Compartilhar

Maturação dos potenciais evocados auditivos de longa latência em crianças ouvintes: análise do complexo P1-N1-P2-N2

Maturação dos potenciais evocados auditivos de longa latência em crianças ouvintes: análise do complexo P1-N1-P2-N2

Autores:

Liliane Aparecida Fagundes Silva,
Fernanda Cristina Leite Magliaro,
Ana Claudia Martinho de Carvalho,
Carla Gentile Matas

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.29 no.4 São Paulo 2017 Epub 04-Set-2017

http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20172016216

INTRODUÇÃO

A audição é um sentido existente no ser humano desde o quinto mês de vida intrauterina. A partir de então, as experiências vividas pelo indivíduo permitem que o Sistema Nervoso Auditivo Central (SNAC) passe por mudanças neurofisiológicas, por meio da plasticidade neuronal, possibilitando o aprendizado auditivo. É este fenômeno de maturação auditiva que permite o desenvolvimento das habilidades auditivas, ou seja, que o indivíduo não seja apenas capaz de ouvir, mas que os estímulos sonoros ouvidos possam ser detectados, discriminados, reconhecidos e compreendidos(1,2).

Nas últimas décadas, os Potenciais Evocados Auditivos de Longa Latência (PEALL), traçados gerados por atividades bioelétricas das vias auditivas centrais após estimulação acústica, têm se mostrado como um recurso capaz de mensurar as modificações neurofisiológicas decorrentes do processo maturacional(3,4). Por ser um potencial exógeno, ou seja, não depende da resposta comportamental do indivíduo, pode ser uma ferramenta útil para avaliar, entre outros, crianças pequenas que ainda não apresentam habilidades auditivas e/ou cognitivas para responder a outras avaliações(5,6).

Por esse motivo, estudos têm utilizado este procedimento para monitorar, objetivamente, a maturação cortical após intervenção fonoaudiológica em crianças com alterações de linguagem(7), após treinamento de processamento auditivo central(8), bem como mensurar os benefícios fornecidos pelo uso de dispositivos eletrônicos, tais como Aparelho de Amplificação Sonora Individual e Implante Coclear(9).

Sabe-se que o desenvolvimento maturacional do SNAC é altamente complexo; sendo assim, é notório que haja muitas variáveis individuais que podem favorecer ou dificultar este processo e, consequentemente, influenciar diretamente os resultados dos PEALL. Estudos descrevem que apenas aproximadamente 41% da variância nos valores de latência pode ser justificada pela maturação com o decorrer da idade cronológica. Os demais valores correspondem a outras variáveis tais como gênero e habilidades cognitivas individuais(10).

Considerando a dificuldade de realização deste procedimento em crianças pequenas, ainda pouco se pode concluir quanto à maturação destes potenciais em crianças ouvintes menores de seis anos de idade, e observa-se uma divergência nos achados da literatura.

De maneira geral, há descrito na literatura que o traçado dos PEALL em crianças pequenas pode ser caracterizado por um grande pico positivo (P1), que emerge entre 100 - 150 ms, seguido de um pico negativo (N2) que pode ser visualizado por volta de 200 - 250 ms; com a maturação do SNAC, é esperado que surjam gradativamente os componentes N1 e P2, advindos de uma bifurcação no componente P1(11-16).

Apesar destes achados, outros estudos observaram com pouca frequência os componentes P1 e N1 em lactentes e crianças, sendo o componente P2 o mais observado(17). Por outro lado, em um outro estudo, foi observado que somente o pico P1 estava claramente presente em crianças de três meses a sete anos de idade(18) e que, ainda, os componentes N1 e P2 são observados com maior frequência a partir dos 12 anos de idade(12).

Vista a divergência entre esses resultados, torna-se evidente a necessidade de mais estudos que avaliem os PEALL em crianças pequenas. Nós hipotetizamos que uma análise longitudinal poderia permitir uma melhor compreensão quanto ao surgimento dos componentes P1, N1, P2 e N2 dos PEALL da mesma forma como ocorrem as modificações nos valores de latência em amplitude em crianças pequenas.

