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Manuseio Clínico da Doença de Chagas na Fase Aguda: O Desafio Continua no Século 21

Manuseio Clínico da Doença de Chagas na Fase Aguda: O Desafio Continua no Século 21

Autores:

Dário C. Sobral Filho

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.3 São Paulo mar. 2019

https://doi.org/10.5935/abc.20190035

A doença de Chagas, além de se encontrar disseminada no continente americano, com cerca de seis milhões de pessoas infectadas, atualmente está presente em diversas regiões do mundo em consequência da migração de pessoas com a doença.1,2

As estatísticas mostram que a incidência de casos agudos diminuiu de 700.000 novos casos em 1990 para a estimativa atual de 29.000 à 30.000 casos agudos anuais de transmissão vetorial, somados a outros 8.000 casos originados anualmente por transmissão congênita e por outras vias de transmissão como a via transfusional e a via digestiva, por consumo de alimentos contaminados pelo Trypanosoma cruzi,2 como abordado por Ortiz et al.3 em sua publicação nesse periódico, em que relatam o registro de 63 casos de forma aguda da doença de Chagas no estado do Amazonas no período de oito anos, com transmissão oral em 75% dos pacientes.

Embora com significativa redução anual de sua incidência e prevalência nas Américas, a doença de Chagas continua sendo um grave problema de saúde pública, provocando a morte de cerca de 12.000 pessoas por ano. Essa doença também está associada a um alto custo socioeconômico, estimado recentemente em 500 milhões de dólares na América Latina, e uma perda anual de 770.000 anos de vida (ajustados) por morte prematura ou perda de anos produtivos por incapacidade física.4

A lenta evolução nos métodos laboratoriais de diagnóstico e no desenvolvimento de novos medicamentos de melhor eficácia e tolerabilidade pelos pacientes, além da precariedade das políticas de saúde pública direcionadas para a extinção da doença, fazem com que ela seja classificada como uma “Doença Negligenciada”.1,2,5,6 Calcula-se que apenas 1% dos pacientes infectados pelo T. cruzi recebam anualmente o diagnóstico e tratamento apropriados.2

O artigo de Ortiz et al.,3 chama atenção para alguns fatos importantes: o primeiro diz respeito ao aumento da incidência de casos agudos por transmissão oral na Região Amazônica onde tem sido registrado casos da forma aguda isolados ou em surtos, em microepidemias familiares, de transmissão por via oral, através de alimentos contaminados com triatomíneos ou suas fezes. Outros autores têm destacado a característica epidemiológica regional1,7-10 e observa-se ainda que esse tipo de transmissão parece ser muito mais eficaz do que pela via vetorial.

O outro aspecto ressaltado pelos autores é o caráter menos agressivo da doença sobre o coração, com um elevado percentual de pacientes da sua amostra sem evidências de miocardite quando avaliados pelo eletrocardiograma (70% normais) e pelo ecocardiograma transtorácico (87% normais). Embora a sensibilidade desses dois métodos para detecção da miocardite tenha limitações discutíveis, é provável que características peculiares regionais possam explicar esses achados.

A partir de estudos de genotipagem do T. cruzi, Ortiz et al.,3 sugerem que a menor prevalência de alterações cardíacas dos seus pacientes possa estar relacionada a linhagem de T. cruzi denominada TclV presente em pacientes de surtos, cuja patogenicidade, embora não muito bem conhecida, pode ter menor morbidade quando comparada a linhagem TcII presente em outras áreas endêmicas.11

A aplicação dos novos conhecimentos da genética e a realização de estudos longitudinais desenhados para testar essa hipótese, provavelmente irão trazer informações relevantes para a abordagem diagnóstica e terapêutica desses pacientes.

Por último, merecem destaque os achados de Ortiz et al.,3 sobre o tratamento da fase aguda da doença de Chagas com a droga Benznidazol. As informações a respeito deste tema, no entanto, são escassas, baseadas em estudos não randomizados, com número de pacientes e tempo de observação insuficientes. Embora a definição sobre os critérios de cura da doença permaneça controversa, existe um consenso atual de que o tratamento com Benznidazol deve ser realizado nas formas agudas e que existe um provável benefício a longo prazo.1,2,10,12

O pequeno tamanho da amostra, o período relativamente curto de acompanhamento e a adoção de desfechos substitutos na avaliação dos resultados são limitações que ocorrem com certa frequência nas publicações sobre este tema e que também estão presentes no estudo de Ortiz et al.,3 Entretanto, as informações apresentadas são significativas e podem fornecer elementos para futuras pesquisas superando tais limitações e trazendo novos conhecimentos para melhorar o diagnóstico e o tratamento da doença de Chagas.

REFERÊNCIAS

1 Dias JC, Ramos AN Jr, Gontijo ED, Luquetti A, Shikanai-Yasuda MA, Coura JR, et al. 2nd Brazilian Consensus on Chagas Disease, 2015. Rev Soc Bras Med Trop. 2016;49(Suppl 1):3-60.
2 Organización Panamericana de la Salud. Guía para el diagnóstico y el tratamiento de la enfermedad de Chagas. Washington, DC: WHO/PAHO; 2018.
3 Ortiz JV, Pereira BVM, Couceiro KN, Guerra MGV, Guerra JAO, Ferreira JMB. Avaliação cardíaca na fase aguda da Doença de Chagas com evolução pós tratamento em pacientes atendidos no Estado do Amazonas-Brasil. Arq Bras Cardiol. 2019; 112(3):240-246.
4 Lee B, Bacon KM, Bottazzi ME, Hotez PJ. Global economic burden of Chagas disease: a computational simulation model. Lancet Infect Dis. 2013;13(4):342-8.
5 WHO - World Healt Organization. Enfermedades tropicales desatendidas. 66.ª Asamblea Mundial De La Salud. Resolución WHA66.12, 2013.
6 Bartsch SM, Avelis CM, Asti L, Hertenstein DL, Ndeffo-Mbah M, Galvani A, et al. The economic value of identifying and treating Chagas disease patients earlier and the impact on Trypanosoma cruzi transmission. PLoS Negl Trop Dis. 2018;12(11):e0006809.
7 Shikanai-Yasuda MA, Carvalho NB. Oral transmission of Chagas disease. Clin Infect Dis. 2012;54(6):845-52.
8 OPAS - Organização Pan-americana da Saúde. Doença de Chagas: guia para vigilância, prevenção, controle e manejo clínico da doença de Chagas aguda transmitida por alimentos. Rio de Janeiro: OPAS/OMS; 2009. (Série de Manuais Técnicos, 12).
9 Chagas disease in Latin America: an epidemiological update based on 2010 estimates. Wkly Epidemiol Rec. 2015;90(6):33-43.
10 Terhoch CB, Moreira HF, Ayub-Ferreira SM, Conceição-Souza GE, Salemi VMC, Chizzola PR, et al Clinical findings and prognosis of patients hospitalized for acute decompensated heart failure: Analysis of the influence of Chagas etiology and ventricular function. PLoS Negl Trop Dis. 2018;12(2):e0006207.
11 Monteiro WM, Magalhães LK, de Sá AR, Gomes ML, Toledo MJ, Borges L, et al. Trypanosoma cruzi IV causing outbreaks of acute Chagas disease and infections by different haplotypes in the Western Brazilian Amazonia. PLoS One. 2012;7(7):e41284.
12 Pinto AY, Valente VC, Coura JR, Valente SA, Junqueira AC, Santos LC, et al. Clinical follow-up of responses to treatment with benznidazol in Amazon: a cohort study of acute Chagas disease. Plos One. 2013;8(5):e64450.