versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.2 no.4 São Paulo out./dez. 2019 Epub 02-Dez-2019
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20190060
A chikungunya é uma doença arboviral pertencente à família Togaravidae transmitida pela picada do mosquito da espécie Aedes, como Ae. Aegypti e Ae. Albopictus1. Desde o primeiro surto de chikungunya relatado na Tanzânia em meados de 19532, houve um crescente aumento de infecção em países da Ásia3,4 e África5,6. No Brasil, os primeiros casos autóctones foram confirmados no Oiapoque (AP) em 20147. Desde então observou-se um aumento significativo de notificações confirmadas em todos os estados da federação, seja por critério laboratorial ou clínico.
As principais manifestações clínicas na fase aguda são parecidas às da dengue: febre alta, dor de cabeça, calafrios, náusea, vômito, fadiga, dor nas costas, mialgia e artralgia8. A fase aguda ou febril dura até o 14° dia, porém em alguns casos há a persistência de sintomas como dores articulares por até três meses, caracterizada como fase subaguda. Quando as queixas de dores musculoesqueléticas persistem por um tempo superior a três meses, instala-se a fase crônica9. Os mecanismos envolvidos na cronicidade das dores musculoesqueléticas não estão totalmente compreendidos, porém, alguns fatores de risco têm sido apontados: predisposição genética; artropatia pré-existente ou outras comorbidades; lesão tecidual induzida diretamente pelo vírus; persistência de longa duração da infecção pela chikungunya em tecidos com inflamação e ativação de respostas autoimunes10. Além das queixas de dores musculoesqueléticas, a fase crônica está associada à incapacidade física e piora da qualidade de vida11,12.
Embora os tratamentos atuais apresentem algum resultado para o alívio dos sintomas13, manifestações clínicas de cronicidade ainda podem estar presentes anos após a infecção14. Nesse contexto, a avalição clínico-funcional da doença é de extrema importância para o planejamento de estratégias de prevenção e tratamento eficazes.
O objetivo deste estudo foi investigar a apresentação clínica-psico-funcional de pacientes infectados pelo vírus chikungunya com queixas de dores musculoesqueléticas crônicas.
Trata-se de um estudo transversal, descritivo e exploratório, realizado no período de janeiro de 2018 a junho de 2019. Indivíduos com diagnóstico médico de chikungunya e queixas de dor musculoesquelética, pós-infecção, foram recrutados por meio de redes sociais e divulgação impressa em serviços de saúde públicos e privados na cidade de Parnaíba-PI. Para o cálculo amostral foi considerado o número de casos prováveis notificados (n=825), de acordo com o Boletim da 52ª Semana Epidemiológica (2017) divulgado pelo Governo do Estado do Piauí, e a população da cidade de Parnaíba (n=137.485). Adotando-se um intervalo de confiança e valor de precisão de 95% e ±0,07, respectivamente, o tamanho mínimo da amostra foi estimado em 41 sujeitos.
Os critérios de inclusão foram: 1) diagnóstico médico confirmado de infecção pelo vírus chikungunya; 2) ambos os sexos; 3) queixa persistente de dor musculoesquelética (sintomas ≥ a 3 meses). Foram excluídos os participantes com queixas de dor relacionadas com doenças prévias, como por exemplo, doença reumática inflamatória, lesões mioarticulares, doenças neurológicas ou neuropatia diabética.
Após o preenchimento dos critérios de inclusão, os participantes responderam a um questionário não estruturado contendo dados pessoais e características antropométricas. Em seguida foi realizada a avaliação da intensidade e aspecto sensorial-afetivo da dor, qualidade de vida, cinesiofobia, percepção global de recuperação da dor pós-infecção e funcionalidade emocional. Ao final foi avaliado o limiar de dor por pressão e a modulação condicionada da dor. A intensidade da dor foi avaliada por meio da escala numérica de 11 pontos (zero-10), sendo zero considerada nenhuma dor e 10 a pior dor possível15. O aspecto sensorial e afetivo da dor foi verificado por meio do questionário de McGill, versão curta, (SF-MPQ) contendo 15 descritores de sensação de dor (11 sensoriais e 4 afetivas), com cada descritor classificado numa escala de 4 pontos, sendo zero=nenhuma, 15=leve, 25=moderada e 35=intensa16.