Sendo assim, o objetivo do presente estudo foi monitorar o surgimento e as modificações dos componentes dos PEALL em crianças ouvintes menores de seis anos de idade.

MÉTODO

Estudo clínico do tipo longitudinal constituído por 15 crianças com audição normal, divididas em dois grupos: o Grupo 1 (G1) foi composto por sete crianças (cinco meninas e dois meninos) que tinham idade entre 10 e 35 meses na primeira avaliação, sendo a média de idade de 24 meses; o Grupo 2 (G2) foi composto por oito crianças (quatro meninas e quatro meninos), com idade entre 37 e 63 meses na primeira avaliação, sendo a média de idade de 47 meses.

O estudo foi aprovado pela comissão de ética sob o processo de número 0319/11 e os procedimentos foram realizados após assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos pais ou respectivos responsáveis pelo paciente.

As crianças realizaram uma avaliação auditiva prévia à avaliação eletrofisiológica para descartar possíveis perdas auditivas. A avaliação foi composta por medidas de imitância acústica (timpanometria e pesquisa de reflexos acústicos), e um conjunto de testes subjetivos (audiometria tonal convencional ou condicionada, pelo menos nas frequências de 500, 1.000, 2.000 e 4.000 Hz, e limiar de reconhecimento de fala com ordens simples ou palavras), sendo que estes foram selecionados de acordo com a idade e o grau de compreensão do teste pela criança. Em dois casos, foi necessário realizar o Potencial Evocado Auditivo de Tronco Encefálico (com pesquisa de limiar eletrofisiológico) para complementar os resultados da avaliação comportamental.

Utilizaram-se como critérios de inclusão a ocorrência de curva timpanométrica tipo A com reflexos acústicos presentes, limiares auditivos tonais inferiores a 20 dB NA para todas as frequências testadas e limiar de reconhecimento de fala igual ou até 10 dB NA acima da média dos limiares obtidos nas frequências de 500, 1.000 e 2.000 Hz. Para o Potencial Evocado Auditivo de Tronco Encefálico, o critério de inclusão consistiu na presença das ondas I, III e V a 80 dBnNA para cliques com latências absolutas e interpicos dentro dos limites da normalidade para a faixa etária (de acordo com o Intelligent Hearing Systems Manual) e limiar eletrofisiológico para cliques em 20 dBnNA bilateralmente.

Além disso, foram consideradas, a partir dos dados obtidos na anamnese, crianças sem queixas de comprometimentos linguísticos, cognitivos ou neurais, inclusive que não tinham frequentado terapia fonoaudiológica previamente.

Todas as crianças de ambos os grupos passaram pelos mesmos procedimentos em três diferentes momentos (primeira avaliação, sendo reavaliadas três meses após a primeira avaliação e nove meses após a primeira avaliação) com o intuito de investigar a maturação do SNAC ao longo de nove meses de acompanhamento.

Os registros dos PEALL foram obtidos em uma sala acusticamente tratada com a criança em estado de alerta sentada confortavelmente em uma cadeira reclinável.

As crianças foram orientadas e/ou motivadas a assistirem a um filme sem som durante o procedimento. Devido à inerente dificuldade em trabalhar com crianças tão pequenas, a avaliação foi realizada em apenas uma orelha que foi escolhida randonizadamente.

O equipamento utilizado foi o Smart EP USB Jr da Intelligent Hearing Systems (IHS 5020, Miami, Florida), que possui dois canais de estimulação. O canal A foi usado para captar as respostas do lado direito e o canal B para o lado esquerdo. O posicionamento dos eletrodos seguiu a norma International Electrode System-IES 10-20. O eletrodo de referência foi posicionado na mastoide da orelha testada e conectado na entrada negativa do pré-amplificador, enquanto que o eletrodo ativo foi posicionado em Cz e conectado na entrada positiva. O eletrodo terra foi posicionado em Fpz e conectado na entrada ground do pré-amplificador.

Depois de limpar a pele dos indivíduos com pasta abrasiva, os eletrodos foram fixados com pasta condutiva para eletroencefalograma e fita microporosa. O nível de impedância dos eletrodos foi mantido abaixo de três kOhms.

