versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.30 no.12 Rio de Janeiro dez. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00191513
This study analyzed the epidemiological profile of pulmonary tuberculosis from 2007 to 2010 in municipalities (counties) in Mato Grosso do Sul State, Brazil, that border on Paraguay and Bolivia. In the border region, the incidence rate (49.1/100,000 inhabitants), mortality rate (4.0/100,000 inhabitants), and treatment dropout rate (11.3%) were 1.6, 1.8, and 1.5 times higher than in the non-border region. Among indigenous individuals in the border region, the rates for incidence (253.4/100,000 inhabitants), mortality (11.6/100,000 inhabitants), and HIV/TB co-infection (1.9/100,000 inhabitants) were 6.4, 3.2, and 1.9 times higher than in non-indigenous individuals in this region. Living in the border regions was inversely associated with HIV/TB co-infection. Indigenous ethnicity was associated statistically with not abandoning TB treatment. The study concludes that the population residing in these municipalities along the border is exposed to high risk of pulmonary TB and TB mortality and treatment dropout, thus requiring special health surveillance interventions.
Key words: Pulmonary Tuberculosis; South American Indians; Border Areas
Este estudio examinó la magnitud de la tuberculosis pulmonar del 2007 al 2010 en los municipios de Mato Grosso do Sul (Brasil) limítrofes con Paraguay y Bolivia. En la región fronteriza, las tasas de incidencia (49,1/100.000 habitantes), mortalidad (4,0/100.000) y abandono del tratamiento (11,3%) fueron 1,6, 1,8 y 1,5 veces más altas que en la región no fronteriza. En la región fronteriza, las tasas de incidencia (253,4/100.000 habitantes), mortalidad (11,6/100.000) y co-infección por el VIH (1,9/100.000) entre residentes indígenas fueron 6,4, 3,2 y 1,9 veces más altas que en la población no indígena. Vivir en la región fronteriza resultó ser un factor protector contra la co-infección por el VIH. Se identificó asociación entre ser indígena y no abandonar el tratamiento. Los resultados mostraron que la población de estos municipios fronterizos está sujeta a un alto riesgo de enfermedad, muerte y abandono del tratamiento de la tuberculosis pulmonar, lo que requiere acciones de vigilancia de la salud específicas para este contexto.
Palabras-clave: Tuberculosis Pulmonar; Indios Sudamericanos; Áreas Fronterizas
A despeito dos avanços no diagnóstico e tratamento, a tuberculose permanece como um dos principais agravos à saúde em âmbito global1 e como uma das mais importantes causas de morte nos países em desenvolvimento2. Somente em 2012 foram notificados 8,6 milhões de casos novos e 1,3 milhão de mortes, dentre as quais 0,3 milhão associadas ao vírus da imunodeficiência humana (HIV)3. No Brasil, a doença segue o padrão mundial de declínio, embora em alguns segmentos populacionais seus níveis de concentração superem a média nacional. Na população negra, a incidência é o dobro da nacional; na população indígena, é quatro vezes maior do que a do país. Entre os portadores de HIV a incidência é 30 vezes maior do que a nacional. Na população que vive em situação de rua, supera em 50 a 60 vezes a taxa registrada na população geral4.
As fronteiras têm sido historicamente espaços marginais, periféricos e carentes de integração socioeconômica 5, porém vêm passando por profundas transformações, com vistas ao desenvolvimento regional. Nesse contexto, a saúde comparece como elemento vital e estratégico, por constituir importante vetor de integração entre sociedades e cidadãos fronteiriços. Nas fronteiras da América do Sul, a dinamização da economia, o combate integrado à violência, a criação de alternativas de inclusão social, as ações de educação e as questões relativas à segurança nacional são considerados essenciais para o sucesso das políticas de saúde 6.
Localizado na Região Centro-oeste brasileira, Mato Grosso do Sul faz fronteira com a Bolívia e o Paraguai, em uma extensão total de 1.578km, ao longo da qual estão localizados 12 municípios: Antônio João, Aral Moreira, Caracol, Coronel Sapucaia, Japorã, Mundo Novo, Paranhos, Ponta Porã, Porto Murtinho, Sete Quedas, Corumbá e Bela Vista (Figura 1). Segundo o Censo Demográfico de 2010, Mato Grosso do Sul contava com 2.449.024 habitantes, 12,5% dos quais viviam nos municípios fronteiriços e 87,5% nos demais municípios. Na região de fronteira, a população residente era de 305.953 habitantes, 13.524 dos quais (4,4%) se autodeclararam indígenas7.
