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Medicamentos utilizados em população pediátrica com fibrose cística

Medicamentos utilizados em população pediátrica com fibrose cística

Autores:

Stella Pegoraro Alves,
Márcia de Azevedo Frank,
Denise Bueno

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.16 no.4 São Paulo 2018 Epub 08-Nov-2018

http://dx.doi.org/10.31744/einstein_journal/2018ao4212

INTRODUÇÃO

A fibrose cística (FC), ou mucoviscidose, é uma doença hereditária, autossômica recessiva, letal, muito comum entre caucasianos, caracterizada por uma anormalidade de produção e função do gene cystic fibrosis transmembrane conductance regulator (CFTR). De caráter multissistêmico, a FC afeta órgãos e tecidos que expressam o CFTR, incluindo aparelhos respiratório, gastrintestinal e reprodutor; fígado e células secretoras.(1,2)

A doença exige controle e tratamento intensivos com medicamentos ingeridos e inalados, nebulizações, antibióticos, enzimas pancreáticas e suplementos nutricionais, além de técnicas de fisioterapia respiratória. Estes cuidados são realizados inúmeras vezes ao dia, para se alcançar efeito benéfico.(1,3)A sobrevida destes pacientes é dependente de diversos fatores, como acesso irrestrito a medicamentos e demais componentes do tratamento, e educação apropriada dos familiares e cuidadores sobre a doença e a dinâmica da terapêutica.(4)

Os dados obtidos da rotina e da dinâmica do tratamento dos pacientes, como doses e frequências dos medicamentos, suas formas de aquisição e a dificuldade para adquiri-los, e o entendimento de seu uso, permitem que a equipe multiprofissional defina estratégias que impactem positivamente na qualidade do cuidado, evitando reinternações desnecessárias.(5,6)

Reconhecer a importância da prescrição e a utilização dos medicamentos, no caso da FC, possibilita intervenções para a promoção do uso racional de medicamentos e o aprimoramento dos serviços assistenciais.(7)

OBJETIVO

Descrever o perfil dos medicamentos utilizados por pacientes pediátricos com fibrose cística.

MÉTODOS

Estudo transversal, descritivo, realizado com cuidadores de pacientes com FC atendidos em ambulatório de pneumologia pediátrica de um centro de referência para a doença de um hospital universitário do Estado do Rio Grande do Sul. Este serviço era um dos três centros de referência para a doença no Estado e funcionava duas vezes por semana. Os pacientes eram atendidos mensalmente ou a cada 2 meses − a frequência de atendimento dependia do estado clínico do paciente −, para controle e revisão do tratamento, por uma equipe multiprofissional, composta por médicos, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, educadores físicos, psicólogos, assistentes sociais e farmacêuticos. A equipe assistencial se revezava nos atendimentos, enquanto o paciente permanecia no consultório. Esta medida foi adotada para evitar contaminação por bactérias multirresistentes, uma vez que muitos dos pacientes já apresentavam colonização por estes patógenos.

A escolha dos respondentes foi aleatória, considerando tratar-se de uma unidade pediátrica. Os cuidadores selecionados foram convidados pelo farmacêutico para participar de uma entrevista, a qual foi realizada em um único encontro. Foram incluídos no estudo cuidadores que acompanhavam pacientes com diagnóstico confirmado de FC, atendidos entre dezembro de 2014 e maio de 2015, no serviço de ambulatório. Foram excluídos cuidadores que não aceitaram assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e/ou o Termo de Assentimento.

Para a coleta, foram utilizados dois instrumentos elaborados pelos autores deste estudo, que foram aplicados e adequados previamente.(4)O primeiro instrumento recolheu dados clínicos do paciente obtidos através do prontuário on line. O segundo foi aplicado durante a consulta farmacêutica onde foram realizadas perguntas ao cuidador do paciente na forma de entrevista.

Foram coletadas e sistematizadas em banco de dados específico as variáveis: sexo, idade, município residente, entendimento da doença, mutação, presença de complicações respiratórias, de insuficiência pancreática e de outras doenças e/ou comorbidades associadas, locais de acompanhamento de saúde fora do ambulatório, diagnóstico nutricional, via de alimentação, responsável pelo tratamento, bacteriologia do escarro e realização da fisioterapia e de exercícios físicos.