A estimulação acústica foi apresentada por meio de sistema de campo sonoro com as caixas posicionadas a 90° azimute na distância de 40 cm da orelha testada. O estímulo utilizado foi a sílaba sintetizada /ba/ com duração total de 114.88 ms (75 ms da duração da vogal e 18 ms de duração da consoante) composto pelos seguintes formantes: F1=818Hz; F2=1.378Hz; F3=2.024Hz; F4=2.800Hz; F5=4.436Hz(19,20). Foram apresentados 512 estímulos de polaridade alternada com intervalo interestímulo de 416 ms, taxa de apresentação de 1,9 estímulo por segundo na intensidade de 70 dBnNA. Os filtros passa alto e passa baixo foram de 1 e 30 Hz, respectivamente, com uma janela de análise mantida entre 0 ms pré-estímulo e 500 ms pós-estímulo.

Duas amostras de cada indivíduo foram coletadas a fim de confirmar a presença de resposta eletrofisiológica. Os componentes P1, N1, P2 e N2 dos PEALL foram analisados quanto à presença ou ausência em cada avaliação. Estes componentes foram identificados considerando os valores de latência, a amplitude da onda e a reprodutibilidade do traçado. As medidas de amplitude consistiram na distância (altura) entre um pico positivo e o pico negativo seguinte (P1-N1 e P2-N2).

Para aumentar a acurácia da análise dos resultados, os traçados eletrofisiológicos foram analisados por três profissionais (cegos para o estudo) qualificados para análise dos PEALL.

Os resultados foram analisados estatisticamente e os testes Chi-Square e Mid-P Exact foram utilizados para comparar a proporção de respostas presentes ou ausentes dos componentes P1, N1, P2 e N2 entre as três avaliações e entre ambos os grupos. Foi considerado como diferença estatística p-valor menor do que 0,05. Crianças que tiveram ausência de componentes do PEALL foram excluídas dos cálculos estatísticos.

RESULTADOS

Ao longo dos nove meses de acompanhamento, foi observada presença dos componentes P1 e N2 em 100% dos indivíduos de ambos os grupos desde a primeira avaliação. Os componentes N1 e P2 foram surgindo ao longo do tempo de monitoramento (Figura 1).

Figura 1 Representação da análise dos PEALL obtidos em uma das crianças nos três momentos de avaliação 

Os componentes N1 e P2 foram identificados em 14,2% das crianças do G1 na primeira avaliação e foram tornando-se mais frequentes ao longo do tempo de monitoramento, alcançando um índice de 71,4% na terceira avaliação. Para as crianças do G2, os componentes N1 e P2 foram identificados em 25% das crianças na primeira avaliação, passando para 62,5% após nove meses de monitoramento (Figura 2).

Legenda: G1-Grupo 1; G2- Grupo 2

Figura 2 Porcentagem de indivíduos que tiveram presença dos componentes P1, N1, P2 e N2 nas três avaliações em ambos os grupos 

Uma tendência à significância estatística no que tange à proporção de respostas presentes ao longo dos nove meses de monitoramento foi observada somente no G1 para os componentes N1 e P2 entre a primeira e a terceira avaliação (p-valor próximo a 0,05) (Tabela 1).

Tabela 1 P-valor da diferença de ocorrência dos componentes P1, N1, P2 e N2 entre as avaliações para ambos os grupos 

Comparação entre as avaliações G1 G2
P1 N1 P2 N2 P1 N1 P2 N2
Primeira × Segunda 1,000 0,143 0,315 1,000 1,000 0,365 0,365 1,000
Primeira × Terceira 1,000 0,054 0,054 1,000 1,000 0,178 0,178 1,000
Segunda × Terceira 1,000 0,633 0,347 1,000 1,000 0,657 0,657 1,000
Primeira × Segunda × Terceira 1,000 0,083 0,097 1,000 1,000 0,309 0,309 1,000

Legenda: G1-Grupo 1; G2- Grupo 2

Foi realizada uma análise descritiva dos dados e os valores das médias e dos desvios padrões referentes aos valores de latência e amplitude dos componentes P1, N1, P2 e N2 mensurados em cada avaliação em ambos os grupos estão apresentados nas Tabelas 2 e 3, respectivamente.