A qualidade de vida foi avaliada por meio do questionário EQ-5D que contempla cinco domínios de saúde: mobilidade, cuidados pessoais, atividades habituais, dor/mal-estar, ansiedade/depressão. Esse questionário ainda contempla uma escala analógica visual (EAV), cujo valor de zero indica pior estado de saúde imaginável e 100 indica o melhor estado de saúde imaginável17.
A cinesiofobia foi avaliada por meio da Escala Tampa de Cinesiofobia. Essa escala contém 17 itens que buscam mensurar o medo excessivo ou aversão ao movimento e atividade física. Cada item possui quatro opções de resposta: discordo totalmente (1 ponto); discordo parcialmente (2 pontos); concordo parcialmente (3 pontos) e concordo totalmente (4 pontos). A soma dos itens respondidos pode indicar menor (17 pontos) ou maior cinesiofobia (68 pontos)15. A percepção global de recuperação pós-infecção foi avaliada pela escala numérica de percepção global (EPG). Essa escala contém 11 pontos, variando de -5 a +5, sendo - 5 a percepção de estar extremamente pior; zero: sem modificação; e +5 a percepção de estar completamente recuperado15.
O limiar de dor foi avaliado por meio do algômetro de pressão manual (FORCE TEN FDX, USA). A ponteira do algômetro, com cerca 1cm2 de espessura, foi aplicada perpendicularmente à superfície da pele, no braço dominante, sobre o tendão do músculo extensor curto do carpo a 2cm distal ao epicôndilo lateral. Foram realizadas três mensurações, e em cada teste os participantes foram instruídos a responder “pare” à primeira sensação de dor causada pelo estímulo mecânico do algômetro18.
A modulação condicionada da dor (MCD) foi avaliada por meio do teste de resfriamento tecidual19. Os participantes permaneceram sentados com o antebraço dominante sobre um apoio, e o antebraço contralateral imerso em um balde com gelo e água a 10ºC de temperatura (estímulo condicionante). O limiar de dor por pressão (LDP) (estímulo teste) foi mensurado durante quatro intervalos: (1) antes da imersão, (2) após 30s de imersão, (3) após 1min 30s de imersão e (4) 1min após a retirada da mão imersa no sistema de resfriamento. A MCD foi estimada pela diferença no LDP entre a condição basal (pré-imersão) e as condições pós-imersão18.
Os sintomas de ansiedade e depressão foram avaliados pela versão brasileira do Inventário de Depressão de Beck (IDB) e a EAV para ansiedade, respectivamente. O IDB é uma medida de autoavaliação da depressão que utiliza um questionário com 21 itens, cuja intensidade varia de zero a 3 (maiores pontuações indicam mais sintomas depressivos)20. A EAV para ansiedade geral é avaliada por meio de uma linha horizontal de 100mm de comprimento. A extrema ponta esquerda significa sem ansiedade e a extrema ponta direita significa pior ansiedade possível21.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Piauí (UFPI) sob nº 2.883.331/2018. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Os dados foram tabulados no software Microsoft Excel ® versão 2010 para Windows. Realizaram-se análises descritivas das variáveis investigadas por meio de médias, frequências (absoluta e relativa) e desvios padrões. Todos os dados foram analisados através do software IBM SPSS v.20 para o Windows.
