Compartilhar

Medicalização e Saúde Indígena: uma análise do consumo de psicotrópicos pelos índios Xukuru de Cimbres

Medicalização e Saúde Indígena: uma análise do consumo de psicotrópicos pelos índios Xukuru de Cimbres

Autores:

Valquiria Farias Bezerra Barbosa,
Luana Beserra Cabral,
Ana Carla Silva Alexandre

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.8 Rio de Janeiro ago. 2019 Epub 05-Ago-2019

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018248.22192017

Introdução

A medicalização é o processo através do qual, problemas não médicos são definidos e tratados como problemas médicos, traduzindo-se em doenças. Dessa forma, o paradigma utilizado é o biomédico, predominante nas sociedades ocidentais, segundo o qual a saúde é entendida como ausência de doença. Consequentemente, esse modelo é centrado no reducionismo, individualismo e na tecnologização1.

O processo de medicalização das questões de saúde individuais e globais baseia-se na capacidade de definir e enquadrar questões cotidianas em relação à doença. Envolve modelos de atenção à saúde e estratégias de cuidados e tratamento que focalizam comportamentos individuais. Esse processo encontra forte apoio na indústria de produtos farmacêuticos e, ao mesmo tempo, ignora os contextos dos sujeitos e coletividade, reduzindo as explicações de problemas e ignorando os fatores sociais, culturais, psicológicos ou ambientais que influenciam o fenômeno1.

Além de ser dispendiosa tanto para os indivíduos como para a sociedade, por depender de formas normativas de pensamento, a medicalização favorece a perda da autonomia do sujeito, a desvalorização do seu contexto e despolitização dos problemas sociais. Desconsidera a complexidade, a relatividade e a multiplicidade das experiências de saúde2.

Assim, tal processo não só precisa ser questionado como também se faz necessário pensar sobre seus efeitos não médicos, um reflexo do processo, a exemplo das dificuldades de inserção das questões do campo da saúde mental numa agenda global de saúde2.

Nessa perspectiva, considera-se importante analisar como a medicalização do sofrimento pode impactar os povos indígenas. O conceito de saúde para esses povos está relacionado à terra e à harmonia com a natureza, entendida como construção coletiva, inserida num sistema de organização próprio, que contempla o equilíbrio do corpo. Assim, alguns elementos são considerados fundamentais à saúde, como: autonomia, cidadania plena, propriedade da terra, uso exclusivo dos recursos naturais e integridade dos ecossistemas específicos3.

Caso os profissionais que atuam nos polos bases de saúde (equivalentes das unidades básicas de saúde) não detenham essa compreensão poderão incorrer no equívoco de considerar o processo de sofrimento mental dos indígenas como transtorno mental indistintamente.

Em 2001, o povo Xukuru do Ororubá vivenciou uma batalha interna, motivada por terra e poder, que resultou na divisão em dois grupos, os Xukuru de Cimbres e os Xukuru do Ororubá. Em 2003, com a morte de um índio da etnia Atikum e um do povo Xukuru do Ororubá, ambos aliados, os Xukuru do Ororubá expulsaram da aldeia os Xukuru de Cimbres de forma violenta, resultando na divisão da comunidade e na fragmentação das relações de parentesco4. Os índios Xukuru de Cimbres migraram para as periferias da cidade de Pesqueira -PE, onde ainda hoje muitas famílias residem, ficando expostas a condições precárias de vida e trabalho4.

Uma vez que o desaldeamento representou uma profunda ruptura para os índios Xukuru de Cimbres, interessa-nos compreender as implicações de seu sofrimento psíquico para a medicalização de sua saúde. Ante ao exposto, esse estudo objetivou investigar o processo de medicalização envolvendo os indígenas do povo Xukuru de Pesqueira após o conflito ocorrido em 2003.

Compreende-se, portanto, que pesquisas como esta contribuem para problematizar e estimular a reflexão sobre as singularidades e pluralidades dos povos indígenas. O ineditismo da presente pesquisa situa-se no fato de que, na literatura, inexistem estudos referentes à medicalização de populações indígenas no Brasil, assim como esse é o primeiro estudo que enfoca a comunidade indígena Xukuru de Cimbres, Pesqueira, PE.