Tabela 2 Média dos valores de latência e amplitude dos componentes P1, N1, P2 e N2 nas três avaliações do G1 

Avaliação Latência (ms) Amplitude (µV)
P1 N1 P2 N2 P1-N1 P2-N2
1a N 7 1 1 7 1 1
Média (DP) 129,71 (11,88) 234,00 (---) 261,00 (---) 261,29 (35,36) 4,74 (---) 0,62 (---)
2a N 7 4 3 7 4 3
Média (DP) 127,86 (11,13) 174,50 (36,19) 213,00 (35,79) 253,57 (31,28) 3,41 (3,41) 2,67 (1,43)
3a N 7 5 5 7 5 5
Média (DP) 121,00 (7,83) 173,80 (23,21) 206,60 (36,18) 251,71 (40,04) 3,36 (1,36) 3,35 (1,24)

Legenda: N- Número amostral; DP- Desvio Padrão; ms- milissegundos; µV- microvolts

Tabela 3 Média dos valores de latência e amplitude dos componentes P1, N1, P2 e N2 nas três avaliações do G2 

Avaliação Latência (ms) Amplitude (µV)
P1 N1 P2 N2 P1-N1 P2-N2
1a N 8 2 2 8 2 2
Média (DP) 119,25 (4,40) 202,50 (14,85) 251,00 (41,01) 273,13 (21,09) 5,91 (0,77) 2,23 (2,25)
2a N 8 4 4 8 4 4
Média (DP) 118,25 (5,34) 198,00 (11,52) 238,75 (18,50) 269,00 (19,84) 6,63 (1,02) 2,98 (2,10)
3a N 8 5 5 8 5 5
Média (DP) 117,63 (5,10) 185,40 (11,84) 209,60 (16,23) 259,38 (21,81) 5,63 (1,31) 3,49 (1,92)

Legenda: N- Número amostral; DP- Desvio Padrão; ms- milissegundos; µV- microvolts

Devido ao pequeno número de crianças que tiveram presença dos componentes N1 e P2, especialmente nas duas primeiras avaliações, não foi possível comparar por meio de testes estatísticos os valores de latência destes componentes, bem como os valores de amplitude de P1-N1 e P2-N2 ao longo dos nove meses de monitoramento. Sendo assim, a análise estatística foi composta somente pela análise dos valores de latência dos componentes P1 e N2.

Foi observada diferença estatística nos valores de latência do componente N2 para o G1 entre a 1ª e a 2ª avaliação. Por outro lado, para o componente P1, foi observada diferença estatística nos valores de latência entre a 1ª e 3ª, 2ª e 3ª e entre as três avaliações. Para o G2, foram observadas diferenças estatísticas somente para o componente N2 entre a 1ª e 2ª avaliação, 1ª e 3ª avaliação e entre as três (Tabela 4).

Tabela 4 P-valor das diferenças nos valores de latência dos componentes P1 e N2 entre as três avaliações para ambos os grupos 

Comparação entre as avaliações G1 G2
P1 N2 P1 N2
Primeira × Segunda 0,168 0,047* 0,519 0,036*
Primeira × Terceira 0,007* 0,298 0,317 0,017*
Segunda × Terceira 0,012* 0,868 0,653 0,076
Primeira × Segunda × Terceira 0,001* 0,472 0,537 0,008*

Legenda: G1-Grupo 1; G2- Grupo 2; *p < 0,05

Ao comparar os valores de latência dos componentes P1 e N2 entre ambos os grupos nas três avaliações, foi observada diferença estatística somente na latência do componente P1 na 1ª e 2ª avaliação, sendo que os valores de latência nas crianças do G1 foram maiores do que do G2 (Tabela 5).

