versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.83 no.6 São Paulo nov./dez. 2017
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2016.09.004
Uma malformação arteriovenosa (MAV) é uma conexão anormal entre uma ou mais artérias e veias, ignora o sistema capilar.1 Na maioria dos casos, a MAV surge a partir da zona intracraniana, mas ocasionalmente tem origem nos vasos extracranianos.2 Em uma revisão retrospectiva de 81 pacientes com MAV da cabeça e pescoço, o local mais comum foi a bochecha (31%), seguida por uma das orelhas (16%).3 A MAV quase sempre está presente ao nascimento, mas se manifesta mais tardiamente na vida.
Aqui, relatamos um caso incomum de MAV auricular originária da artéria auricular posterior de início tardio. Além disso, uma revisão abrangente da literatura nos possibilita discutir os papéis desempenhados por imagem no diagnóstico e tratamento de MAV.
Ao fazer pesquisas no PubMed (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/), aderiu-se à diretriz do Prisma (Itens de relatório preferidos para revisões sistemáticas e metanálises), para identificar todos os estudos sobre MAV da orelha externa.4 As palavras-chave usadas foram "malformação arteriovenosa" e "orelha" e a busca foi limitada a artigos no idioma inglês. MAV provenientes do meato auditivo externo ou das áreas pré ou retroauriculares foram excluídas.
Tratamos um homem de 60 anos com MAV auricular do lado direito. O estudo foi aprovado pelo conselho de revisão institucional do Instituto de Pesquisa Clínica em nosso centro (B-1601-329-002). A revisão da literatura identificou 52 pacientes com MAV descritos em 11 relatos (dez relatos de casos e uma revisão retrospectiva). Os dez relatos de casos trataram de 11 casos de AVM auricular e a única revisão analisada, 41 casos. As principais queixas, duração dos sintomas, eventos que agravaram as MAV e história de sangramento AVM, espontâneo foram analisadas.
A lateralidade, localização e extensão da MAV foram investigadas. Várias modalidades de diagnóstico por imagem, inclusive ultrassonografia com Doppler (SD), angiotomografia do osso temporal (ATCOT), angiografia por ressonância magnética (ARM) e/ou angiografia cerebral transfemoral (ATCTF), foram empregadas em casos individuais e os achados das modalidades de diagnóstico-chave foram revisados. Em pacientes que se submeteram a angiografia diagnóstica, resumiram-se às principais artérias e aos vasos nutrizes.
As opções de tratamento de MAV incluíram observação, embolização, excisão de lesão ou ressecção auricular. Após o tratamento, a condição clínica foi descrita como controlada, melhorada, persistente ou agravada. Também exploramos a aplicação de procedimentos de reconstrução, como enxerto de pele de espessura parcial (EPEP) e reconstrução auricular total. As complicações pós-operatórias, durações de acompanhamento e estado final foram revisados.
Homem de 60 anos chegou ao departamento de emergência com sangramento espontâneo maciço da orelha direita. Tinha uma história de edema recorrente da aurícula direita e zumbido pulsátil. Três anos antes, o paciente já havia sido atendido na nossa clínica com edema auricular recorrente e fora diagnosticado com um oto-hematoma, devido ao aspecto da aurícula, semelhante à couve-flor.
Ao exame físico, a aurícula direita exibiu edema excessivo e mudança de cor (fig. 1A). A membrana timpânica e o meato acústico externo encontravam-se normais. ATCOT revelou alargamento da hélice direita e uma lesão vascular emaranhada (fig. 1B). Suspeitou-se de MAV auricular, e uma embolização transarterial com ACTF foi feita. A artéria principal de alimentação da MAV originava-se da artéria auricular posterior, que foi completamente embolizada com cola (fig. 2A). Após a embolização, o sangramento foi controlado, mas houve necrose isquêmica da pele auricular (fig. 2B e 2C). Duas semanas depois, a fronteira da pele necrosada tornou-se delimitada (fig. 3A), e, então, foi planejada a excisão total da lesão.
Figura 1 Achados macroscópicos e de angiotomografia de osso temporal na orelha de um homem de 60 anos, como registrado na sala de emergência: (A) O paciente apresentou edema na orelha e sangramento maciço espontâneo; (B) Angiotomografia de osso temporal revelou uma lesão emaranhada vascular auricular do lado direito (seta branca).
