versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.105 no.4 São Paulo out. 2015
https://doi.org/10.5935/abc.20150130
A trombose de prótese é uma complicação incomum, porém com grande mortalidade e morbidade. Mulheres jovens em idade fértil que possuem prótese metálica apresentam maior risco de trombose durante a gestação devido a alterações nos fatores de coagulação. A anticoagulação com controle adequado e o acompanhamento frequente, se a gestação ocorrer, devem ser realizados para evitar complicações relacionadas ao uso de anticoagulantes. A cirurgia permanece como tratamento de escolha para a trombose de prótese metálica na maioria das condições clínicas.
Pacientes portadoras de prótese valvar metálica apresentam um risco estimado de 5% de trombose valvar durante a gestação e de mortalidade de materna de 1,5% relacionada ao evento. A anticoagulação com antagonistas da vitamina K durante a gestação está relacionada a graus variáveis de complicações a cada fase do ciclo gravídico‑puerperal. A varfarina sódica atravessa a barreira placentária e, quando usada no primeiro trimestre, é teratogênica, acarretando 1 a 3% de malformações caracterizadas pela síndrome varfarínica-fetal, e também é a grande causa de abortamento espontâneo em 10 a 30% dos casos. No terceiro trimestre e parto, o uso da varfarina está associado à hemorragia materna e neonatal em cerca de 5 e 15% dos casos, respectivamente. Em contrapartida, a anticoagulação inadequada, incluindo a suspensão do anticoagulante oral, com intuito de proteção do feto, apresenta um risco materno de cerca de 25% de trombose de prótese metálica, sendo particularmente maior na posição da valva mitral. Este fato deve-se também ao estado de hipercoagulabilidade materna com a ativação dos fatores de coagulação V, VI, VII, IX, X, da atividade plaquetária e da síntese do fibrinogênio, e a diminuição da proteína S. O Registry of Pregnancy and Cardiac Disease (ROPAC) no estudo de 212 gestantes portadoras de próteses metálicas mostrou que a trombose da próteses ocorreu em 4,7% dos pacientes e hemorragia materna em 23,1%, concluindo que somente 58% das pacientes com próteses metálicas tiveram a gravidez livres de complicações1-7.
Há controvérsias sobre o melhor esquema de anticoagulação durante a gravidez, parto e puerpério de mulheres portadoras de prótese valvar metálica. Não existem diretrizes no intuito da melhor opção terapêutica isolada ou combinada face os riscos presumidos de trombose, porque não há evidências quanto à eficácia materna ao lado da proteção fetal. A recomendação atual, apoiada na literatura, tem sido para a substituição da varfarina sódica no primeiro trimestre da gravidez pela Heparina de Baixo Peso Molecular (HBPM) até a 12ª semana de gestação. Após essa idade gestacional, reintroduzimos a varfarina até 36ª semana de gestação e, posteriormente, esta é novamente substituída pela HBPM 24 horas antes do parto8. O alvo da relação normatizada internacional (RNI) durante o período gestacional deve ser de 2,5 a 3,5 (média 3,0), quando prótese mitral, e de 2,0 a 3,0, quando aórtica, valores que conferem as maiores taxas de proteção materna (5,7% de risco de morte ou tromboembolismo) comparada com a heparina8. Revisão publicada sobre desfechos de gestantes com prótese demonstrou que a varfarina confere proteção superior do que a heparina como profilaxia de eventos tromboembólicos em mulheres com próteses metálicas, mas com maior risco de embriopatia9. No entanto, estudo retrospectivo observacional com três regimes de anticoagulação (enoxaparina antes de 6 semanas de gestação, entre 6 e 12 semanas ou anticoagulante oral durante toda gestação) observou que, com uso de enoxaparina, as complicações tromboembólicas foram vistas em 14,9% dos casos, nos quais a maioria estava relacionada com doses subterapêuticas verificadas por meio da dosagem do fator Anti-Xa10. Regime de anticoagulação em níveis subterapêuticos é a principal causa de trombose de valva, sendo encontrado em até 93%, independente do regime usado11,12. O risco de trombose é provavelmente menor se a dose do anticoagulante for adequada e dependente ainda do tipo e posição da valva metálica, levando também em consideração os fatores de risco da paciente.
