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Mas, afinal, por que é importante avaliar o processamento auditivo?

Mas, afinal, por que é importante avaliar o processamento auditivo?

Autores:

Berenice Dias Ramos

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Otorhinolaryngology

versão impressa ISSN 1808-8694

Braz. j. otorhinolaryngol. vol.79 no.5 São Paulo sept./out. 2013

http://dx.doi.org/10.5935/1808-8694.20130097

Quando escutamos uma música, quando assistimos a uma aula ou quando conversamos com alguém, inúmeros processos são desencadeados para que possamos apreciar a melodia, compreender o que está sendo explicado pelo palestrante ou escutar uma conversa e elaborar uma resposta. Durante as 24 horas do dia, somos expostos a várias informações auditivas, muitas delas simultâneas, e compete ao nosso sistema auditivo identificar as mensagens que nos interessam, diminuindo ou anulando as interferências que servem apenas para dificultar o entendimento. A realização destas tarefas conta com a participação do sistema nervoso central e é denominada de processamento auditivo (PA), que se refere à eficiência e à efetividade com que o sistema nervoso central utiliza a informação auditiva. Em outras palavras, PA é um conjunto de habilidades específicas das quais o indivíduo depende para compreender o que ouve.

Estas habilidades incluem a localização do som, a compreensão da fala no ruído, a compreensão de uma mensagem, mesmo quando ela está distorcida ou fragmentada, a capacidade para eleger estímulos apresentados a uma orelha, ignorando informações apresentadas à orelha oposta, o reconhecimento de estímulos diferentes apresentados simultaneamente a ambas as orelhas e a percepção de pequenas e rápidas mudanças nos estímulos sonoros como as diferenças de frequência, intensidade ou duração.

O uso destas habilidades é extremamente importante numa sala de aula, por exemplo, em que o aluno deve focar a atenção no que é dito pelo professor e ignorar qualquer outro estímulo que possa interferir negativamente na escuta: conversa dos colegas, arrastar de cadeiras, passos no corredor, barulho do ventilador, buzinas na rua ou gritaria no pátio da escola. A criança que apresenta bom funcionamento do sistema nervoso auditivo central entenderá a professora com facilidade, enquanto a que tem alteração do PA poderá ter dificuldade em compreender o que está sendo dito, o que pode interferir negativamente no seu processo de aprendizagem.

Numa fala normal, as informações auditivas atingem o sistema nervoso numa sucessão muito rápida. O processamento de cada uma delas deve ser feito em poucos milissegundos, para podermos acompanhar o raciocínio. A criança com transtorno do processamento auditivo temporal poderá apresentar dificuldades para adquirir a linguagem e transtorno da aprendizagem. Isto ocorre, por exemplo, porque a discriminação das sílabas /ba/, /da/, /ga/, /pa/, /ta/, /ka/ é feita à custa dos primeiros 40 milissegundos, o que é um período de tempo curto demais para quem tem dificuldades para detectar estímulos acústicos breves.

Estas dificuldades podem ocorrer em qualquer faixa etária e admite-se que a perda auditiva por um período prolongado seja uma das principais etiologias. Muito se tem falado da alteração do PA decorrente da otite média, principalmente quando esta ocorre nos primeiros dois anos de vida, mas não podemos esquecer o idoso que, ao perder progressivamente a audição, também poderá apresentar dificuldades para compreender a fala, mesmo utilizando um aparelho de amplificação sonora adequado, se este for adaptado muito tempo após o início da perda.

Nos últimos 20 anos, houve um enorme avanço na área das neurociências e isso repercutiu num melhor entendimento também sobre o PA. Os conhecimentos sobre a localização das regiões envolvidas no processamento da fala, linguagem e aprendizagem tornaram-se mais precisos graças à tomografia de emissão de pósitrons e à ressonância magnética funcional. Estas novas tecnologias, utilizadas principalmente por pesquisadores, permitiram também identificar as áreas que decodificam a informação auditiva, as áreas que fazem as análises fonológica, lexical e semântica, assim como as áreas que elaboram as respostas. Exames eletrofisiológicos como o PEATE, EEG, P300 e a magnetoencefalografia conseguem medir o tempo de transmissão e processamento destas informações na escala de milissegundos.

Uma bateria de exames comportamentais, com alta sensibilidade e alta especificidade, auxilia a identificar as habilidades comprometidas e a programar estratégias terapêuticas direcionadas ao problema de cada paciente.

As avaliações audiológicas convencionais não refletem o cotidiano de uma sala de aula, de um escritório, de uma reunião de negócios, de um congresso ou de uma festa. Este talvez tenha sido o motivo da dificuldade, até a presente data, para auxiliarmos pacientes que relatam dificuldade de compreensão da fala e que apresentam audiometrias normais ou muito próximas ao normal. Sempre que um paciente apresentar queixas auditivas incompatíveis com os limiares auditivos, devemos pensar em ampliar a nossa investigação utilizando os métodos diagnósticos disponíveis.

Berenice Dias Ramos, Preceptora da Residência Médica na Área de Otorrinolaringologia Pediátrica e Foniatria do Serviço de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da PUCRS. Mestre em Otorrinolaringologia pela UNIFESP.