Método

Trata-se de um estudo descritivo, de abordagem quantitativa, desenvolvido com a comunidade indígena Xukuru de Cimbres, localizada no município de Pesqueira- PE, entre fevereiro e junho de 2016.

Na atenção à saúde indígena, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), faz parte do Ministério da Saúde, tem como função coordenar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas bem como a gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS). O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), que presta serviços na atenção básica e de referência de forma descentralizada, faz parte do SasiSUS. Essa organização é norteada por um espaço étnico-cultural dinâmico, geográfico, populacional e administrativo demarcado. Cada DSEI organiza os serviços em articulação com o SUS. No Brasil, existem 34 DSEI e um deles está em Pernambuco3.

A comunidade indígena é atendida por equipes multidisciplinares nos polos bases, que dão cobertura às aldeias e recebem suporte estratégico dos postos de saúde. Em Pesqueira, a gestão dos polos base é de responsabilidade do Instituto Materno-Infantil de Pernambuco, intermediada pelo DSEI – PE. Se o indígena tem necessidade de realizar tratamento fora do domicílio, pode recorrer à Casa de Apoio à Saúde do Índio (CASAI)3.

Os Agentes Indígenas de Saúde (AIS) são fundamentais na prestação dos serviços de atenção primária nas aldeias. Oferecem um serviço diferenciado, sensível ao pluralismo e à diversidade cultural, garantindo o direito de participação da comunidade, individual ou coletivamente, no planejamento e avaliação dos serviços5.

O AIS é o alicerce nesse novo paradigma de saúde indígena, pois tem papel estratégico na medida em que articula o conhecimento tradicional e o sistema de saúde oficial a essa comunicação intercultural5. A cobertura dos AIS aos índios cadastrados no polo base Xukuru de Cimbres é de 100%, o que corresponde 949 índios acompanhados. Na área estudada, os índios são distribuídos por cinco AIS, de acordo com os seus subgrupos, a fim de terem garantido o direito à saúde.

Do total de índios que compõe a tribo Xukuru de Cimbres atendidos no pólo base, foram incluídos na amostra da presente pesquisa os indígenas que atenderam aos seguintes critérios: estar fazendo uso de psicotrópicos durante a coleta de dados, ser cadastrado pelo AIS e ser acompanhado pelas equipes multiprofissionais de saúde indígena. Foram excluídos os sujeitos que abandonaram o tratamento com psicotrópicos sem recomendação médica e os que não estavam presentes na área durante a coleta de dados. A amostra final foi composta por 75 usuários.

O levantamento dos dados foi desenvolvido mediante a utilização de um instrumento aplicado aos AIS, com variáveis objetivas relativas ao consumo de psicotrópicos pelos índios atendidos no polo base Xukuru de Cimbres e sob sua responsabilidade. A coleta realizou-se com data pré-estabelecida pelos AIS, em local adequado para a aplicação do questionário, mediante a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. O questionário foi submetido a uma pré-testagem a fim de se avaliar sua clareza e reprodutibilidade por meio de sua aplicação a profissionais de saúde da rede SUS que não compuseram a amostra do estudo. Após a categorização dos dados, os usuários foram divididos em três grupos: pacientes que utilizam Benzodiazepínicos (BZD), os que utilizam Antidepressivos e os que fazem uso de outros psicotrópicos.

Os dados foram armazenados no editor de dados do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 18.0, que também foi utilizado como ferramenta de análise. O teste Qui-Quadrado foi utilizado para comparação de variáveis qualitativas , usando o intervalo de confiança de 95%. O programa mencionado é de acesso livre, não se exigindo licença de uso.

Por se tratar de estudo com população especial, o projeto foi apresentado inicialmente ao conselho local de saúde da comunidade Xukuru de Cimbres e por ele aprovado. A seguir, submeteu-se à apreciação do Conselho Distrital de Saúde Indígena, pelo qual foi aprovado por unanimidade. Finalmente, foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Centro Universitário ASCES-UNITA e à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa que, por fim, emitiu o parecer consubstanciado favorável atendendo a Resolução CNS 466/2012.