Os cuidadores responderam sobre dados relacionados a medicamentos. Todos os dados foram adquiridos por entrevista. As respostas destes cuidadores sobre forma de uso, dose, frequência, via de administração e forma de entendimento da indicação terapêutica, forma de aquisição e dificuldade para cumprir o plano terapêutico foram registradas e deram origem aos dados deste estudo.

Para avaliação do entendimento da doença, os cuidadores responderam as seguintes perguntas: O que entende sobre FC? Quais os sintomas? Quais as consequências da FC? Qual a importância de se realizar o tratamento corretamente? As respostas obtidas foram classificadas como entendimento bom, regular ou ruim.

Os medicamentos foram classificados conforme a classificação Anatomical Therapeutic Chemical (ATC), de acordo com a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) 2014/2015(8)e a relação dos medicamentos da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (SES/RS).(9)

Os dados obtidos foram armazenados no programa Excel e analisados utilizando o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 22.0. Utilizou-se o teste de Kolmogorov-Smirnov para avaliar a normalidade das variáveis, por meio do qual verificou-se que elas possuíam distribuição assimétrica, optando por expressá-las por meio de medianas. As variáveis categóricas foram descritas por frequências absolutas e relativas, e, para associá-las, foi utilizado o teste χ 2 . O mesmo teste foi utilizado para avaliar associações entre variáveis categóricas. Para as variáveis contínuas, empregou-se o teste Mann-Whitney. Para avaliar diferenças entre três ou mais grupos, foi empregado o teste Kruskal-Wallis. Para todos os testes, foi considerado o nível de significância de p<0,05.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Grupo de Pesquisa e Pós-Graduação do hospital onde o estudo foi realizado, sob o número 802.201, CAAE: 33940114.8.0000.5327.

RESULTADOS

No período do estudo, o centro de referência apresentou, em seus registros, 119 pacientes com diagnóstico confirmado de FC cadastrados. Foram analisados dados de 78 pacientes (65,5%). A maioria dos pacientes era do sexo feminino (53,8%), branca (98,7%) e procedente do interior do Estado do Rio Grande do Sul ( Tabela 1 ). A mutação da doença mais frequente foi heterozigoto para F508del (37,7%). A faixa etária variou de 4 meses a 21 anos e 5 meses (mediana de 9,7 anos). Cerca de 40% dos pacientes tiveram seu diagnóstico confirmado até o primeiro mês de vida. Um paciente foi a óbito durante o estudo.

Tabela 1 Características gerais dos pacientes 

Características n (%)
Sexo
Feminino 42 (53,8)
Masculino 36 (46,2)
Procedência
Interior do Estado do Rio Grande do Sul 52 (66,7)
Região metropolitana 14 (17,9)
Capital 8 (10,3)
Outros Estados 4 (5,1)
Acompanhamento de saúde
Exclusivamente ambulatorial 43 (55,1)
Outros serviços de saúde 35 (44,9)
Cuidador
Mãe 72 (92,3)
Avó 2 (2,6)
Pai 1 (1,3)
Sem cuidador/responsável 3 (3,8)
Responsável pelo tratamento
Cuidador 55 (70,6)
Cuidador e paciente 20 (25,6)
Paciente 3 (3,8)

Tinham acompanhamento de saúde exclusivamente no ambulatório do hospital 43 pacientes (53,8%). Os demais eram vinculados a outros locais e serviços de saúde.

As doenças e/ou comorbidades associadas foram identificadas em 33 pacientes (42,3%), sendo a hepatopatia crônica a mais descrita (16,7%), seguida de diabetes mellitus , pólipos nasais, depleção de volume, constipação e rinite alérgica. Mais da metade dos pacientes (56,4%) apresentavam alguma complicação pulmonar, sendo o baqueteamento digital a mais frequente (47,4%), seguida de bronquiectasias (34,6%). A insuficiência pancreática esteve presente em 89,7% dos prontuários dos pacientes, e, em 35,9%, foi mencionado o escore hepático alterado (>3). As informações sobre o escore hepático não constavam no prontuário em 10,3% (n=8).