Tabela 5 P-valor das diferenças nos valores de latência dos componentes P1 e N2 nas três avaliações entre os grupos G1 e G2 

Comparação entre as avaliações Latência
P1 N2
1ª avaliação 0,037* 0,438
2ª avaliação 0,048* 0,268
3ª avaliação 0,333 0,647

*p < 0,05

DISCUSSÃO

Na literatura, há lacunas a respeito do desenvolvimento dos componentes dos PEALL em crianças pequenas, tanto no que se refere ao surgimento, quanto às modificações nos valores de latência e amplitude. Desta forma, o objetivo do presente estudo foi monitorar o surgimento e as modificações dos componentes dos PEALL em crianças ouvintes menores de seis anos de idade, ao longo de nove meses de monitoramento.

Nos dados obtidos, foi possível observar, em todos os traçados, o componente P1 como uma onda positiva de grande amplitude, que aparece por volta de 120 ms, seguido de uma onda negativa (N2) que pode ser visualizada por volta de 250 ms. Tais resultados concordaram com alguns achados na literatura que afirmaram que os componentes P1 e N2 são os de maior ocorrência em crianças pequenas(11,13,14,21).

Por outro lado, um estudo avaliou os PEALL evocados por estímulo de ruído e observou-se, em crianças com idades entre um mês e cinco anos, predominantemente, o componente P2 em todos os indivíduos. A latência deste componente foi de aproximadamente 174 ms em crianças com faixa etária entre sete e 18 meses e de aproximadamente 134 ms em crianças com idade entre 24 e 66 meses(17). Tais valores, são similares aos valores de latência do componente P1 observado tanto no presente estudo, bem como descrito por outros autores que avaliaram crianças com faixa etária similar(10,18,22,23). É importante destacar que tais achados podem ser derivados apenas de diferentes nomenclaturas, bem como podem ter sido influenciados pelos diferentes protocolos de coleta utilizados para registro dos PEALL, considerando que os componentes P1, N1, P2 e N2 são potenciais exógenos e, portanto, podem sofrer modificações de acordo com as características do estímulo.

No que tange aos componentes N1 e P2, ambos não foram identificados em todos os momentos de avaliação, sendo que foi observado um aumento na porcentagem de presença destes componentes, passando de 14,2% na primeira avaliação para 71,4% na última avaliação no G1, e de 25% para 62,5% no G2 durante o mesmo intervalo de tempo. Estes resultados concordaram com aqueles observados na literatura, os quais relataram observar predominantemente a presença dos componentes P1 e N2 em crianças pequenas e que, com o avançar da idade, os demais componentes surgem de forma gradativa(15,16,24).

Nos casos em que foi visto o surgimento destes componentes (N1 e P2) ao longo dos nove meses, foi possível observar que eles foram originados de uma bifurcação emergente no componente P1, e que foram posteriormente tornando-se mais definidos (Figura 1). Esses dados corroboram alguns achados na literatura que também descreveram este mesmo fenômeno(15,16,25).

Ao compararmos a ocorrência de P1, N1, P2 e N2 ao longo dos nove meses de monitoramento, observa-se que os resultados foram semelhantes em ambos os grupos: no G1 apenas uma criança a mais apresentou os componentes N1 e P2 em comparação ao G2. Considerando a similaridade destes, esses achados poderiam indicar que o surgimento dos componentes dos PEALL poderia estar mais relacionado ao grau de maturação do SNAC do que à idade cronológica. Infelizmente, o pequeno número amostral, impossibilita maiores conclusões; estudos com um maior número amostral se faz necessário para fortalecer estes resultados.

Sabe-se que a maturação do SNAC é dependente de fatores intrínsecos e extrínsecos. Os fatores intrínsecos são relacionados, entre outros, à susceptibilidade do indivíduo e às habilidades de aprendizagem, tais como funções cognitivas de atenção e memória. Por outro lado, os fatores extrínsecos estão relacionados à exposição individual ao ambiente(1,26). Tais variáveis são capazes de prover diferentes ritmos de desenvolvimento e, portanto, resultar em diferenças no tempo de surgimento de cada componente do complexo P1-N1-P2-N2.