Resultados

O presente estudo analisa o consumo de psicotrópicos por índios cadastrados no polo base Xukuru de Cimbres. Do total da amostra analisada, observa-se que 8% (75) da população indígena estudada faz uso de psicotrópicos. Entre os psicotrópicos consumidos, 78,67% (59) dos indígenas faz uso de BZD; 17, 33% (13) utiliza Antidepressivos e 4% (3) consome outros psicotrópicos, como Barbitúricos, Antipsicóticos e composto do Lítio.

A Tabela 1 apresenta as características sociodemográficas dos indígenas componentes da amostra. A respeito da idade, percebe-se que os adultos com faixa etária de 30 a 59 anos perfazem o maior percentual dos usuários que utilizam BZD (72,88%), 46,15% entre os que usam Antidepressivos e 66,67% dos que fazem uso de outros psicotrópicos. Quanto à renda, o grupo que faz uso de BZD e Antidepressivos, 84,75% e 76,92%, respectivamente, possui renda maior que um salário mínimo. Com relação ao estado civil, o grupo de indígenas que faz uso dos BZD (50,85%) e outros psicotrópicos (66,67%) é casado, enquanto que a maioria dos que utilizam Antidepressivos (61,24%) tem outros tipos de relacionamentos. Observa-se que as índias são maioria quanto ao uso dos três grupos de psicotrópicos, com maior representatividade para as que fazem uso de BZD (72,88%).

Tabela 1 Análise sócio demográfica segundo o consumo de psicotrópicos na população indígena cadastrada no Polo Base Xukuru de Cimbres, no ano de 2016, Pesqueira -PE. 

Variáveis Benzodiazepínico
nº (%)
Antidepressivo
nº (%)
Outros Psicotrópicos
nº (%)
P
Idade
Menor de 18 anos 0 (0) 1 (7,69) 1 (33,33) 0,007
Entre 19 e 29 anos 1 (1,70) 1 (7,69) 0 (0)
Entre 30 e 59 anos 43 (72, 88) 6 (46,15) 2 (66,67)
60 anos ou mais 15 (25,42) 5 (38,47) 0 (0)
Renda
< 1 salário mínimo 9 (15,25) 3 (23,08) 2 (66, 67) 0,075
> 1 salário mínimo 50 (84,75) 10 (76,92) 1 (33,33)
Estado Civil
Solteiro 15 (25,42) 2 (15,38) 0 (0) 0,085
Casado 30 (50,85) 3 (23,08) 2 (66, 67)
Outros 14 (23,72) 8 (61,54) 1 (33,33)
Sexo
Masculino 16 (27,12) 1 (7,69) 0 (0) 0, 201
Feminino 43 (72,88) 12 (92,31) 3 (100)
Total 59 (100) 13 (100) 3 (100)

A Tabela 2 apresenta a associação de variáveis sociais e o uso do psicotrópico. Observa-se nesta pesquisa que a quantidade de moradores por residência é em torno de 3 a 5 índios nos três grupos de usuários de psicotrópicos, representando 49,5% (29) dos que usam BZD; 76,92% (10) dos que utilizam Antidepressivos e 66,67% (2) outros psicotrópicos. Quanto ao número de filhos, predomina no grupo que usa BZD um quantitativo de mais que 2 filhos (38,98%). Com relação à propriedade da casa, dentre todos os grupos que usam psicotrópicos, a maioria é proprietária do imóvel.

Tabela 2 Análise social segundo o consumo de psicotrópicos na população indígena cadastrada no Polo Base Xukuru de Cimbres, no ano de 2016, Pesqueira-PE. 

Variáveis Benzodiazepínico
nº (%)
Antidepressivo
nº (%)
Outros
nº (%)
P
Moradores na Residência
Entre 1 e 2 21 (35,59) 2 (15,38) 1 (33,33) 0,431
Entre 3 e 5 29 (49,15) 10 (76,92) 2 (66,67)
Mais de 5 9 (15,25) 1 (7,69) 0 (0)
Total 59 (100) 13 (100) 3 (100)
Números de Filhos
Sem filhos 14 (23,72) 1 (7,69) 1 (33,33)
Entre 1 e 2 22 (37,28) 6 (46,15) 2 (66,67) 0,461
Mais de 2 23 (38,98) 6 (46,15) 0 (0)
Total 59 (100) 13 (100) 3 (100)
Propriedade da Casa
Própria 52 (88,13) 12 (92,30) 2 (66,67) 0,467
Alugada 7 (11,86) 1 (7,69) 1 (33,33)
Total 59 (100) 13 (100) 3 (100)
Profissões
Agricultor 16 (27,11) 2 (15,38) 1 (33,33) 0,949
Aposentado 18 (30,50) 4 (30,67) 1 (33,33)
Nenhum 11 (18,64) 3 (23,07) 0 (0)
Outras 14 (23,72) 4 (30,67) 1 (33,33)
Total 59 (100) 13 (100) 3 (100)