Figura 2 Embolização terapêutica pré-operatória com angiografia cerebral transfemoral e achados macroscópicos na orelha três dias após a embolização: (A) Angiografia cerebral transfemoral revelou vasos tortuosos grandes e inúmeros vasos pequenos. O principal vaso de alimentação da malformação arteriovenosa originou-se da artéria auricular posterior (seta preta) e foi completamente ocluído com cola; (B) e (C) Após embolização, o sangramento parou, mas a necrose isquêmica da pele evoluiu.
Figura 3 Achados macroscópicos da orelha em duas semanas após embolização e excisão total da malformação arteriovenosa. (A) Duas semanas após a embolização transarterial, a fronteira da lesão necrosada da pele tornou-se distinta; (B) A pele necrosada e a lesão da malformação arteriovenosa foi excisada sob anestesia local. As dimensões da lesão eram de 4,8 × 1,2 × 1,2 cm3; (C) A aurícula foi fechada sob tensão mínima.
Sob anestesia local, fez-se uma incisão ao longo do plano vertical da aurícula direita e a lesão de MAV foi totalmente ressecada (fig. 3B). A pele necrosada adjacente foi removida e fez-se fechamento primário (fig. 3C). O paciente recuperou-se sem quaisquer complicações. Aos seis meses de pós-operatório, a aurícula estava bem cicatrizada, sem qualquer evidência de recorrência.
A tabela 1 resume os achados de 12 estudos em 53 casos de MAV auricular.1,5,6 Dos 11 relatos de casos, sete eram homens e quatro mulheres, com média de 21 (15-45) anos. Na revisão retrospectiva de 41 casos, a predominância entre os sexos não foi mencionada e a idade média foi de 26 (1-55) anos. As queixas principais foram edema da orelha, zumbido pulsátil, dor intermitente, perda auditiva e/ou sangramento espontâneo profuso. Cerca de dois terços dos pacientes relataram que seus sintomas começaram em uma idade muito jovem. Sete pacientes relataram que suas MAV se tornaram agravadas durante a puberdade e seis tinham histórias de trauma.
Tabela 1 Resumo de casos que mostra malformação arteriovenosa da orelha externa a partir de literaturas anteriores relatadas e o presente estudo
Ramadass T (2000)9 | Pham TH (2001)12 | Wu JK (2005)5 | Meher R (2008)11 | Saxena SK (2008)10 | |||
N° de pacientes | 1 | 1 | 41 | 2 | 1 | ||
Idade | 25An | 41An | 26An (1A-55A) | 16An, 22An | 21An | ||
Sexo | M | M | Não descrito | M, F | F | ||
Nacionalidade | Bangladesh | EUA | EUA e França | Índia | Índia | ||
Queixa principal | Edema de orelha, sangramento profuso | Edema de orelha, ZP intermitente, sangramento | ZP (51,2%), Sangramento (41,5%), Dor (29,3%), Ruído/tremor (24,4%) | Pct.1: dor intermitente/Pct.2: Edema de orelha, ZP | Edema de orelha, ZP | ||
Duração do sintoma | 7An | 6An | 10An, 15An | ||||
História de sangramento | Várias vezes | Várias vezes | Pct.2: 2 vezes | Nenhum | |||
Local da lesão | Aurícula D | Aurícula E | Aurícula e envolvimento extra-auricular (Retroauricular: 46,3%, Pescoço: 22%, Nenhum: 22%) |
Aurícula D | Aurícula D | ||
Exame diagnóstico importante/achados | A/vasos aumentados e tortuosos | A/rede difusa de desvios | A e/ou RM: 65,9% | Pct.1: SD/áreas anecoicas dilatadas múltiplas, Pct.2: ARM/estruturas serpiginosas aumentadas | A/desvios difusos com ATS | ||
Principais vasos de alimentação | AAP, AO | AAP, ATS, AO | AAP, ATS, AO | Pct.2: AAP, ATS | ATS | ||