Figura 1 Municípios de Mato Grosso do Sul, Brasil, situados na linha da fronteira com Paraguai e Bolívia.
Considerando as particularidades ambientais, sociais, econômicas, demográficas e culturais que contribuem para a diversidade das doenças e de seu comportamento em cada região, este estudo se propôs a descrever a magnitude da tuberculose pulmonar no período de 2007-2010 nos 12 municípios sul-mato-grossenses situados na linha de fronteira com o Paraguai e a Bolívia.
Procedeu-se a um estudo epidemiológico retrospectivo, descritivo, de dados secundários e de base populacional de todos os casos e óbitos por tuberculose pulmonar notificados de janeiro de 2007 a dezembro de 2010, ocorridos nos 12 municípios sul-mato-grossenses situados na linha de fronteira com o Paraguai e a Bolívia e nos demais 66 municípios do estado. A coleta dos dados considerou sua distribuição por região (fronteiriça e não fronteiriça) e por raça/cor (indígena e não indígena).
Os dados populacionais utilizados foram obtidos nas estimativas para o período de 2007 a 2009 e no Censo Demográfico de 2010, ambos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Sistema IBGE de Recuperação Automática. Censo Demográfico e Contagem Populacional. http://www.sidra.ibge.gov.br). Para o cálculo da população indígena do estado tomou-se sua contagem expressa nos censos de 2000 e de 2010 e calculou-se sua taxa média de crescimento geométrico estadual para o período 2001-2009. Essa taxa média foi então aplicada a cada município para estimar as suas populações indígenas.
Os dados referentes a casos de tuberculose pulmonar notificados no período de 2007-2010 foram obtidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso do Sul. Foram considerados casos novos as notificações em que a variável "tipo de entrada" estivesse preenchida com a categoria "caso novo" ou "não sabe" e a forma clínica preenchida com a categoria "pulmonar e pulmonar + extrapulmonar". Nesse universo foi avaliada a presença de sorologia "positiva" para HIV e situação de encerramento como "abandono"7. Foram incluídos todos os casos novos pulmonares, independentemente de coinfecção por HIV ou de abandono de tratamento, correspondentes ao período de janeiro de 2007 a dezembro de 2010. Foram excluídos os registros duplicados e aqueles que tiveram "mudança de diagnóstico" como situação de encerramento.
Os registros de óbitos por tuberculose pulmonar foram obtidos no Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso do Sul, considerando-se aqueles registrados no período de 2007-2010 que identificaram como causa a tuberculose respiratória, de classificação CID-10(005) (Classificação Internacional de Doenças - 10a revisão).
Os casos novos, os de coinfecção por HIV, os de abandono do tratamento e os óbitos foram analisados de forma agrupada quanto à classificação em indígenas e não indígenas e segundo a região de residência (fronteira e não fronteira). No grupo não indígena foram incluídas as demais categorias de raça/cor, a saber: branca, negra, amarela, parda e ignorada. No grupo de fronteira foram incluídos os casos residentes nos 12 municípios fronteiriços ao Paraguai ou à Bolívia.
Para o cálculo das taxas de incidência, mortalidade específica e coinfecção por HIV (por 100 mil habitantes), multiplicou-se o número de casos por 100 mil e dividiu-se o resultado pelo total de pessoas/ano de exposição, referente a cada variável analisada e ao período de estudo (2007-2010). Para o abandono de tratamento, expresso em porcentagem, utilizou-se o número de casos multiplicado por 100, sendo o resultado dividido pelo total de casos novos de tuberculose pulmonar notificados em cada grupo ou região analisados. Adotou-se um intervalo de 95% de confiança (IC95%) para todas as taxas. Para a comparação das taxas entre as regiões (fronteira e não fronteira) e grupos populacionais (indígena e não indígena), utilizou-se o teste qui-quadrado para comparação de proporções e cálculo de risco relativo com o respectivo IC95%, seguido de análise estratificada de Mantel-Haenszel com cálculo de risco relativo ajustado e IC95%, a fim de verificar confundimento ou interação entre estas variáveis. Adotou-se um nível de 5% de significância (p ≤ 0,05).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde (CONEP/CNS) (pareceres 141.949/2012 e 507.049/2013, respectivamente).
De 2007-2010 foram notificados 2.981 casos novos e 218 óbitos por tuberculose pulmonar em Mato Grosso do Sul. A investigação sorológica de HIV foi realizada em 1.951 casos (65,4%), com resultado positivo em 253 (8,5%). O abandono de tratamento foi avaliado em todos os casos novos, incluindo aqueles com desfecho ignorado, perfazendo 4% (124/2.981).
