmicos sem doença65. No estudo duplo-cego e com placebo, utilizando-se doses de 10 ou 40 mg/dia por 12 semanas, a concentração de Lp(a) diminuiu significativamente66. Entre lovastatina, sinvastatina ou genfibrozil, esse último mostrou maior eficácia em diminuir a Lp(a)67.
A ezetimiba reduz os níveis de Lp(a) em até 29%68. Contudo, o uso mais frequente da ezetimiba é em associação com a sinvastatina, a qual não tem efeito aditivo ao da ezetimiba, no que se refere à Lp(a).
Outro composto amplamente utilizado no tratamento de dislipidemia, a niacina, diminui efetivamente os níveis de Lp(a) quando administrada em altas doses. Pacientes que receberam dose de 2 a 4 g/dia de niacina apresentaram uma diminuição nos níveis de Lp(a) de 25 e 38%, respectivamente. Em doses menores (1 g/dia) a niacina não mostrou tamanha efetividade69. O etofibrato, uma droga híbrida, que combina niacina e clofibrato, reduziu os níveis de Lp(a) em 26% na dose de 1 g/dia em pacientes dislipidêmicos tipo IIb70. Pacientes com hiperlipidemia tipos IIa e IIb, que receberam tratamento com neomicina, tiveram seus níveis de Lp(a) diminuídos em 24%, enquanto a associação neomicina-niacina resultou em diminuição de 45%. Esse efeito é conseguido com doses altas de ambas as drogas71.
A niacina Extended-Release (ER) diminuiu os níveis de Lp(a) em pacientes diabéticos com dislipidemia. Tanto a niacina ER quanto a niacina convencional em altas doses são fármacos interessantes na terapia das dislipidemias, já que, além de diminuírem os níveis de LDL-colesterol, aumentam os de HDL-colesterol e diminuem os de Lp(a)72. Entretanto, doses altas dessa droga podem estar associadas a alguns efeitos adversos como enxaquecas, flushing, diarreia, vômito, taquicardia e hepato-toxicidade. A administração da aspirina 30 minutos antes da niacina pode amenizar alguns desses efeitos. Pacientes japoneses com níveis de Lp(a) elevados (> 300 mg/L) apresentaram redução de 20% da Lp(a) com doses baixas de aspirina (81 mg/dia)73. Mulheres com Lp(a) alta e que apresentavam o alelo polimórfico da apo(a) parecem ter se beneficiado mais do tratamento com aspirina do que as não portadoras desse alelo74.
A aférese de LDL também foi capaz de diminuir a concentração de Lp(a) em mais de 50% dos pacientes com hipercolesterolemia familiar75.
Na reposição hormonal, tanto em homens quanto em mulheres, as concentrações de Lp(a) parecem diminuir76, bem como em situação de hipotireoidismo77. Mesmo tendo em vista os efeitos benéficos da terapia estrogênica sobre a Lp(a) e outros lípides plasmáticos, é preciso ter em mente as controvérsias sobre a reposição hormonal, no que concerne ao risco aumentado de certas neoplasias malignas e acidentes tromboembólicos.
Outros agentes possivelmente redutores de níveis de Lp(a) incluem a carnitina-L, uma combinação de lisina-L e ascorbato, os tireomiméticos, os inibidores de CETP e os anticorpos monoclonais anti-PCSK-9 (sigla do inglês Proprotein Convertase Subtilisin/Kexin Type 9), proteína responsável pela degradação do receptor de LDL, e anticorpo tocilizumabe, capaz de bloquear a sinalização de IL-6; estes últimos, ainda em fase experimental75.
O mipomersen, aprovado pelo Food and Drug Administration (FDA) para uso na hipercolesterolemia familiar homozigótica em janeiro de 2013, pode ser promissor também para diminuir os níveis de Lp(a)75. O mipomersen é um oligonucleotídeo antissense, que atua no RNA mensageiro inibindo a síntese de apo B pelo fígado, reduzindo a concentração das lipoproteínas que contêm essa apolipoproteína. Esse medicamento pode reduzir não só o LDL-colesterol quanto a Lp(a), no entanto, a segurança do seu uso ainda não foi estabelecida78.
O metotrexato, imunossupressor e anti-inflamatório usado no tratamento da artrite reumatoide, também reduziu os níveis de Lp(a)79.
Não há, até hoje, uma terapia específica indicada para a diminuição dos níveis de Lp(a). Nesse sentido, ainda se busca o desenvolvimento de novos agentes terapêuticos que possuam uma maior eficácia na redução da concentração dessa lipoproteína com alto potencial pró-aterogênico e, possivelmente, fator de risco para doença cardiovascular.
Quase meio século após a descoberta da Lp(a) por Berg, há pouca dúvida sobre a Lp(a) ser fator de risco independente das doenças cardiovasculares, mas os mecanismos que ligam a Lp(a) à aterogênese ainda estão obscuros. É recomendada aférese de LDL em casos extremos80, no entanto, não existem ainda estudos provando que a diminuição terapêutica da Lp(a) reduza o número de eventos.
Na prática clínica habitual, na falta de medicamentos de boa tolerabilidade e que diminuam efetivamente o nível da Lp(a), valores acima de 25 ou 30 mg/dL devem levar a um tratamento mais enérgico dos outros fatores de risco de DAC.