Quarenta e nove sujeitos foram recrutados para avaliação clínica. No entanto, 27 indivíduos foram excluídos pois não apresentavam mais queixas de dor (n=8); sem diagnóstico médico (n=9) e 10 indivíduos se recusaram a participar do estudo. Vinte e dois sujeitos (86,4% sexo feminino) com diagnóstico médico de infecção pelo vírus chikungunya participaram do estudo. A média (±DP) de idade, massa, estatura e índice de massa corporal (IMC) foram de 46,4anos (12,0), 63,3kg (17,5), 1,6m (0,1) e 26,1kg/m2 (4,4), respectivamente. O nível de escolaridade predominante foi ensino médio (31,8%) e fundamental (31,8%), seguido de ensino superior (27,3%) e sem escolaridade (9%). A maioria dos participantes não praticava atividade física (59,1%) e todos negaram tabagismo. O tempo médio de dor foi de 17,5 meses (7,4) e os locais de maiores queixas foram os membros inferiores (45,5%), membros inferiores e membros superiores (45,5%) e membros superiores (9,1%). As características clínicas, qualidade de vida e modulação condicionada da dor estão descritas nas tabelas 1, 2 e 3, respectivamente.
Tabela 1 Características clínicas dos participantes
Média | Desvio padrão | |
---|---|---|
Intensidade da dor (0-10) | 5,5 | 2,1 |
PRI-T (0-45) | 17,3 | 8,4 |
PRI-S (0-33) | 12,2 | 5,5 |
PRI-A (0-12) | 5,1 | 3,3 |
Cinesiofobia (17-68) | 43,6 | 6,5 |
Percepção global (-5 a +5) | 1,5 | 2,5 |
Depressão (0-63) | 10,9 | 5,9 |
Ansiedade (0-100) | 3,1 | 2,4 |
PRI-T = índice total de dor, PRI-S = aspecto sensorial da dor, PRI-A = aspecto afetivo da dor; Cinesiofobia = avaliada pela da Escala Tampa de Cinesiofobia. Altas pontuações da intensidade, aspecto sensorial da dor e cinesiofobia indicam piora da dor e aversão ao movimento ou atividade física. Percepção global avaliada pela escala de percepção do efeito global. Baixas pontuações indicam piora do efeito global.
Tabela 2 Qualidade de vida dos participantes
EQ-5D Domínios | Níveis | n(%) |
---|---|---|
1 | 7(31,8) | |
2 | 5(22,7) | |
Mobilidade | 3 | 10(45,5) |
4 | - | |
5 | - | |
1 | 14(63,6) | |
Cuidados pessoais | 2 | 1(4,5) |
3 | 7(31,8) | |
4 | - | |
5 | - | |
1 | 8(36,4) | |
Atividades habituais | 2 | 7(31,8) |
3 | 6(27,3) | |
4 | 1(4,5) | |
5 | - | |
1 | - | |
Dor/mal-estar | 2 | 10(45,5) |
3 | 11(55) | |
4 | 1(4,5) | |
5 | - | |
1 | 8(36,4) | |
Ansiedade/depressão | 2 | 7(31,8) |
3 | 7(31,8) | |
4 | - | |
5 | - |
EQ-5D = Questionário de qualidade de vida EuroQol com cinco dimensões. Nível 1 = sem problemas; Nível 2 = problema leve; Nível 3 = problema moderado; Nível 4 = problema grave; Nível 5 = incapaz.
Tabela 3 Modulação condicionada da dor
Limiar de dor por pressão (Estímulo teste) | Pré (kgf) | Pós (kgf) | MCD (%) |
---|---|---|---|
Basal | 3,2 (0,9) | - | - |
30s imersão | - | 3,4 (1,0) | 6,3 |
1,5min imersão | - | 3,4 (1,0) | 6,3 |
1 min pós/imersão | - | 3,2 (0,9) | 0 |
MCD = modulação condicionada da dor. Valores de quilograma-força (Kgf) expressos como média e desvio padrão.
A análise dos dados demonstrou que a infecção pelo vírus chikungunya leva a dores persistentes, com características temporais de cronicidade e magnitudes de média a elevada intensidade. O aspecto sensorial e afetivo da dor variou entre leve a moderado. Embora os sintomas de depressão e ansiedade não tenham sido avaliados previamente, e nem contemplaram critérios de inclusão/exclusão, em geral os participantes não apresentaram alterações clinicamente relevantes nos sintomas de depressão [(10,9±5,9) escore de 0-63] e ansiedade [(3,1±2,4) escore de 0-100]. Por outro lado, os domínios depressão e ansiedade, avaliados por meio do questionário de qualidade de vida EQ-5D, demonstraram que essas morbidades psiquiátricas estavam presentes em magnitudes de leve a moderada. Há poucos relatos na literatura sobre morbidades psiquiátricas associadas à chikungunya, o que torna difícil a comparação com os presentes resultados. Um estudo indiano preliminar verificou a presença de morbidades psiquiátricas em 20 sujeitos infectados, principalmente nas formas de episódios de depressão (n=5) e desordens de ansiedade (n=3)22.