Tratamento | Excisão e EPEP, elevação da orelha após 4M | Excisão e EPEP após embolização | Observação (n = 12; 29,3%), Embolização (n = 9; 21,9%), ressecção auricular com embolização (n=20, 48.8%) | Pct.1,2: Excisão e EPEP | Falha de embolização, excisão após ligação da artéria de alimentação | ||
Duração do acompanhamento/estado final | 4M/acompanhamento perdido após 2ª operação | 2An/sem recorrência | 5An (1-19An)/20 pacientes com amputação: controlado (n = 16), melhorado (n = 3), persistente (n = 1) | 3An/sem recorrência | |||
Woo HJ (2008)13 | Whitty LA (2009)8 | Prasad KC (2011)14 | Goel A (2011)15 | Meena BK (2013)1 | Dixit SG (2013)6 | Kim SH (este estudo) | |
N° de pacientes | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 |
Idade | 20An | 15An | 45An | 22An | 21An | 21An | 60An |
Sexo | M | M | M | F | F | M | M |
Nacionalidade | Coreia | EUA | Índia | Índia | Índia | Índia | Coreia |
Queixa principal | ZP | Edema de orelha, dor intermitente | Edema de orelha | Edema de orelha, ZP | Edema de orelha, ZP | Edema de orelha | Edema de orelha, sangramento maciço, ZP |
Duração do sintoma | 7M | 2An | 2-3An | 4An | 1An | Desde o nascimento | 3A |
História de sangramento | Nenhuma | 2 vezes | 2 vezes | Nenhuma | |||
Local da lesão | Aurícula E | Aurícula E | Aurícula D | Aurícula E | Aurícula D | ||
Exame diagnóstico importante/achados | RM/sinal anormal expressando intensidade da lesão | Ausculta/ruído audível | A/MAV lesão e AAP aneurisma | SD | SD,ATC/estruturas serpiginosas aumentadas | ARM/vaso tortuoso anormal | ATC/lesão emaranhada vascular interna |
Principais vasos de alimentação | AAP, ATS | AAP | AAP, ATS | AAP | AAP | ||
Tratamento | Falha na embolização, excisão | Excisão | Ligação de vaso e excisão de lesão | Excisão e EPEP | Excisão | Embolização sob abordagem externa | Excisão após embolização |
Duração do acompanhamento/estado final | 2A/sem recorrência | 1M/sem recorrência | 2A/sem recorrência | 3M/sem recorrência |
A, angiografia; AAP, artéria auricular posterior; An, ano; AO, artéria occipital; ARM, angiografia por ressonância magnética; ATC, angiotomografia; ATS, artéria temporal superficial; D, direita; E, esquerda; EPEP, enxerto de pele de espessura parcial; M, mês; SD, ultrassonografia Doppler; VAV, malformação arteriovenosa; ZP, zumbido pulsátil.
A tabela 1 mostra estudo de diagnóstico importante e seus achados. Em 38 dos 53 casos, SD, ATCOT, ARM e/ou ACTF nada revelaram nada em termos de diagnóstico. Nenhuma imagem foi feita nos outros 15 casos; o tratamento foi determinado unicamente pelo exame físico e ausculta.5,7 Na angiografia, os vasos de alimentação mais comuns foram o auricular posterior, temporal superficial e artérias occipitais.
O fluxograma da figura 4 mostra as opções e os desfechos de tratamento. Doze dos 53 pacientes foram inicialmente acompanhados sem qualquer tratamento. Desses, as MAV persistiram em dez e se agravaram em dois. Desses dois últimos, um foi submetido à ressecção auricular e o outro rejeitou uma cirurgia. Vinte pacientes foram submetidos à embolização terapêutica. Desses, as MAV melhoraram em três, mas agravaram em 17. Desses 17, dez foram submetidos à excisão de lesão de MAV ou ressecção auricular.