Embora nos 12 municípios fronteiriços pesquisados vivam apenas 12,5% da população sul-mato-grossense, neles são registrados aproximadamente 20% dos casos novos de tuberculose pulmonar, mais de 25% dos óbitos por esta causa e abandonos de tratamento, e pouco mais de 4,7% de coinfecção por HIV. Os números absolutos de casos e as taxas por localidade e grupo populacional estão na Table 1. Na região de fronteira, as taxas de incidência (49,1/100 mil hab.), de mortalidade (4,0/100 mil) e de abandono do tratamento (11,3%) foram, respectivamente, 1,6, 1,8 e 1,5 vez maior do que na região não fronteiriça.
Tabela 1 Distribuição de casos, óbitos, coinfecção por HIV e abandono do tratamento da tuberculose pulmonar e taxas médias de incidência, mortalidade específica e de coinfecção por HIV (por 100 mil habitantes) e percentuais de abandono de tratamento, por região e grupo populacional. Mato Grosso do Sul, Brasil, 2007-2010.
Variáveis | Fronteira | Não fronteira | Mato Grosso do Sul | |||
---|---|---|---|---|---|---|
n | Taxa | n | Taxa | n | Taxa | |
Taxa média de incidência de tuberculose pulmonar | ||||||
Indígenas | 131 | 253,4 | 387 | 169,4 | 518 | 184,9 |
Não indígenas | 451 | 39,7 | 2012 | 25,0 | 2463 | 26,8 |
População total | 582 | 49,1 | 2399 | 28,9 | 2981 | 31,5 |
Taxa média de mortalidade específica por tuberculose pulmonar | ||||||
Indígenas | 6 | 11,6 | 25 | 10,9 | 31 | 11,1 |
Não indígenas | 41 | 3,6 | 146 | 1,8 | 187 | 2,0 |
População total | 47 | 4,0 | 171 | 2,1 | 218 | 2,3 |
Taxa média de coinfecção por HIV | ||||||
Indígenas | 1 | 1,9 | 6 | 2,6 | 7 | 2,5 |
Não indígenas | 11 | 1,0 | 235 | 2,9 | 246 | 2,7 |
População total | 12 | 1,0 | 241 | 2,9 | 253 | 2,7 |
Abandono do tratamento de tuberculose pulmonar (%) | ||||||
Indígenas | 7 | 5,3 | 14 | 3,6 | 21 | 4,1 |
Não indígenas | 59 | 13,1 | 180 | 8,9 | 239 | 9,7 |
Total de abandonos | 66 | 11,3 | 194 | 8,1 | 260 | 8,7 |
Nota: dados provenientes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso do Sul, 2007-2010; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (Censos Demográficos 2000 e 2010).
Na população indígena da região de fronteira, as taxas de incidência, mortalidade e coinfecção por HIV foram, respectivamente, 6,4, 3,2 e 1,9 vezes maiores do que na população não indígena desta região, ao passso que a taxa de abandono foi 2,5 vezes menor.
Os intervalos de confiança para as taxas de incidência, mortalidade específica e coinfecção por HIV e para os percentuais de abandono em Mato Grosso do Sul, por região e grupo populacional, estão apresentados na Table 2.
Tabela 2 Taxas médias de incidência, mortalidade específica e coinfecção por HIV (por 100 mil habitantes), percentuais de abandono do tratamento de tuberculose pulmonar e intervalos de 95% de confiança (IC95%), por região e grupo populacional. Mato Grosso do Sul, Brasil, 2007-2010.