Na análise farmacoterapêutica dos medicamentos prescritos por paciente, observou-se variação de 2 a 16 medicamentos, com média de 6,5 medicamentos/paciente, totalizando 509 medicamentos prescritos. Quando perguntado aos entrevistados sobre o entendimento da utilização de cada medicamento, este número diminui para 424 (83,3%) medicamentos.

Os valores da tabela 2 demonstram associação entre variáveis clínicas dos pacientes e os medicamentos prescritos. Pacientes com complicação pulmonar e doenças e/ou comorbidades associadas à FC apresentavam mais medicamentos prescritos.

Tabela 2 Variáveis clínicas dos pacientes, de acordo com os medicamentos prescritos 

Variáveis Medicamentos prescritos (mediana) Valor de p
Complicação pulmonar
Não 5 <0,001*
Sim 7
Insuficiência pancreática
Não 5 0,069*
Sim 6
Eutrofia
Não 6 0,851*
Sim 6
Doença e/ou comorbidade
Não 6 0,003*
Sim 7
Acompanhamento ambulatorial exclusivo
Não 6 0,935*
Sim 6
Dificuldade no tratamento
Não 6 0,051*
Sim 7
Responsável pelo tratamento
Cuidador 6 0,096
Paciente 8
Cuidador e paciente 7

* Valor de p para teste de Mann-Whitney;valor de p para teste de Kruskal-Wallis.

Pacientes com insuficiência pancreática (p=0,006), doença e/ou comorbidades associadas (p=0,005) e que expressaram ter alguma dificuldade na realização do tratamento (p=0,031) apresentaram maior entendimento do uso de medicamentos que aqueles que não possuíam estas características.

Dentre os medicamentos prescritos, 265 pertenciam à Rename, sendo 26,7% do componente básico da assistência farmacêutica e 25,4% do componente especializado.

Da seleção de medicamentos da SES/RS, foram prescritos 289 medicamentos, sendo 12% do componente básico, 24,7% do especializado, 34,8% do especial e 28,5% não constavam na listagem de seleção de medicamentos estadual.

Os medicamentos para terapêutica do trato alimentar e do metabolismo representaram a maioria dos medicamentos prescritos (45,8%), segundo classificação ATC, sendo seguidos dos medicamentos do sistema respiratório (35,4%) e anti-infecciosos (14,5%). As vitaminas foram os medicamentos mais prescritos, seja na forma isolada ou como polivitamínico ( Tabela 3 ).

Tabela 3 Medicamentos mais prescritos 

Medicamento Número Percentagem em relação ao total de medicamentos prescritos Percentagem em relação total de pacientes
Polivitamínico 1* 75 14,7 96,1
Enzimas pancreáticas 72 14,1 92,3
Solução salina hipertônica 66 12,9 84,6
Alfadornase 53 10,4 68,0
Ácido ursodesoxicólico 33 6,5 42,3
Polimixina E 28 5,5 35,9
Tobramicina 23 4,5 29,5
Fenoterol 20 3,9 25,6
Azitromicina 16 3,1 20,5
Polivitamínico 2 16 3,1 20,5
Budesonida 14 2,7 17,9
Salbutamol 10 2,0 12,8
Omeprazol 9 1,8 11,5
Montelucaste 8 1,6 10,2
Insulinas 7 1,5 9,0
Vitamina E 7 1,5 9,0
Outros 52 10,2 66,7

* Composição: vitaminas A, B6, C, D, E e K1;composição: vitaminas A, B1, B2, B3, B5, B6, B8, C, D2 e E.

Os medicamentos de administração oral (n=233; 52,7%) e inalatória (n=203; 39,9%) apresentaram maior frequência de prescrição, seguidos por medicamentos intranasais (4,1%), utilizados por gastrostomia (2,1%) e por via subcutânea (1,4%).

A figura 1 indica os locais de aquisição dos medicamentos dos paciente. Outros dez entrevistados adquiriram seus medicamentos utilizando diferentes itinerários de busca ao medicamento: seis informaram comprar o medicamento no hospital de sua cidade, dois recebiam o medicamento no próprio ambulatório de FC, um paciente recebia do consultório pediátrico privado e outro do hospital no qual o cuidador trabalhava.

