versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.41 no.3 São Paulo jul./set. 2019 Epub 06-Set-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0105
A acidose tubular renal (ATR) é caracterizada por anormalidades no mecanismo de transporte dos túbulos distais e proximais dos rins, podendo haver redução na reabsorção de HCO3 ou na excreção de H+, ocasionando acidose metabólica que pode interferir no metabolismo ósseo.1 Esses distúrbios eletrolíticos podem alterar o mecanismo da amelogênese2-6 e o crescimento craniofacial, e por conseguinte gerar maloclusão dentária.3
Embora a associação entre ATR e alterações bucais seja biologicamente plausível, ainda não existem evidências que a comprove. Assim, o objetivo deste relato de caso foi descrever as associações entre ATR e manifestações orais e discutir os possíveis mecanismos biológicos que explicam essa associação.
Paciente R.E.L.S, sexo feminino, 14 anos e 5 meses de idade, insatisfeita com a cor dos dentes procurou uma Clínica de Odontologia em São Luís (MA, Brasil). A mãe relatou histórico de nascimento prematuro, icterícia ao nascer, com diagnóstico de ATR (OMIM 179800) associado a raquitismo secundário aos 4 anos de idade. A paciente apresentava baixo peso (31 kg), baixa estatura (1,35 m) e magreza leve (IMC = 17 kg/m2).
No exame clínico intraoral observou-se a dentição permanente com coloração amarelo-amarronzada e perda de esmalte nos dentes posteriores, com intensa erosão da dentina. Os dentes 16, 13, 11, 21, 23 e 26 estavam restaurados (Figura 1a, b, c, d,) e os 15, 34 e 44 eram ausentes (Figura 1a e c). A paciente tinha indícios de higiene oral deficiente, gengivite generalizada e deiscência com recessão gengival somente no dente 41 (Figura 1b). Além disso, apresentava respiração mista, mordida aberta anterior e ausência de selamento labial, sem relatos de hábitos bucais deletérios (Figura 1b).
A despeito do diagnóstico de raquitismo secundário na primeira infância, no exame radiográfico de punho carpal foi estimada idade óssea de 13 anos e 6 meses (Figura 2a) pelo método de Greulich-Pyle. Na radiografia panorâmica observou-se diminuição da radiopacidade do esmalte e perda de contraste entre esmalte e dentina em vários dentes, sugerindo amelogênese imperfeita do tipo hipoplásica (AIH). Os dentes 15, 34 e 44, não observados na inspeção visual, estavam inclusos e também apresentavam alteração na radiodensidade entre esmalte e dentina, sendo mais nítida no dente 44, no qual foi notada a ausência da lâmina dura (Figura 2b).
Neste relato de caso foram descritas alterações bucais como AIH, maloclusão do tipo mordida aberta anterior, dentes impactados e ausência de lâmina dura em um dente de paciente adolescente com ATR.
Por ser uma condição rara, não existem fortes evidências que expliquem a associação da ATR com a AIH. Entretanto, pesquisas realizadas em murinos sugerem que uma das possíveis explicações para a ocorrência da AIH em indivíduos com ATR seja a mutação no lócus NBCe1-A do gene SLC4A4.5,7 Este lócus é responsável pela regulação do pH nos rins1 e nos ameloblastos.5 No entanto, apesar da capacidade dos ameloblastos para modular dinamicamente o pH da matriz do esmalte, foi demonstrado que o pH sistêmico de murinos também parece contribuir para o fenótipo do esmalte.7 Assim, extrapolando os achados, este caso nos leva a especular que a ATR seria um fator preditor de AIH na dentição permanente.
A mordida aberta anterior já foi descrita em indivíduos com ATR.3 No entanto, neste caso, o raquitismo, desenvolvido em virtude das alterações eletrolíticas presentes na ATR, provavelmente tenha sido responsável pela alteração no crescimento craniofacial, maloclusão dentária, e retenção dos dentes 15, 34 e 44, provavelmente por falta de espaços para erupção, observadas no presente relato.
A sensibilidade dentinária de indivíduos com AIH pode exercer influência negativa na saúde oral e nos hábitos alimentares do indivíduo, dificultando a mastigação. Dessa forma, a intensa erosão da dentina com consequente aumento da sensibilidade dentinária poderiam ser fatores agravantes do estado nutricional apresentado pela paciente.8 Portanto, ressalta-se a importância de uma intervenção odontológica precoce a fim de minimizar os efeitos da ATR na cavidade bucal.
Em resumo, nossos achados corroboram com estudos prévios da literatura, reforçando a plausibilidade de uma associação entre ATR e as alterações bucais descritas. Recomendando ainda uma intervenção precoce do cirurgião dentista programando estratégias preventivas para a melhora da qualidade de vida de indivíduos com ATR.