Variáveis | Fronteira | Não Fronteira | Mato Grosso do Sul | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Taxa | IC95% | Taxa | IC95% | Taxa | IC95% | |
Taxa média de incidência de tuberculose pulmonar | ||||||
Indígenas | 253,4 | 251,2-255,6 | 169,4 | 168,7-170,1 | 184,9 | 184,2-185,6 |
Não indígenas | 39,7 | 39,6-39,8 | 25,0 | 24,9-25,1 | 26,8 | 26,7-26,9 |
População total | 49,1 | 49,0-49,2 | 28,9 | 28,8-29,0 | 31,5 | 31,0-31,6 |
Taxa média de mortalidade específica por tuberculose pulmonar | ||||||
Indígenas | 11,6 | 11,5-11,7 | 10,9 | 10,8-11,0 | 11,1 | 11,0-11,2 |
Não indígenas | 3,6 | 3,5-3,7 | 1,8 | 1,7-1,9 | 2,0 | 1,9-2,1 |
População total | 4,0 | 3,9-4,1 | 2,1 | 2,0-2,2 | 2,3 | 2,2-2,4 |
Taxa média de coinfecção por HIV | ||||||
Indígenas | 1,9 | 1,8-2,0 | 2,6 | 2,5-2,7 | 2,5 | 2,4-2,6 |
Não indígenas | 1,0 | 0,9-1,1 | 2,9 | 2,8-3,0 | 2,7 | 2,6-2,8 |
População total | 1,0 | 0,9-1,1 | 2,9 | 2,8-3,0 | 2,7 | 2,6-2,8 |
Abandono do tratamento de tuberculose pulmonar (%) | ||||||
Indígenas | 5,3 | 4,5-6,2 | 3,6 | 3,3-3,9 | 4,1 | 3,8-4,4 |
Não indígenas | 13,1 | 11,9-14,2 | 8,9 | 8,6-9,3 | 9,7 | 9,3-10,1 |
Total de abandonos | 11,3 | 10,5-12,2 | 8,1 | 7,8-8,4 | 8,7 | 8,4-9,0 |
Nota: dados provenientes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso do Sul, 2007-2010; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (Censos Demográficos 2000 e 2010).
Os valores de p, na comparação das taxas entre regiões (fronteira e não fronteira) e grupos populacionais (indígena e não indígena), estão na Table 3.
Tabela 3 Riscos relativos brutos e ajustados das taxas médias de incidência e mortalidade específica, coinfecção por HIV (por 100 mil habitantes) e percentuais de abandono do tratamento, por região e grupo populacional. Mato Grosso do Sul, Brasil, 2007-2010.
Variáveis | Taxas | Valor de p | RR bruto (IC95%) | RR ajustado (IC95%) |
---|---|---|---|---|
Taxa média de incidência de tuberculose pulmonar | ||||
Fronteira | 49,1 | < 0,001 | 1,70 (1,55-1,86) | 1,57 (1,43-1,72) * |
Não fronteira | 29,0 | |||
Indígenas | 184,9 | < 0,001 | 6,90 (6,28-7,59) | 6,68 (6,08-7,35) ** |
Não indígenas | 26,8 | |||
Taxa média de mortalidade específica | ||||
Fronteira | 4,0 | < 0,001 | 1,92 (1,39-2,65) | 1,80 (1,31-2,49) * |
Não fronteira | 2,1 | |||
Indígenas | 11,1 | < 0,001 | 5,44 (3,72-7,96) | 5,17 (3,54-7,56) ** |
Não indígenas | 2,0 | |||
Taxa média de coinfecção por HIV | ||||
Fronteira | 1,0 | < 0,001 | 0,35 (0,19-0,62) | 0,35 (0,19-0,62) * |
Não fronteira | 2,9 | |||
Indígenas | 2,5 | 0,859 | 0,93 (0,44-1,98) | 0,98 (0,46-2,07) ** |
Não indígenas | 2,7 | |||
Abandono do tratamento de tuberculose pulmonar (%) | ||||
Fronteira | 11,3 | 0,013 | 1,40 (1,08-1,83) | 1,46 (1,12-1,90) * |
Não fronteira | 8,1 | |||
Indígenas | 4,1 | < 0,001 | 0,42 (0,27-0,65) | 0,41 (0,26-0,63) |
Não indígenas | 9,7 |
IC95%: intervalo de 95% de confiança; RR: risco relativo. Nota: teste qui-quadrado seguido de análise estratificada de Mantel-Haenszel. Não houve confundimento ou interação entre as variáveis "grupo populacional" e "região".
* Estratificado por grupo populacional (indígena e não indígena);
** Estratificado por região (fronteira e não fronteira).
Na população indígena do estado, as taxas de incidência (184,9/100 mil habitantes) e de mortalidade (11,1/100 mil habitantes) foram, respectivamente, 6,7 e 5,2 vezes maiores do que na população não indígena. A taxa de abandono (9,7%) entre os não indígenas foi maior do que entre os indígenas, com diferença estatisticamente significativa (p < 0,001).
Estar na região de fronteira foi fator de proteção contra coinfecção por HIV.
Constatou-se associação entre ser indígena e não abandonar o tratamento de tuberculose pulmonar, ao passo que não foi verificada associação entre ser ou não indígena e coinfeção por HIV.