Com a estimulação da audição, ocorrem modificações morfológicas e funcionais no SNAC: um maior número de neurônios passa a responder aos estímulos sonoros, há ampliação da ramificação dendrítica, aumento da mielinização neuronal, e melhora das conexões e sincronizações sinápticas. Essa neuroplasticidade possibilita o surgimento gradual dos componentes P1, N1, P2 e N2 presentes nos PEALL que, por sua vez, tornam-se mais definidos em morfologia, com maior amplitude e menor valor de latência conforme a maturação ocorre(15,27).

No que tange aos valores de latência, observou-se presença do componente P1 em torno de 120 ms, seguido de um pico negativo em torno de 250 ms. Estes valores, estão muito próximos do previsto pela literatura em estudos que realizaram os PEALL com estímulo de fala em crianças pequenas(16,24).

Estudos anteriores que avaliaram os valores de latência dos componentes dos PEALL identificaram o componente P1 em crianças de três anos de idade em aproximadamente 130 ms, seguido de um pico negativo observado por volta de 250 a 450 ms(14). Outros autores avaliaram crianças com idades entre três e quatro anos e observaram valores de latência do componente P1 em aproximadamente 107 ms(25).

Alguns autores avaliaram os PEALL com estímulo de fala em indivíduos com uma faixa etária menor do que a avaliada no presente estudo (bebês de três a oito meses) e observaram valores de latência de P1 e N2 maiores do que o do presente estudo (P1 entre 150 e 200 ms e N2 com latências entre 250 e 300 ms)(24). Outros autores observaram em crianças de dois a três anos (faixa etária semelhante à do presente estudo) valores de latência para P1 de 133 a 156 ms e N2 de 242 a 255 ms, e, em crianças de 4 a 8 anos (faixa etária maior do que a do presente estudo), encontraram valores de latência para P1 de 126 a 149 ms e N2 de 238 a 251 ms(16).

Depois de nove meses de estimulação, observou-se uma diminuição dos valores de latência do componente P1 em crianças mais jovens (G1), bem como do componente N2 em crianças mais velhas (G2). Sabe-se que a mielinização, bem como a maturação das fibras nervosas auditivas, ocorre primeiramente em regiões periféricas e se estende gradualmente para as regiões mais centrais do sistema auditivo(26). Este processo é possivelmente responsável pela diminuição dos valores de latência dos componentes do PEALL(15,27). No presente estudo, uma diminuição da latência de P1 nas crianças mais jovens reflete o aumento da mielinização no córtex auditivo primário. Em crianças mais velhas (G2), houve uma maior diminuição nos valores de latência de N2, mostrando maior maturação nas vias auditivas centrais, como o córtex supratemporal.

Observa-se que, de maneira geral, os valores de latência são menores em crianças com idade maior. Ao comparar os dois grupos, apenas o componente P1 mostrou diferença estatística nos valores de latência na primeira e segunda avaliação. No grupo de crianças mais jovens (G1), os valores de latência de P1 eram maiores do que aqueles encontrados no grupo de crianças mais velhas. Os dados deste estudo sugeriram que este componente parece ser um biomarcador do desenvolvimento do sistema auditivo em crianças ouvintes normais.

Em um estudo em crianças entre quatro e 12 anos de idade, observou-se que o efeito principal resultante da maturação foi a diminuição de latência do componente P1 com o aumento da idade, independentemente do local do eletrodo e do tipo de estímulo acústico(28). Para alguns autores, a resposta dos PEALL depende do local do eletrodo de registro, sendo que um único pico pode ser originado por diferentes geradores e que estas áreas podem ter diferentes velocidades de maturação(29). No entanto, os autores deste estudo(29) observaram que existe pouca variação na latência de P1 e N1B de acordo com as diferentes posições de eletrodos no couro cabeludo. Até a idade de dez anos, o componente P2 é muito mais evidente quando registrado com um eletrodo em uma posição mais posterior (Pz) do que em uma posição anterior (Cz e Fz). A latência do componente N2 aumentou de acordo com a idade, com eletrodos em uma posição central (Cz, C3 e C4), mas não se alterou com eletrodos na área frontal (Fz). Infelizmente, os PEALL no presente estudo foram medidos em apenas um canal de registro, no qual o eletrodo foi colocado na posição de Cz. Assim, a análise de vários locais de posicionamento dos eletrodos foi limitada e deverá ser considerada em estudos futuros.