A Tabela 3 aponta a tendência à cronificação do uso de psicotrópicos e a relação com os métodos de curas tradicionais. Quanto à associação entre diferentes métodos terapêuticos, 52,54% (31) dos usuários que utilizam BZD e 66,67% (2) dos que usam outros psicotrópicos utilizam apenas a medicação prescrita, enquanto 53,84% (7) dos que usam Antidepressivos, além da medicação prescrita, buscam acompanhamento da equipe de saúde mental do DSEI -PE.

Tabela 3 Análise de variáveis segundo o tempo de uso e o tipo de terapêutica utilizada na população indígena cadastrada no Polo Base Xukuru de Cimbres em 2016, Pesqueira-PE. 

Variáveis Terapêutica Medicamentosa
Benzodiazepínico
nº (%)
Antidepressivo
nº (%)
Outros
nº (%)
P
Outras terapêuticas
Apenas a medicação prescrita. 31 (52,54) 4 (30,76) 2 (66,67)
Práticas de curas tradicionais indígenas 10 (16,94) 2 (15,38) 0 (0) 0,492
Acompanhamento psicológico DSEI 18 (30,50) 7 (53,84) 1 (33,33)
Busca pelo Pajé 0, 564
Sim 4 (6,77) 0 (0) 0
Não 55 (93,22) 13 (100) 3 (100)
Tempo de Uso
Menor que 1 ano 2 (33,89) 0 (0) 0 (0) 0,761
Entre 1 e 2 anos 8 (13,55) 3 (23,07) 1 (33,33)
Maior que 2 anos 49 (83,05) 10 (76,92) 2 (66,67)
Total 59 (100) 13 (100) 3 (100)

A maioria dos usuários de psicotrópicos dos três grupos não procura o pajé, correspondendo a 93,22% (55) dos que usam BZD e 100% dos usuários de Antidepressivos (13) e outros psicotrópicos (3). Já no quesito tempo de uso, a maioria dos grupos estudados utiliza o psicotrópico há mais de 2 anos, resultado representado por 83,05% (49) dos que usam BZD; 76,92% (10), dos que utilizam Antidepressivos; e 66,67% (2) dos que consomem outros psicotrópicos.

Discussão

Os BZD são as drogas mais consumidas mundialmente, principalmente para combater a insônia e ansiedade. Destacam-se nesse grupo o Alprazolam® e o Diazepam®. Os efeitos dos BZD envolvem a sedação, hipnose, diminuição da ansiedade, relaxamento muscular, amnésia retrógada e atividade anticonvulsivante. Apesar de seu baixo custo, é importante ressaltar que o uso prolongado dos BZD produz tolerância e, consequentemente, dependência. A interrupção do tratamento, por sua vez, resulta em sintomas de abstinência, como: ansiedade, agitação, hipersensibilidade à luz e aos sons, parestesias, câimbras musculares, abalos mioclônicos, distúrbios do sono e tontura6.

A depressão e os transtornos de ansiedade são as doenças mentais que mais acometem a população mundial, cerca de 10 a 15%, em algum período da vida. Em relação ao tratamento da depressão, os usuários de Antidepressivos podem responder em poucos dias ou até quatro semanas. Entre os principais efeitos adversos dos Antidepressivos, tomando como exemplo os tricíclicos, estão: aumento da pressão arterial, taquicardias, arritmias e, em casos extremos, infarto, parada cardíaca e acidentes vasculares cerebrais. Vale salientar ainda a perda da libido, impotência e edema testicular7.

Diante dos vários efeitos colaterais e adversos secundários ao uso dessas drogas, exige-se boas práticas na prescrição e acompanhamento terapêutico, principalmente em idosos, uma vez que, com o passar dos anos, altera-se a absorção das drogas pelo organismo, fazendo o tempo de meia vida aumentar. Assim, a equipe multiprofissional deve estar atenta às especificidades de cada indivíduo, principalmente no início do uso8.