O conhecimento da relação entre eventos de saúde e doença e o espaço geográfico é essencial para o adequado diagnóstico da situação de saúde, permitindo o desenvolvimento de ações eficazes para o controle de doenças. Os diferentes lugares se configuram como resultados de diferentes acúmulos de situações históricas, ambientais e sociais, que promovem condições particulares para a produção de doenças8. No caso da tuberculose, focalizar a sua distribuição em duas regiões do estado (fronteiriça e não fronteiriça) permitiu constatar a existência de uma área crítica, evidenciando elementos que podem contribuir para a formulação de propostas de intervenção mais efetivas, a exemplo dos achados de um estudo sobre distribuição espacial realizado em Ribeirão Preto, São Paulo9.
Em Mato Grosso do Sul, evidenciou-se uma taxa de incidência de tuberculose pulmonar de 31,5/100 mil habitantes. Considerando-se que em 2010 a taxa nacional para todas as formas de tuberculose foi de 37,7/100 mil e que a tuberculose pulmonar foi responsável por cerca de 85,9% deste total10, estima-se que a taxa de incidência média no território nacional seja de 32,4/100 mil habitantes, superior portanto à de Mato Grosso do Sul. Similarmente, verificou-se que a taxa estadual foi menor do que as encontradas em outras 12 unidades federadas, figurando o Estado do Rio de Janeiro em primeiro lugar, com 60,7/100 mil habitantes 10. Mesmo na Região Centro-oeste, as taxas de incidência também estão distantes de forma significativa entre as quatro unidades da federação que a compõe, tendo o Distrito Federal a menor delas (9,7/100 mil)10. Essa distribuição heterogênea foi também observada em Mato Grosso do Sul: na região fronteiriça, a incidência, de 49,1/100 mil habitantes, foi 1,6 vez superior à verificada na região não fronteiriça.
A faixa de fronteira brasileira configura-se como pouco desenvolvida, historicamente abandonada pelo Estado e marcada por dificuldades de acesso a bens e serviços públicos, por falta de coesão social e por inobservância de condições de cidadania6. Na linha da fronteira internacional de Mato Grosso do Sul, esse retardo decorre do modelo tradicional e anacrônico de ocupação extensiva, primitiva e predatória de seus recursos naturais11. Peculiaridades territoriais e históricas que remontam ao século XVI fizeram com que a região se mantivesse à margem do controle estatal até o século XIX, dificultado tanto pela extensão territorial quanto pela baixa densidade populacional, além da existência de conflitos com populações indígenas. A despeito de sua inclusão nas políticas públicas em tempos recentes, apresenta ainda defasagem nos indicadores de desenvolvimento humano, usualmente baixos 12.
Os municípios fronteiriços de Mato Grosso do Sul, segundo Peiter13, caracterizam-se pela combinação de elevada incidência de tuberculose e AIDS, e carência de atendimento de saúde em ambos os lados da fronteira, com fluxos transfronteiriços constantes e/ou presença de populações indígenas vulneráveis13.
Na Bolívia, a taxa de tuberculose pulmonar foi de 59,9/100 mil habitantes em 201014, evidenciando o elevado risco de adoecimento da população que transita, em grande fluxo, entre esse país e o Município de Corumbá, seja com destino a outras localidades ou para desenvolver atividades ocupacionais diárias, aumentando o risco de propagação. Outro estudo revelou que os bolivianos que passaram a residir e trabalhar no estado têm alta taxa de adoecimento por tuberculose, o que contribui para manter elevada a taxa nos locais em que passaram a residir15.
No Paraguai, a taxa de incidência de todas as formas de tuberculose foi de 32,8/100 mil habitantes em 2010; a de incidência de infecção por HIV, por sua vez, foi de 15,1/100 mil em 2009 14. A influência da situação de fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai se destaca nas cidades gêmeas de Ponta Porã/Pedro Juan Caballero e Coronel Sapucaia/Capitán Bado, não só em decorrência do livre acesso binacional, das atividades econômicas comuns e do turismo de compras em Pedro Juan Caballero, mas também por razões de moradia, trabalho e busca de serviços e de assistência, tanto por brasileiros quanto por paraguaios e cidadãos com dupla cidadania 16. Esse livre trânsito entre as cidades gêmeas não impede que barreiras de acesso aos serviços de saúde dificultem o diagnóstico da tuberculose. Na fronteira Brasil/Paraguai/Argentina, Silva-Sobrinho et al.17 identificaram vários fatores dificultantes, incluindo diferenças nos sistemas de saúde (com estruturas, processos e resultados diferentes) e aspectos antropológicos específicos das populações envolvidas.