Os dados da literatura1,8,9 alertam para ineficácia do uso da Heparina Não Fracionada (HNF) subcutânea na prevenção de trombose de prótese valvar metálica durante a gravidez, devido às dificuldades de obtenção da anticoagulação eficaz, do seu controle e da aderência da paciente ao medicamento. Porém, em serviços que optam por essa alternativa, recomenda-se que a HNF seja iniciada em altas doses (17.500 a 20.000 UI 2xd subcutânea) e controlada pelo Tempo de Protrombina parcial Ativada (TTPa), que deve ser duas vezes acima do valor controle, lembrando‑se de que a resposta à heparina é modificada pelo estado fisiológico de hipercoagulabilidade materno. Quando selecionada a HBPM, sua dose deve ser administrada a cada 12 horas, subcutânea, apoiada no controle do fator Anti-XA entre 0,8 e 1,2 U/mL, que deve ser determinado após 4 a 6 horas da aplicação. Fatores que devem ser levados em consideração na decisão do melhor tratamento anticoagulante incluem preferências do paciente, expertise do médico assistente e disponibilidade de monitorização dos níveis das medicações11-14 (Tabela 1).
Tabela 1 Anticoagulação na paciente gestante
Semanas | Medicamento | Controle |
---|---|---|
Até 6ª-12ª | HBPM 1,0 mg/kg SC a cada 12 horas HNF 17.500 a 20.000 UI SC 2 vezes ao dia | Anti-Xa: 0,8-1,2 U/mL TTPa 2 vezes acima do controle |
12ª-36ª | Varfarina 5 mg VO uma vez ao dia HBPM 1,0 mg/kg SC a cada 12 horas | RNI entre 2,0 e 3,0, se prótese aórtica, e entre 2,5 e 3,5, se prótese mitral Anti-Xa: 0,8-1,2 U/mL |
Após 36ª até o parto | HBPM 1,0 mg/kg SC a cada 12 horas HNF 17.500 a 20.000 UI SC 2 vezes ao dia | Anti-Xa: 0,8-1,2 U/mL TTPa duas vezes acima do controle |
Puerpério | HBPM 1,0 mg/kg SC a cada 12 horas Alcançar RNI alvo após introdução de varfarina 5 mg VO 1 vez ao dia | Anti-Xa: 0,8-1,2 U/mL RNI entre 2,0 e 3,0 se prótese aórtica e entre 2,5 e 3,5 se prótese mitral |
HBPM: Heparina de baixo peso molecular; SC: Subcutâneo; HNF: Heparina não fracionada; UI: Unidades; TTPa: Tempo de protrombina parcial ativada; VO: Via oral; RNI: Relação normatizada internacional.
A European Society of Cardiology contraindica o uso de Ácido Acetilsalicílico (AAS) em adição a anticoagulação nos pacientes com valvas protéticas, por não haver dados na literatura que comprovem seu beneficio e segurança13. Por outro lado, a American Heart Association/American College of Cardiology, em sua última diretriz, sugere adicionar o AAS 75 a 110 mg/dia ao regime de anticoagulação em todos os pacientes com valvas metálicas e nos pacientes com valvas biológicas anticoagular nos primeiros 3 meses e, após, manter o AAS na dose de 75 a 100 mg/dia por tempo indeterminado. A adição de aspirina diminui a incidência de fenômenos embólicos, morte cardiovascular e acidente vascular encefálico, e a Sociedade Brasileira de Cardiologia sugere sua associação em pacientes de alto risco tromboembólico (prótese de modelo antigo em posição mitral, fibrilação atrial, mais de uma prótese metálica etc.)6,15.
O uso dos novos anticoagulantes (inibidores diretos da trombina e inibidores orais do Fator Xa) é formalmente contraindicado em pacientes com prótese valvar metálica.
No puerpério, deve-se usar HBPM com controle do fator Anti-Xa e posterior suspensão após atingir RNI 3,0 com varfarina. Durante esse período, a trombose de valva deve ser suspeitada quando a paciente desenvolver dispneia progressiva, edema agudo de pulmão, síncope, sintomas de baixo débito cardíaco ou instabilidade hemodinâmica, excluindo as taquiarritmias como causa, especialmente em pacientes com anticoagulação inadequada. Além disso, um achado auscultatório que sugere a trombose valvar é o desaparecimento ou abafamento do clique de fechamento da prótese. O ecocardiograma transesofágico parece ser o método mais sensível para confirmação diagnóstica16.