O presente estudo aponta questões complexas, transversais ao processo de medicalização do sofrimento, como as que concorrem para o uso abusivo, a automedicação e prescrição indiscriminada dos psicofármacos. Dessa forma, a prescrição consciente e orientação direcionada ao usuário quanto à autoadministração desses medicamentos contribuirá para prevenir a cronificação do uso, potencializando seus efeitos terapêuticos9.

No entanto, estudos nacionais e internacionais apontam que caminhamos num sentido contrário ao anteriormente proposto. Em estudo realizado nos Estados Unidos, 10% dos participantes referiu ter usado anualmente BZD, com prescrições em torno de 20 milhões10.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária observou, em 2011, que 44% dos remédios vendidos nas farmácias e drogarias brasileiras foram indicados para a terapêutica de transtornos mentais ou de comportamento. Ainda nessa pesquisa, constatou-se que foram vendidas cerca de 10 milhões de caixas do psicotrópico Clonazepam®, da classe farmacológica dos BZD, o que resultou em um custo de R$ 92,4 milhões para a população brasileira, apenas com esse medicamento11. O uso irracional dos psicotrópicos no Brasil tem sido descrito como um relevante problema de saúde pública12.

Esse panorama aponta para a importância dos estudos relativos ao perfil de consumidores de psicotrópicos na população brasileira, ainda escassos principalmente em anos mais recentes, incluindo-se as populações indígenas, uma vez que o presente estudo evidencia que o consumo de psicotrópicos é também uma realidade nesse contexto étnico.

Quanto à renda dos indígenas participantes do estudo é importante destacar que, quando viviam na aldeia, sua principal atividade econômica era a agricultura familiar. No entanto, para viver em uma área urbana, necessita-se de maiores recursos financeiros. Além disso, há que se considerar a partilha, característica peculiar à vida em coletividade, própria de aldeias e comunidades rurais, o que quase não se percebe no ambiente hostil das cidades.

A baixa renda familiar influencia no processo saúde-doença e, geralmente, favorece a medicalização do sofrimento, uma vez que vários problemas de ordem não psíquica, relacionados a fatores socioeconômicos, são abordados através da prescrição medicamentosa como solução imediata para o sofrimento. Assim, invisibiliza-se os fatores predisponentes ao adoecimento, a exemplo do desemprego ou do subemprego, induzindo-se o consumo de psicotrópicos13.

Pode-se encontrar na literatura diferentes evidências sobre a relação entre o estado civil e o consumo de psicofármacos, que vão desde uma associação positiva entre ser casado, ter história familiar de transtornos mentais e fazer uso de BZD12, como, em outro estudo, associação positiva entre ser solteiro e consumir BZD e Antidepressivos14.

Um estudo realizado no município de Coronel Feliciano-MG, aponta que, dentre as pessoas que fazem uso de psicotrópicos, a maioria são mulheres15. Em Sorocaba-SP, 75% dos usuários de psicotrópicos eram mulheres12. Em Recife-PE, na Unidade de Saúde da Família Chico Mendes e no Distrito Sanitário Ximboré, as mulheres usuárias de psicotrópicos representaram 71% da amostra do estudo13.

Entre os fatores determinantes e condicionantes desse processo entre as mulheres, descritos na literatura, estão a assiduidade nos serviços de saúde, a desigualdade nas questões de gênero tão fortemente presentes no contexto brasileiro, o estilo de vida estressante, a sobrecarga em diversos aspectos do ser mulher em uma sociedade machista e não igualitária. Esses são alguns elementos que estão intimamente relacionados ao uso e, consequentemente, ao aumento da demanda dessas mulheres, principalmente pelos BZD13-15.

Conforme discute Rose16, o processo de medicalização incide mais sobre as mulheres do que sobre os homens; opera de diferentes maneiras sobre diferentes classes sociais, em diferentes países e regiões do mundo.