Estudo utilizando dados do suplemento saúde da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2008, sobre autorrelatos de tuberculose e determinantes sociais para regiões metropolitanas do Brasil, constatou associação entre renda inferior a meio salário mínimo por membro da família e ocorrência de tuberculose18. Os autores concluíram que a privação e as barreiras de acesso a recursos básicos constituíram os fatores mais importantes para a ocorrência da doença.
Um estudo comparativo entre condições de vida e distribuição da carga da tuberculose em bairros de Ribeirão Preto, evidenciou que as áreas com maior número de casos coincidiram com as de condições de vida baixa e intermediária, sugerindo a existência de bolsões de pobreza distribuídos nos mais diversos bairros do município19.
Outro aspecto relevante diz respeito às características étnicas, visto que Mato Grosso do Sul abriga a segunda maior população indígena do país, presente na maioria dos municípios e perfazendo 4,3% da população da linha de fronteira e 2,8% nos demais municípios. Verifica-se taxa de incidência 6,7 vezes maior do que entre os não indígenas, havendo associação significativa entre ser indígena e ter tuberculose pulmonar, corroborando os achados de Cunha et al.20 com base na genotipagem de Mycobacterium tuberculosis. Esses autores constataram elevada taxa de transmissão recente nessa população e vínculo epidemiológico estabelecido entre 30% dos casos, confirmando a propagação interpessoal da doença. Inúmeros trabalhos apontam maior vulnerabilidade dos povos indígenas ao adoecimento por tuberculose em comparação com outros segmentos da população 21 , 22 , 23 , 24 , 25, o que se agrava frente às condições de pobreza, falta ou limitação de acesso aos serviços de saúde, uso abusivo de álcool, deficiências nutricionais e presença de comorbidades26 , 27.
Os achados da nossa pesquisa são coerentes com uma revisão sobre a tuberculose em indígenas empreendida globalmente. Tal estudo revelou que a carga da tuberculose é elevada e desproporcional, com grande variação entre grupos e regiões. Os grupos indígenas com maior carga da doença estão localizados em pequenas regiões da América Latina28.
Embora a taxa de incidência de tuberculose pulmonar em Mato Grosso do Sul seja próxima da nacional11, indicando risco de adoecimento semelhante na população brasileira e na sul-mato-grossense, a avaliação de universos menores e populações distintas evidenciou a região de fronteira do estado e a população indígena como sendo a de maior risco de adoecimento e morte por tuberculose pulmonar.
Melhorias nas condições sanitárias e das ações do Programa de Controle da Tuberculose reduziram o risco de infecção em muitos países. No entanto, o retardo no diagnóstico aumenta a gravidade da doença e potencializa a disseminação da infecção na comunidade, elevando a mortalidade29 , 30.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS)31, em 2010 a taxa de mortalidade por "todas as formas" de tuberculose foi de 2,6/100 mil habitantes no Brasil, 4,2/100 mil no Paraguai e 20/100 mil na Bolívia, em contraste com 2,2/100 mil no continente americano. Em vista da proximidade geográfica com o Paraguai e a Bolívia, os municípios situados na linha de fronteira focalizados em nosso trabalho apresentaram taxa de mortalidade de 4,0/100 mil habitantes que, embora restringindo-se às formas pulmonares, aproximaram-se dos verificados no Paraguai.
A mortalidade por tuberculose pulmonar em Mato Grosso do Sul (2,3/100 mil habitantes) foi portanto menor do que a registrada no Brasil para todas as formas da doença no período de 2001 a 2010, embora superando as taxas de oito estados brasileiros neste último ano10.
As discrepâncias observadas entre as taxas da região de fronteira e da área de não fronteira e entre a população indígena e a não indígena foram estatisticamente significativas (p < 0,001), indicando que a população sul-mato-grossense está sujeita a elevado risco de morte por tuberculose, 1,8 vez maior na zona fronteiriça do que nos demais municípios e 5,2 vezes maior em indígenas do que em não indígenas. Esses resultados são compatíveis com os obtidos para a população indígena do Município de São Gabriel da Cachoeira, na linha de fronteira com a Colômbia e a Venezuela, onde a mortalidade por todas as formas de tuberculose alcançou 13,24/100 mil habitantes no período de 1997 a 200732. Elevadas taxas de mortalidade na população indígena podem ser atribuídas às condições de vida, principalmente quando é alta a densidade intradomiciliar, além das condições nutricionais e sociossanitárias precárias e das deficiências nas ações de controle33 , 34 , 35 , 36. Em muitas localidades de fronteira, apesar da contiguidade territorial, operam sistemas de saúde diferentes37 , 38. A implementação de estratégias de saúde que visem a integrá-los é viável no que diz respeito a ações básicas de saúde 38, o que contribuiria para reduzir a mortalidade decorrente das dificuldades de acesso aos serviços de atenção básica.