Foram submetidos 21 pacientes a excisão de lesão de MAV ou ressecção auricular como tratamento inicial. Entre esses pacientes, além de outros 11 que se submeteram a excisão ou ressecção como tratamento de salvamento, 22 (69%) foram controlados e nove (28%) melhoraram; apenas um apresentou MAV irressecável persistente na região adjacente. Nos 32 pacientes o fechamento da ferida foi feito por fechamento linear simples (n = 18); EPEP (n = 10); reconstrução imediata com estrutura cartilaginosa auricular de resgate coberta por retalho temporoparietal (n = 1), retalho local expandido (n = 1), retalho de avanço (n = 1) e retalho livre (n = 1). Um paciente foi submetido a cirurgia em dois estágios: ressecção auricular e EPEP inicialmente e criação lóbulo da orelha e elevação da orelha secundariamente.8 Nenhuma das principais complicações de pós-operatório foi observada, exceto zumbido transitório em um paciente e necrose da pele no local do fechamento de ferida, em dois.7 O tempo de acompanhamento pós-operatório variou de um mês a 19 anos e apenas um caso teve MAV cervicofacial residual.7
Schobinger classificou MAV em quatro estágios. Os sintomas do estágio I (quiescente) são pele quente e descolorida; os de estágio II (expansão) são ruído, pulsação e edema. O estágio III (destruição) é caracterizado por dor, ulceração e sangramento; enquanto o estágio IV (descompensação) apresenta insuficiência cardíaca.3,9 Os sinais e sintomas de apresentação correlacionam-se com o estágio de MAV. Embora muitas MAV sejam assintomáticas, elas podem alternativamente desencadear dor intensa e/ou sangramento. Os sintomas mais comuns são pulsação (51,2%), sangramento (41,5%) e dor (29,3%).7 A audição também pode deteriorar, presumivelmente porque o ruído é audível.10-13 Existem dois tipos de MAV no que diz respeito à velocidade de fluxo: rápido e lento.14 A maioria das regiões de fluxo rápido é de fístulas arteriovenosas, enquanto as MAV de fluxo lento são produzidas por lesões venosas, capilares ou linfáticas.14 A classificação baseada na velocidade de fluxo pode ser importante, pois diferentes opções de tratamento são necessárias para os dois tipos.
O aumento de uma MAV pode ser desencadeado por trauma, infecção ou influências hormonais.15 No artigo de revisão de 41 pacientes com MAV, a expansão ocorreu durante a infância em sete, na adolescência em 14, na gravidez em dez e na idade adulta em dez. 7 Algumas MAV podem permanecer quiescentes até a adolescência e até mesmo na idade adulta. Nosso paciente era bem mais velho do que os de outros relatos; além disso, anteriormente, a lesão havia sido diagnosticada, de forma equivocada, como um oto-hematoma. MAV é semelhante à orelha em couve-flor, pois ambas as doenças podem apresentar-se com uma aurícula deformada por edema. Como drenagem simples baseada em diagnóstico errado de oto-hematoma pode provocar sangramento maciço em caso de MAV, o diagnóstico diferencial da MAV de um oto-hematoma é importante.
Em dois casos, a intervenção cirúrgica foi planejada sob suspeita de MAV na ausência de dados de imagem.2 No entanto, as modalidades de imagem são necessárias para um diagnóstico preciso da lesão vascular e confirmação da extensão. ARM ou ACTF revelou envolvimento auricular total em 24 (89%) casos, embora se tenha acreditado que 56,1% dos 27 pacientes exibiam apenas envolvimento parcial ao exame físico.7 Embora a ACTF convencional seja invasiva, a técnica é útil para identificar o principal vaso nutriz e o portal de embolização apropriado.15 A embolização guiada por ACTF é uma etapa terapêutica inicial bastante útil, mas a excisão cirúrgica é necessária na maioria dos casos, para evitar a recorrência.
O tratamento é desnecessário (especialmente em crianças) se a MAV for pequena e assintomática. Em um grupo não tratado de 12 pacientes, dois do estágio I e sete de estágio II mantiveram-se estáveis.3,7 Se a MAV for sintomática, a excisão completa (precedida por embolização) é o tratamento de escolha.6 Ligadura dos vasos arteriais ou excisão parcial deve ser evitada, porque uma nova circulação colateral irá se formar, desencadeará outro aumento.15,16 Em nossa revisão abrangente, 17 de 20 pacientes submetidos a embolização inicial exibiram MAV agravadas ou persistentes. Wu et al. relataram que o tempo médio decorrido entre a última embolização e a ressecção final era de 5,6 anos (variação: 2-8).5 Com base nesses resultados, conclui-se que a embolização é mais bem empregada apenas para reduzir a perda de sangue e facilitar a ressecção cirúrgica.
Nosso caso foi inicialmente diagnosticado como um oto-hematoma devido à aurícula em couve-flor e o paciente apresentou-se três anos mais tarde com sangramento maciço. Para diagnosticar com precisão uma MAV, um exame físico minucioso, inclusive palpação, ausculta e imagem, é essencial. Na maioria dos casos de MAV auricular, o tratamento ideal é uma combinação de embolização superseletiva e excisão cirúrgica completa.