No contexto dos índios Xukuru de Cimbres percebe-se um afastamento dos valores e práticas que advém de sua cosmologia. Na aldeia, o índio estava perto da natureza e podia recorrer a ervas, raízes, flores e ao conhecimento transmitido por seus ancestrais, um processo complexo, coletivo e de transmissão intergeracional. O pajé figurava como líder espiritual que está à disposição para curar as doenças do corpo e da alma3. No entanto, os resultados desse estudo apontam para a perda da referência do pajé e outros sujeitos que dominam as práticas de curas tradicionais entre os indígenas Xukuru de Cimbres.

Apesar de não haver, no presente estudo, associação estatisticamente significativa entre o uso dos fármacos e a utilização de métodos tradicionais de cura indígena, faz-se perceptível o impacto do desaldeamento, desterritorialização e aculturação na predominância de práticas terapêuticas alopáticas características do modelo biomédico, em detrimento das práticas tradicionais de cura indígenas, que envolvem rituais, rezas, banhos, chás e beberagens3.

Os psicotrópicos, quando administrados adequadamente, ajudam no cuidado, porém deveriam ser usados por um período curto ou médio, levando-se em consideração os prejuízos que o seu uso pode causar em longo prazo. Por outro lado, as drogas psicoativas nem sempre são as melhores escolhas, e não devem ser consideradas como único tratamento6,7.

Essa realidade está também presente no contexto da atenção primária de saúde. Nas Unidades de Saúde da Família, o atendimento em saúde mental está muitas vezes condicionado à consulta médica e à prescrição de medicamentos, sustentando e fortalecendo a conduta terapêutica biomédica para o transtorno mental diagnosticado. Esse tipo de vivência favorece o processo de medicalização e não atende aos anseios dos indivíduos em sua singularidade e complexidade17,18.

Quando Peter Conrad, dentre outros cientistas sociais, analisam o processo de medicalização segundo o qual problemas não médicos são compreendidos e tratados como problemas médicos19, não o fazem de modo a atribuir-lhe um valor social, de forma que as mudanças e fenômenos que o compõem não devam ser consideradas a priori como boas ou más20.

Ao contrário, Conrad estabelece uma clara diferenciação entre “over-medicalisation” que poderia ser traduzido como sobre, super ou excessiva medicalização, que traz em si efeitos negativos e “medicalisation” que não deve ser considerada em princípio má20. Nessa direção, faz-se necessário analisar em cada contexto específico os impactos do processo de medicalização sobre os indivíduos e coletividades.

Considera-se como aspectos limitantes da pesquisa o fato de não ter sido possível acessar os prontuários dos índios para que se pudesse comparar o diagnóstico médico com as formas terapêuticas prescritas, assim como com a queixa principal dos usuários, relacionando-as à indicação do psicotrópico. Outro ponto limitante foi a não distinção entre os filhos e netos das pessoas que sofreram diretamente com o conflito, dado que poderia ter enriquecido a pesquisa com o estudo das consequências dos traumas sofridos para as gerações mais jovens.

Conclusão

Este estudo revelou o perfil dos usuários de psicotrópicos dos índios atendidos no polo base Xukuru de Cimbres.

Os resultados apresentados evidenciam elevados índices de consumo de psicotrópicos pelos indígenas Xukuru de Cimbres e, em contrapartida, um distanciamento das práticas tradicionais de cura. Os achados mostraram também uma população adulta vulnerável do ponto de vista socioeconômico e uma tendência à cronificação do consumo dos psicotrópicos. Esses achados apontam para um processo de medicalização da vida em um contexto étnico bastante singular, vinculado a um modelo de atenção à saúde fragmentário, biologicista e centrado na prescrição medicamentosa.

O silenciamento e invisibilidade do sofrimento psíquico dos indígenas Xukuru de Cimbres ante ao processo de ruptura sociocultural, política e econômica vivenciado estão entre as consequências desse modelo medicalizante que se distancia dos avanços do modelo de atenção psicossocial brasileiro.

São necessários investimentos em novos estudos sobre medicalização que levem em consideração a diversidade e especificidade das questões étnico-raciais presentes na população brasileira. Tais estudos permitirão ampliar a compreensão sobre áreas, entre as quais a saúde mental, onde a agenda global de saúde e sua formulação de problemas são deslocadas para soluções médicas e técnicas, negligenciando a necessária ação social, comunitária ou política2.