Ressalta-se que uma dificuldade em comparar estudos que avaliam os PEALL é a variedade de protocolos utilizados para coleta dos dados. Considerando que este é um potencial exógeno, ou seja, influenciado pelas características do estímulo, essas variações metodológicas poderiam justificar a grande diversidade de achados existentes na literatura.

Essa variabilidade observada nos estudos dos PEALL, tanto no que se refere aos valores de latência e amplitude, quanto à ocorrência dos componentes do complexo P1-N1-P2-N2, concomitante à dificuldade de realização do procedimento em crianças tão pequenas, resulta em uma dificuldade científica para padronizar os valores de normalidade.

Sendo assim, em casos avaliados individualmente, os PEALL permitem-nos estimar se o funcionamento do SNAC está próximo ao esperado para a idade cronológica, porém não possibilita determinar com precisão se o resultado está normal ou alterado. Tal procedimento parece ser muito eficaz para avaliar o grau de maturação e a neuroplasticidade do SNAC, e, portanto, útil para um monitoramento longitudinal.

Cabe ressaltar que mais estudos, testando diversos tipos de protocolos e com uma amostra maior, se fazem necessários para a melhor compreensão sobre como ocorre o processo maturacional dos PEALL em crianças desta faixa etária.

CONCLUSÃO

O PEALL mostrou-se como um efetivo recurso clínico para monitorar as modificações corticais resultantes do processo maturacional.

No presente estudo, foi observado surgimento gradual dos componentes dos PEALL, bem como diminuição significativa da latência do componente P1 em crianças mais novas e do componente N2 em crianças de maior idade. Estes achados sugeriram que as modificações dos PEALL parecem estar mais relacionadas com a maturação dos SNAC do que com a idade cronológica.