Figura 1 Locais de aquisição dos medicamentos 

Sessenta e quatro (82%) entrevistados relataram dificuldades na aquisição de de pelo menos 1 dos medicamentos, variando de 1 a 5 medicamentos, em um total de 101 medicamentos (média 1,5 medicamento/paciente). A principal causa de não acesso relatada foi a falta do medicamento nos estabelecimentos de saúde. Os medicamentos mais relatados quanto à dificuldade de aquisição foram polivitamínico 1, polimixina E, enzimas pancreáticas, alfadornase, azitromicina, ácido ursodesoxicólico e tobramicina.

O tratamento não farmacológico foi mencionado como importante nos relatos. Todos relataram realizar a fisioterapia em domicilio e 85,9% o faziam pelo menos duas vezes ao dia. Ainda, 62% dos pacientes praticavam algum tipo de exercício físico e, destes, 31,2% somente na escola (na aula de educação física).

Em relação ao estado nutricional, a maioria dos pacientes (52,6%) foi classificada como eutrófica. Foram utilizados suplementos calóricos, dietas líquidas e de carboidratos complexos, como a maltodextrina, em 59% dos casos. Um paciente possuía alimentação exclusiva por gastrostomia. Dois pacientes, que utilizavam gastrostomia e sonda nasoentérica, apresentaram via de alimentação complementar à via oral.

A presença de Staphylococcus aureus sensível à meticilina (MSSA) no escarro dos pacientes foi a mais prevalente (64,1%), seguida de Pseudomonas aeruginosa (34,6%) − estando sua forma mucoide presente em 25,9% destes, e do complexo Burkholderia cepacia (20,5%).

Para 92,3% dos pacientes acompanhados, a mãe foi a principal cuidadora. O entendimento pleno da doença, dos sintomas, das consequências e da importância do tratamento da FC foi observado em 65,4% dos casos.

Os resultados demonstram relação entre o entendimento da doença e dados clínicos do paciente. Pacientes com acompanhamento de saúde (77,1%) em outros serviços de saúde (n=27; 77,1%; p=0,008) e com presença de insuficiência pancreática (n=49; 70%; p=0,027) apresentaram melhor entendimento da doença, quando comparados com pacientes com boa condição pancreática e que com acompanhamento exclusivamente no ambulatório.

DISCUSSÃO

A maioria dos sujeitos do estudo foi do sexo feminino, da raça branca, procedentes do interior do Estado do Rio Grande do Sul, com mutação F508del e presença de MSSA no escarro. Estes dados foram semelhantes aos observados em estudos de outros centros do mesmo(10,11)e de outros Estados do Brasil.(12,13)

Os entrevistados, em geral, demonstraram bom conhecimento da doença. Estudo realizado em centro de referência no Reino Unido também mostrou que pacientes adultos com a doença demonstraram bom conhecimento geral sobre a FC.(14)

Alguns pacientes faziam seu acompanhamento exclusivamente no ambulatório onde o estudo foi conduzido, o que torna perceptível o vínculo estabelecido entre eles e a equipe de saúde do local. A partir dos relatos dos cuidadores, foi observada dificuldade de acompanhamento de saúde fora do ambulatório. Os profissionais e/ou serviços, principalmente do interior do Estado, possuem dificuldades e, muitas vezes, falta de preparo para o acolhimento dos pacientes portadores de doenças crônicas.

Por vezes, o paciente fibrocístico possui algum tipo de encaminhamento para outros serviços − seja qual for o nível de atenção −, o qual geralmente não é acompanhado por uma orientação detalhada para a continuidade do plano terapêutico. Como a oferta de consultas nem sempre é adequada, o paciente é encaminhado para o especialista, no imaginário de que somente este profissional poderá oferecer o melhor tratamento, como consequência o vínculo é estabelecido somente com o ambulatório do centro de referência para FC.(15)

Algumas condições são necessárias para o bom funcionamento da transição dos níveis de complexidade no sistema de saúde. Algumas dificuldades podem acarretar agravamento das condições de saúde dos pacientes e sobrecarga das unidades de maior complexidade do Sistema Único de Saúde (SUS).(16)Assim, torna-se importante o preparo do profissional de saúde neste acolhimento em serviços de baixa e média complexidade, para evitar a sobrecarga dos serviços de alta complexidade. No presente estudo, pacientes que possuem atendimentos não somente no centro de referência apresentaram melhor entendimento da FC − o que certamente melhora a adesão ao tratamento e a qualidade de vida.