Os municípios situados na linha da fronteira internacional de Mato Grosso do Sul merecem receber intervenções de programas governamentais que não se limitem às ações de controle da doença. Requerem-se programas que resultem em redução das desigualdades sociais, permitindo alcançar a diminuição almejada nos indicadores da doença, quebrando o ciclo que alimenta a pobreza e a exclusão social, tendo-se em vista o impacto negativo exercido pela tuberculose no crescimento econômico e no desenvolvimento social do estado e da Região Centro-oeste39.
A infecção por HIV não só tem contribuído para um crescente número de casos de tuberculose como também tem sido um dos principais fatores para a elevação da mortalidade entre pacientes coinfectados31.
A testagem do HIV em Mato Grosso do Sul alcançou, no período investigado, 60%, variando entre os municípios de fronteira de 30% a 100%, com média inferior a 50%. Em dois municípios que responderam por 58% dos casos de tuberculose pulmonar da região, a investigação do HIV foi inferior a 40%. Tanto na linha de fronteira como na região não fronteiriça, a coinfecção por HIV esteve presente em 2,5/100 mil habitantes indígenas, índice este obtido em investigação de mais de 50% dos casos de tuberculose pulmonar registrados entre indígenas. Tal achado é preocupante, e provavelmente se verifique também em outras comunidades indígenas do país, permanecendo subdetectado em vista do baixo índice de investigação (10%)25 , 32.
Apesar dessas variações, a taxa estadual de coinfecção por HIV foi de 2,7/100 mil habitantes, embora menor na região de fronteira (1,0/100 mil). Em 2010, as taxas para todas as formas de tuberculose foram de 3,2 e 3,7/100 mil em Mato Grosso do Sul e no Brasil, respectivamente4. Segundo dados da OMS, em 2010 essa taxa foi inferior a 1/100 mil no Paraguai, de 4,5/100 mil na Bolívia e de 3,7/100 mil nas Américas31. Na linha de fronteira pesquisada no presente trabalho, essa taxa é provavelmente menor, considerando-se que os dados utilizados se restringiram aos casos de tuberculose pulmonar e que no Brasil as formas extrapulmonares representaram aproximadamente 14% dos casos novos10.
Em nosso estudo, a maior mortalidade verificada entre residentes na linha de fronteira parece não decorrer da coinfecção com HIV, corroborando análises estatísticas que indicam que morar na região de fronteira constitui fator de proteção contra esta comorbidade.
No entanto, o agravamento das condições sociais e econômicas resulta em degradação significativa das condições de vida, aumentando a vulnerabilidade e consequentemente o risco de adoecimento por tuberculose e HIV40, havendo a necessidade de que a ocorrência dessa comorbidade na região de fronteira internacional de Mato Grosso do Sul seja amplamente investigada entre indivíduos com tuberculose.
Ações que visem ao diagnóstico precoce de HIV e à prevenção do adoecimento por tuberculose em populações pobres, com acesso limitado a serviços de saúde, não serão bem-sucedidas caso não se aplique uma abordagem integrada que busque reduzir as desigualdades sociais subjacentes 41.
A adesão ao tratamento da tuberculose é um processo multidimensional, determinado pela inter-relação de fatores pertinentes ao indivíduo, à doença, às condições socioeconômicas, ao tratamento propriamente dito, ao sistema de saúde e aos profissionais31.
Embora as taxas de abandono de tratamento em Mato Grosso do Sul tenham superado a meta preconizada pela OMS (máximo de 5%)3, e mais pronunciadamente na região de fronteira (abandono 1,5 vez maior do que na região não fronteiriça), na população indígena verificou-se taxa de abandono próxima à máxima preconizada.