REFERÊNCIAS

1 Boéchat EM. Plasticidade e amplificação. In: Fernandes FDM, Mendes BCA, Navas ALPGP, organizadores. Tratado de fonoaudilogia. 2. ed. São Paulo: Roca; 2010. p. 160-8.
2 Moore DR, Ferguson MA, Halliday LF, Riley A. Frequency discrimination in children: perception, learning and attention. Hear Res. 2008;238(1-2):147-54. PMid:18222053. .
3 Maurer J, Collet L, Pelster H, Truy E, Gallégo S. Auditory late cortical response and speech recognition in digisonic cochlear implant users. Laryngoscope. 2002;112(12):2220-4. PMid:12461344. .
4 Fallon JB, Irvine DRF, Shepherd RK. Cochlear implants and brain plasticity. Hear Res. 2008;238(1-2):110-7. PMid:17910997. .
5 Kraus N, McGee T. Potenciais auditivos evocados de longa latência. In: Katz J. Tratado de audiologia clínica. 4. ed. São Paulo: Manole; 2002. p. 403-20.
6 Hall JW. New handbook of auditory evoked responses. Boston: Allyn & Bacon; 2006.
7 Datta H, Shafer VL, Morr ML, Kurtzberg D, Schwartz RG. Electrophysiological indices of discrimination of long-duration, phonetically similar vowels in children with typical and atypical language development. J Speech Lang Hear Res. 2010;53(3):757-77. PMid:20530387. .
8 Tremblay K, Kraus N, McGee T, Ponton C, Brian O. Central auditory plasticity: changes in the N1-P2 complex after speech-sound training. Ear Hear. 2001;22(2):79-90. PMid:11324846. .
9 Sharma A, Nash AA, Dorman MF. Cortical development, plasticity and re-organization in children with cochlear implants. J Commun Disord. 2009;42(4):272-9. PMid:19380150. .
10 Kabel AH, Mesallam T, Ghandour HH. Follow up of P1 peak amplitude and peak latency in a group of specific language-impaired children. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2009;73(11):1525-31. PMid:19709759. .
11 Wunderlich JL, Cone-Wesson BK. Maturation of CAEP in infants and children: a review. Hear Res. 2006;212(1-2):212-23. PMid:16480841. .
12 Albrecht R, Suchodoletz W, Uwer R. The development of auditory evoked dipole source activity from childhood to adulthood. Clin Neurophysiol. 2000;111(12):2268-76. PMid:11090781. .
13 Ceponiene R, Rinne T, Naatanen R. Maturation of cortical sound processing as indexed by event-related potentials. Clin Neurophysiol. 2002;113(6):870-82. PMid:12048046. .
14 Ceponiene R, Lepisto T, Alku P, Aro H, Naatanen R. Event related potential indices of auditory vowel processing in 3-year-old children. Clin Neurophysiol. 2003;114(4):652-61. PMid:12686274. .
15 Sussman E, Steinschneider M, Gumenyuk V, Grushko J, Lawsond K. The maturation of human evoked brain potentials to sounds presented at different stimulus rates. Hear Res. 2008;236(1-2):61-79. PMid:18207681. .
16 King KA, Campbell J, Sharma A, Martin K, Dorman M, Langran J. The representation of voice onset time in the cortical auditory evoked potentials of young children. Clin Neurophysiol. 2008;119(12):2855-61. PMid:18980862. .
17 Lippé S, Martinez-Montes E, Arcand C, Lassonde M. Electrophysiological study of auditory development. Neuroscience. 2009;164(3):1108-18. PMid:19665050. .
18 Shafer VL, Yu YH, Wagner M. Maturation of cortical auditory evoked potentials (CAEPs) to speech recorded from frontocentral and temporal sites: three months to eight years of age. Int J Psychophysiol. 2015;95(2):77-93. PMid:25219893. .
19 Silva LAF. Maturação cortical em crianças usuárias de implante coclear: análise das medidas eletrofisiológicas e comportamentais [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2015. 98 p.
20 Silva LAF, Couto MIV, Magliaro FCL, Tsuji RK, Bento RF, Carvalho ACM, et al. Cortical maturation in children with cochlear implants: correlation between electrophysiological and behavioral measurement. PLoS One. 2017; 12(6): e0178341. .
21 Bisiacchi PS, Mento G, Suppiej A. Cortical auditory processing in preterm newborns: an ERP study. Biol Psychol. 2009;82(2):176-85. PMid:19631252.
22 Choudhury N, Benasich AA. Maturation of auditory evoked potentials from 6 to 48 months: prediction to 3 and 4 year language and cognitive abilities. Clin Neurophysiol. 2011;122(2):320-38. PMid:20685161. .
23 Benasich AA, Choudhury N, Friedman JT, Realpe-Bonilla T, Chojnowska C, Gou Z. The infant as a prelinguistic model for language learning impairments: Predicting from event-related potentials to behavior. Neuropsychologia. 2006;44(3):396-411. PMid:16054661. .
24 Purdy SC, Sharma M, Munro KJ, Morgan CL. Stimulus level effects on speech-evoked obligatory cortical auditory evoked potentials in infants with normal hearing. Clin Neurophysiol. 2013;124(3):474-80. PMid:23117114. .
25 Gilley PM, Sharma A, Dorman MF, Martin K. Developmental changes in refractoriness of the cortical auditory evoked potential. Clin Neurophysiol. 2005;116(3):648-57. PMid:15721079. .
26 Sharma A, Campbell J, Cardon G. Developmental and cross-modal plasticity in deafness: evidence from the P1 and N1 event related potentials in cochlear implanted children. Int J Psychophysiol. 2015;95(2):135-44. PMid:24780192. .
27 Eggermont JJ, Ponton CW. Auditory-evoked potential studies of cortical maturation in normal hearing and implanted children: correlations with changes in structure and speech perception. Acta Otolaryngol. 2003;123(2):249-52. PMid:12701751. .
28 Kihara M, Hogan AM, Newton CR, Garrashi HH, Neville BR, Haan M. Auditory and visual novelty processing in normally-developing Kenyan children. Clin Neurophysiol. 2010;121(4):564-76. PMid:20080442. .
29 Ponton CW, Eggermont JJ, Kwong B, Don M. Maturation of human central auditory system activity: evidence from multi-channel evoked potentials. Clin Neurophysiol. 2000;111(2):220-36. PMid:10680557. .