Apesar das divergências na avaliação dos sintomas de depressão e ansiedade observou-se moderado nível de cinesiofobia, indicando que as queixas de dor persistente podem induzir a uma maior percepção de medo excessivo ou aversão ao movimento e atividade física. No entanto, por se tratar de uma única avaliação, é possível que essas alterações já estivessem presentes antes da avaliação clínica. No contexto da reabilitação física, a presença de cinesiofobia pode indicar um mal prognóstico ou maior dificuldade de aderência ao tratamento por meio de exercícios. Nesses casos é possível que estratégias de reconceituação de crenças e mudanças de atitudes, como a terapia cognitivo-comportamental23, possam diminuir a cinesiofobia e aumentar as chances dos pacientes se beneficiarem do efeito hipoalgésico dos exercícios terapêuticos24,25.
A avaliação da qualidade de vida demonstrou que a maioria dos participantes apresentavam prejuízos leves (nível 2, escore de 1 a 5) a moderados (nível 3, escore de 1 a 5). Em relação aos domínios de saúde, dor e/ou mal-estar e mobilidade foram considerados um problema moderado em 55 e 45% dos participantes, respectivamente. Houve também prejuízos nos domínios cuidados pessoais (moderado) e atividades habituais (leve). A perda da qualidade de vida pós-infecção pode estar relacionada à manutenção ou exacerbação das queixas álgicas11, onde o fator tempo de infecção tem relação direta com o aumento dos sintomas de dor e perda da capacidade funcional26. Quando comparados ao período inicial dos sintomas, os participantes relataram percepção global de pouca recuperação pós-infecção [(1,5±2,5) escore de -5 a +5], demonstrando que a chikungunya pode impactar negativamente na saúde dos indivíduos a longo prazo11.
A avaliação da MCD, revelou pouco aumento (6,3%) do limiar de dor por pressão, durante o estímulo condicionante (água fria), em relação à condição basal. Esse resultado sugere pouca ativação da via inibitória descendente da dor, indicando que a fase crônica da infecção pelo vírus chikungunya interfere negativamente na capacidade endógena de analgesia. A avaliação da disfunção dos mecanismos modulatórios endógenos de dor, presente em diversas condições de dor crônica27, pode fornecer importantes informações para guiar estratégias mais eficazes de prevenção e tratamento. Por exemplo, falha na MCD durante a fase pré-operatória está associada a maior probabilidade de dores crônicas na fase pós-operatória28,29. Em relação ao tratamento, estratégias terapêuticas que ativem mecanismos inibitórios de dor similares à MCD, como exercícios30 ou técnicas não invasivas de neuromodulação31, podem ser um dos caminhos para o alívio da dor crônica.
A principal limitação deste estudo se refere ao tamanho da amostra. Embora tenha-se utilizado uma ampla estratégia de recrutamento, o estado do Piauí vem apresentando significativas reduções de novos casos. De acordo com o Boletim da 3ª Semana Epidemiológica - 2019 houve redução de 95,6% da incidência em relação ao mesmo período de 2018. Outras limitações também podem ter influenciado os resultados encontrados: (1) Variáveis de confusão, como sintomas prévios de depressão, ansiedade e cinesiofobia; e (2) Método utilizado para a avaliação da MCD.
A fase crônica da infecção pelo vírus chikungunya tem como apresentação clínica dor persistente de moderada intensidade, em nível sensorial e afetivo, além de moderada cinesiofobia, piora na qualidade de vida, percepção de pouca recuperação pós-infecção e diminuição da ativação inibitória descendente da dor.