REFERÊNCIAS

1 Clark J. Medicalization of global health 1: has the global health agenda become too medicalized? Glob Health Action 2014; 7(23998):1-6.
2 Clark J. Medicalization of global health 2: the medicalization of global mental health. Glob. Health Action 2014; 7(24000):1-6.
3 Conselho Indigenista Missionário (CIMI). A Política de Atenção à Saúde Indígena no Brasil. Breve recuperação histórica sobre a política de assistência à saúde nas comunidades indígenas. Brasília: CIMI; 2013.
4 Cavalcanti B. No tacho, o ponto desandou: história de Pesqueira, de 1930 a 1950. Recife: Editora Baraúna; 2007.
5 Diehl EE, Langdon EJ, Dias-Scopel RP. Contribuição dos agentes indígenas de saúde na atenção diferenciada à saúde dos povos indígenas brasileiros. Cad Saude Publica 2012; 28(5):819-831.
6 Mihic SJ, Harris RA. Hipnóticos e Sedativos. In: Brunton LL, Knollmann CBC, editores. As bases farmacológicas da terapêutica Goodman e Gilman. Porto Alegre: AMGH; 2012. p. 303-324.
7 Santos JES. Fármacos que atuam nos distúrbios emocionais: depressão e ansiedade. In: Almeida JRC, Cruciol JM, editores. Farmacologia e terapêutica clínica para a equipe de enfermagem. São Paulo: Atheneu; 2014. p. 307-339.
8 Terassi M, Rissardo LK, Peixoto JS, Salci MA, Carreira L. Prevalência do uso de medicamentos em idosos institucionalizados: um estudo descritivo. OBLN 2012; 11(1):26-39.
9 Alfena MD. Uso de psicotrópicos na atenção primária [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública; 2015.
10 Buysse DJ. Insomnia. JAMA 2013; 309(7):706-716.
11 Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC). Panorama dos Dados do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados: um Sistema para o Monitoramento de Medicamentos no Brasil. Boletim de Farmacoepidemiologia da Anvisa [documento da internet] 2011.[acessado 2016 Ago 10]. Disponível em:
12 Naloto DCC, Lopes FC, Filho SB, Lopes LC, Fiol FSD, Bergamaschi CC. Prescrição de benzodiazepínicos para adultos e idosos de um ambulatório de saúde mental. Cien Saude Colet [periódico na Internet] 2015. [acessado 2016 Set 02]; 21(4):1267-1276. Disponível em:
13 Lira AC, Lima JG, Barreto MNSC, Melo TMAG. Perfil de usuários de benzodiazepínicos no contexto da atenção primária à saúde. Rev. APS [periódico na Internet] 2014 [acessado 2016 ago 11]; 17(2):223-228. Disponível em:
14 Souza ARL, Opaleye ES, Noto AR. Contextos e padrões do uso indevido de benzodiazepínicos entre mulheres. Cien Saude Colet [periódico na Internet] 2013.[acessado 2016 Set 05]; 18 (4):1131- 1140. Disponível em:
15 Firmino KF, Abreu MHNG, Perini E, Magalhães SMS. Fatores associados ao uso de benzodiazepínicos no serviço municipal de saúde da cidade de Coronel Fabriciano, Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica [periódico na Internet] 2011 [acessado 2016 Set 04]; 27 (6):1223-1232. Disponível em:
16 Rose N. Beyond Medicalisation. Lancet 2007; 369(9562):700-702.
17 Alvarenga JM, Giacomin KC, Loyola Filho AI, Uchoa E, Firmo JOA. Uso crônico de benzodiazepínicos entre idosos Rev Saude Publica [periódico na Internet] 2014.[acessado 2016 out 10]; 48(16):866-72. Disponível em:
18 Bezerra IC, Jorge MSB, Gondim APS, Lima LL, Vasconcelos, MGF. Fui lá no posto e o doutor me mandou foi pra cá: processo de medicamentalização e (des)caminhos para o cuidado em saúde mental na atenção primária. Interface (Botucatu) [periódico na Internet] 2014 .[acessado 2016 Out 7];18(48):61-74. Disponível em:
19 Conrad P. The Medicalization of Society: On the Transformation of Human Conditions into Treatable Disorders. Baltimore: The Johns Hopkins University Press; 2007.
20 Parens E. On Good and Bad Forms of Medicalization. Bioethics 2011; 27(1):28-35.