Foi observada também a importância do tempo que o paciente iniciou o tratamento a partir da confirmação do diagnóstico de FC. Os pacientes analisados apresentaram associação entre complicações pulmonares e doenças e/ou comorbidades. Por se tratar de um centro pediátrico, urge notar o impacto do tempo de conhecimento da doença no prognóstico desta situação de saúde.

A figura materna foi apontada como principal cuidadora, e, em poucos casos, o cuidado era compartilhado com outro familiar. Situações semelhantes são apresentadas na literatura.(17,18)O acompanhamento do cuidador é um dispositivo com impacto positivo na monitoração do plano terapêutico.

Do total dos medicamentos prescritos, a indicação terapêutica foi reconhecida pelos entrevistados na maior parte dos casos. A utilização correta dos medicamentos foi mais relatada por entrevistados de pacientes com presença de complicações e/ou comorbidades. Estudo realizado no ambulatório de medicina interna do mesmo hospital para avaliar o nível de informação sobre os medicamentos prescritos aos pacientes observou que, na maioria das situações, a informação foi a correta.(19)Oenning et al., avaliaram o conhecimento dos pacientes na consulta médica e na dispensação, chegando a valores acima de 90%.(20)

A má digestão e/ou má absorção de gordura e de vitaminas afetam o balanço energético e nutricional do paciente, o que está diretamente relacionado com declínio da função pulmonar e piora da qualidade de vida.(21)Este conceito justifica o fato de a maioria dos medicamentos prescritos, segundo a ATC, pertencer ao grupo farmacológico do trato alimentar e metabolismo, como vitaminas e enzimas pancreáticas. Estes medicamentos foram seguidos pelos que atuam no trato respiratório, outro sistema afetado na maioria dos fibrocísticos, o que, por sua vez, explica o polivitamínico como o medicamento mais prescrito.

As enzimas pancreáticas foram prescritas para quase todos os pacientes, o que condiz com os dados do Registro Brasileiro de Fibrose Cística (REBRAFC)(22)e da Cystic Fibrosis Foundation (CFF):(23)81,2% e 87,3%, respectivamente. Dados europeus de 2010 apresentaram prescrição de enzimas pancreáticas em países como Sérvia, Dinamarca e Rússia para mais de 90% dos casos, e para aproximadamente 85% dos pacientes de centros da Suécia, Lituânia, Suíça e Grécia.(24)Rizzo et al., que realizaram estudos em dois centros de referência para FC, apresentaram 96% em um centro e 83,6% no outro centro de pacientes com prescrição de enzimas pancreáticas. Scattolin et al., apresentaram 90,3% pacientes em uso de terapia de reposição enzimática.(10,11)

A prescrição de alfadornase foi menos frequente, tal qual em outros estudos nacionais,(10,11)em relação aos dados da CFF.(23)Estudos associam a utilização de alfadornase ao risco reduzido de morte, à melhora da função pulmonar e à redução de exacerbações pulmonares.(3)Wark et al., ressaltam que o tratamento com o mucolítico é relativamente caro, e que seu uso é limitado na maioria dos países − o que explica a diferença −, sendo a solução salina hipertônica uma alternativa terapêutica.(25)

A frequência da prescrição de solução salina hipertônica (84,6%) foi maior se comparada a dados da CFF (65,7%) e da UK Cystic Fibrosis Registry (26,1%).(23,26)Além do baixo custo, a preparação do medicamento é mais simples, podendo ser realizada pelo próprio cuidador e/ou paciente ou, como relatou proceder a maioria dos entrevistados, o medicamento pode ser adquirido já manipulado em farmácias privadas. Sua utilização auxilia na redução das exacerbações pulmonares e do uso de antibióticos, além de haver melhora da qualidade de vida do paciente.(25)

O ácido ursodesoxicólico, medicamento de efeito hepatoprotetor, foi prescrito para quase metade dos pacientes, com a justificativa de a hepatopatia crônica ser a comorbidade mais frequente entre estes pacientes e de mais de 35% deles apresentarem escore hepático alterado. Frequências de prescrição semelhantes foram encontradas em pelo menos seis países europeus.(24)Estudo que caracterizou a população do mesmo ambulatório anteriormente relatou prescrição do ácido ursodesoxicólico para 55,5% dela.(11)