O elevado abandono (13,1%) na população não indígena da fronteira pode advir de dificuldades na adesão ao tratamento, incluindo fatores como tabagismo, uso de drogas e bebidas alcoólicas, baixa escolaridade, efeitos adversos dos agentes quimioterápicos, coinfecção por HIV e abandono prévio, além de outras desvantagens socioeconômicas 42. Na população indígena, a despeito da precariedade das condições socioeconômicas e outros agravantes, a cobertura oferecida pela Estratégia Saúde da Família (ESF) e pela ampliação do Tratamento Diretamente Observado (TDO) tem sido mostrado efetiva35 , 36 , o que possivelmente explica a associação entre ser indígena e não abandonar o tratamento de tuberculose pulmonar. Esse sucesso pode estar associado à adequada infraestrutura dos serviços ofertados pelo Distrito Sanitário Especial Indígena de Mato Grosso do Sul (DSEI-MS), à disponibilidade de recursos humanos (em termos de qualificação, número suficiente e baixa rotatividade) e ao envolvimento da comunidade nas ações de controle da doença 43.
O sucesso no tratamento está diretamente relacionado com um melhor desempenho do Programa de Controle da Tuberculose, o que significa que pacientes em TDO que recebem acompanhamento adequado ao longo do curso terapêutico apresentam maiores índices de cura, menor abandono dos serviços de saúde e me-nor risco de evolução para complicações e óbitos36 , 44 , 45.
Isso foi confirmado em estudos sobre a população indígena do Amazonas39, em que deficiências de serviços no acompanhamento sistemático dos casos elevaram em quase 12 vezes os índices de abandono do tratamento, em comparação com indivíduos que foram acompanhados com baciloscopias aos dois, quatro e seis meses de tratamento 25 , 32.
Nos municípios situados na linha de fronteira de Mato Grosso do Sul, o abandono do tratamento deve ser avaliado sob diferentes aspectos: endereços imprecisos ou situados fora da jurisdição brasileira, local de trabalho diferindo do local de moradia, residência temporária e dificuldades de acesso a serviços para acompanhamento do tratamento. Na tríplice fronteira Brasil/Paraguai/Argentina, a organização da atenção básica que atende à população adstrita não facilitou o dignóstico precoce da tuberculose. Nessas circunstâncias, a propalada equidade torna-se de difícil dimensionamento, impossibilitando adscrever toda a clientela em um espaço delimitado e tornando parcial o alcance na atenção primária em saúde 17. A cobertura pela ESF mostrou-se insuficiente para assegurar a toda a população uma interação mais próxima e duradoura entre usuários e serviços, com vínculo e acolhimento. Aponta-se a necessidade de políticas específicas para as regiões de fronteira que garantam o direito universal à saúde, por meio de capacitação de recursos humanos e aporte financeiro para a organização dos serviços para o adequado enfrentamento da tuberculose nas Américas17.
Os resultados obtidos devem ser considerados tendo-se em conta as limitações próprias da vigilância, como a subnotificação de casos e óbitos, e as inconsistências entre as bases de dados utilizadas, assim como o fato de terem sido analisados somente casos de tuberculose pulmonar. No entanto, os achados possibilitaram conhecer a situação epidemiológica da tuberculose pulmonar em Mato Grosso do Sul, permitindo identificar a área e a população em que o risco de adoecimento é maior, bem como avaliar de forma indireta a qualidade da assistência à população acometida por tuberculose pulmonar.
Conclui-se que em Mato Grosso do Sul a população que reside na região de fronteira encontra-se mais afetada por tuberculose pulmonar e com maior risco de abandoar o tratamento e morrer pela doença. Indivíduos indígenas apresentam maior risco de adoecer e morrer por tuberculose pulmonar, a despeito do menor abandono de tratamento, ao passo que a população não indígena apresenta maior coinfecção por HIV e maior grau de abandono do tratamento. Estar na região de fronteira é fator de proteção contra coinfecção por HIV. Não se constatou associação entre ser ou não indígena e coinfeção por HIV.
A tuberculose pulmonar é um problema de saúde pública em Mato Grosso do Sul, com maior magnitude nos municípios da fronteira internacional, o que salienta a necessidade de se empreenderem outras investigações que não só ampliem, mas aprofundem o conhecimento sobre fatores associados ao abandono do tratamento por indivíduos não indígenas, além de focalizarem outros preditores de morbimortalidade.
Para tanto, faz-se necessário ter em conta as peculiaridades locais e reorganizar as ações de vigilância em saúde considerando a sua complexidade, para efetivo gerenciamento da prevenção e do controle. É necessário também que as autoridades sanitárias elaborem e incorporem estratégias específicas e integradas que visem ao equacionamento desse importante e negligenciado problema de saúde pública.