O tratamento da trombose durante o período puerperal deve ser o mesmo proposto para os pacientes portadores de valva protética fora do período gravídico-puerperal, levando em consideração sua condição clínica, o tamanho do trombo e a localização da prótese afetada. A cirurgia impõe-se como o tratamento de escolha e deve ser indicada preferencialmente em pacientes com dispneia classe funcional III e IV da New York Heart Association (NYHA), sem contraindicação cirúrgica, trombose de próteses à esquerda, trombo ≥ 10 mm ou área do trombo > 0,8 cm26,17. A desvantagem da cirurgia deve-se a alta mortalidade perioperatória (entre 5 a 18%) estreitamente associada à classe funcional, sendo este o principal preditor. Os pacientes em classes funcional de I a III (NYHA) apresentam 4 a 7% de mortalidade, enquanto que, em classe funcional IV, apresentam 17,5 a 31,3%. Porém, em comparação à trombólise, a cirurgia apresenta as maiores taxas de sucesso (81% vs. 70,9%)18,19.
O uso de trombolítico pode ser considerado em pacientes críticos que apresentem grande risco de morte se submetidos à cirurgia, em locais onde não há equipe cirúrgica disponível, ou trombose das valvas tricúspide ou pulmonar20. A trombólise apresenta risco de embolização sistêmica de 5 a 19%, sangramentos maiores de 5 a 8%, recorrência de 15 a 31% e mortalidade de 6 a 12,5%. Taxas de sucesso variam entre 64 a 89%, com alta chance de ser eficaz se o trombo tiver presumidamente menos de 14 dias12,19,21,22. Nos casos de sucesso parcial, ou seja, trombo residual, o paciente deve ser encaminhado à cirurgia após 24 horas da descontinuação da infusão do trombolítico. Nesse cenário, a cirurgia deve ser considerada de urgência ou emergência, dependendo da condição clínica do paciente, com altas taxas de mortalidade. Isso reforça a importância da escolha da terapia inicial para os pacientes com trombose de valva, para minimizar riscos de reintervenções e aumentar taxa de resolução completa19. Monitorização com ecocardiograma transesofágico deve ser realizada durante o procedimento. As doses recomendadas de trombolíticos são: estreptoquinase 1.500.000 UI em 60 minutos sem HNF e alteplase (rT-PA) 10 mg em bólus + 90 mg em 90 minutos com HNF20. Recentemente, protocolo com trombolítico em baixa dose e infusão lenta (rT-PA 25 mg infusão endovenosa em 6 horas, repetindo em 24 horas e, se necessário, até seis vezes, atingindo dose máxima de 150 mg, sem bólus ou uso de heparina concomitante) em gestantes com trombose de prótese apresentou trombólise eficaz, sem mortes maternas e mortalidade fetal em torno de 20%, resultado melhor do que as estratégias habitualmente usadas11. No entanto, o autor compara com trabalhos antigos e, talvez, com o aprimoramento das técnicas cirúrgicas, essa diferença seja menor. Portanto, não podemos inferir que a trombólise seja melhor que a estratégia cirúrgica nas grávidas.
Após cirurgia ou trombólise, as pacientes devem ser anticoaguladas. A diretriz americana orienta RNI 3-4 para prótese em posição aórtica e RNI 3,5-4,5 com adição de AAS em posição mitral. Já a diretriz europeia norteia a anticoagulação de acordo com a trombogenicidade da prótese e dos fatores de risco para eventos tromboembólicos do paciente (troca de valva mitral ou tricúspide, tromboembolismo prévio, fibrilação atrial, estenose mitral, disfunção ventricular FE < 35%), variando de RNI 2,5 a 3,5 para baixo risco, RNI 3,0 a 4,0 para alto risco, independente da posição da prótese6,20.
Diante do exposto, verifica-se a importância de alertar as mulheres em idade fértil e que possuem prótese metálica quanto aos riscos durante o período gestacional, orientando anticoagulação com controle adequado e acompanhamento frequente se a gestação ocorrer, preferencialmente em centros de excelência em valvopatias, para evitar complicações relacionadas ao uso de anticoagulantes, tais como embriopatias, aborto, sangramentos e trombose de prótese23. O tratamento deve ser individualizado, dependendo das condições clínicas da paciente, conforme algoritmo proposto por nossa equipe (Figura 1).