O uso de tobramicina inalatória para erradicar Pseudomonas aeruginosa , é maior nos dados da CFF (69,8%). Esta diferença pode ser explicada pela maior frequência de colonização de Pseudomonas aeruginosa entre pacientes norte-americanos.(23)A polimixina E, alternativa para este tratamento, foi prescrita para 35,9%, dados semelhantes aos observados nos registros brasileiro e do Reino Unido.(22,26)Nos Estados Unidos, seu uso como antibiótico inalatório não é aprovado.

Referente à aquisição de medicamentos, pouco mais da metade dos medicamentos pertenciam à Rename.(8)Esta, para o SUS, é uma referência que deve nortear a oferta, a prescrição e a dispensação de medicamentos.

Os Estados e municípios possuem autonomia político-administrativa, podendo definir suas relações de medicamentos essenciais, com base nos diferentes perfis epidemiológicos, para atender às demandas de cada localidade, o que, muitas vezes, pode confundir a sociedade sobre quais medicamentos ela deve encontrar nos serviços de saúde,(27)situação observada no presente estudo. Os entrevistados informaram até nove diferentes serviços e estabelecimentos de saúde acessados, além de situações em que eles necessitavam acessar três a quatro locais diferentes para a aquisição de todo o tratamento medicamentoso do paciente.

O Brasil carece de uma política específica para doenças genéticas raras, sendo a assistência a estes pacientes fragilizada.(28)A FC está contemplada em dois Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas: o de manifestações pulmonares, com o medicamento alfadornase, e o de insuficiência pancreática, com a terapia de reposição enzimática. Ambos os medicamentos pertencem à lista do componente especializado do Ministério da Saúde e são cofinanciados pela União e pelos Estados, que também possuem a responsabilidade de distribuí-los. Conforme a classificação da SES/RS, a maioria dos medicamentos pertencia à lista dos medicamentos do componente especial.(9)

O Estado do Rio Grande do Sul, além da lista do componente especializado, distribui medicamentos de uma lista complementar, com outros medicamentos, dietas e suplementação alimentar. Esta foi criada em 2010 para preservar e ampliar o acesso ao tratamento medicamentoso dos pacientes com FC.(29)O setor público do SUS é o predominante na distribuição dos medicamentos, o que, em situação de desabastecimento e dificuldade de alternativa de aquisição no setor privado, pode ser um complicador.(30)Esta situação foi observada na fala da maioria dos entrevistados, que informou possuir dificuldades para adquirir medicamentos, sendo o mais citado o polivitamínico (um medicamento importado pela SES/RS).

Os achados deste estudo podem contribuir para as políticas públicas voltadas ao paciente fibrocístico pediátrico, promovendo a garantia do acesso e orientação aos medicamentos, seja qual for o serviço de saúde acessado, para a manutenção do plano terapêutico. A implementação de estratégias que possam melhorar as políticas públicas, com abordagens educativas, que considerem o paciente como centro do processo de cuidar, permitindo-lhe expor suas dúvidas, dificuldades, opiniões e experiências, relacionadas ao tratamento, pode constituir importante medida para minimizar problemas de adesão terapêutica, diminuindo internações desnecessárias e garantindo a qualidade de vida destas crianças.

CONCLUSÃO

Os dados obtidos permitiram maior conhecimento sobre o tratamento, cuidado e necessidades do portador de fibrose cística. São pacientes polimedicados, sendo as complicações da fibrose cística, um fator determinante para a utilização de um número maior de medicamentos. Maioria dos pacientes, a partir do diagnóstico, faz uso de enzimas pancreáticas, vitaminas, mucolíticos e de antimicrobianos. Os pacientes, geralmente, possuem dificuldades para se manter no tratamento, principalmente o farmacológico, por conta da falta de orientação e da não aquisição dos medicamentos, mesmo metade deles pertencentes à Relação Nacional de Medicamentos Essenciais. O paciente fibrocístico representa uma demanda intensa de cuidado tanto para a família como para a equipe assistencial e os serviços de saúde que os acompanham.

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