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Medicina de Família e Comunidade: agora mais do que nunca!

Medicina de Família e Comunidade: agora mais do que nunca!

Autores:

Thiago Gomes Trindade,
Sandro Rodrigues Batista

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.9 Rio de Janeiro set. 2016

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015219.18862016

O artigo “A Atenção Primária e o Programa Mais Médicos do Sistema Único de Saúde” traz um conjunto de reflexões sobre o “Programa Mais Médicos para o Brasil” e o seus impactos no SUS e na Atenção Primária à Saúde (APS). Em uma perspectiva histórica do processo de implantação e expansão da APS no país evidencia desafios importantes para sua consolidação, sobretudo quanto ao provimento e fixação de força de trabalho médica.

O desenvolvimento da Medicina de Família e Comunidade (MFC) no Brasil inicia-se de forma pioneira ainda nos anos 1970 (pré-SUS), com programas de residência em MFC no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Pernambuco1. Naquele período, gestores e até mesmo o meio acadêmico, pouco apoiaram essas iniciativas, o que posteriormente dificultou a implantação, a partir de 1994, do Programa Saúde da Família (PSF) de forma robusta, devido à carência de profissionais com essa formação. Convivemos nas últimas décadas com baixa sintonia entre as instituições formadoras e o SUS, no que tange à necessidade-oferta de profissionais para APS. Assim, a operacionalização da Reforma Sanitária, em especial da APS, prolongou-se por mais tempo que em países com sistemas de saúde orientados à esta (Canadá, Cuba, Espanha, Portugal). Nestes países, já nos anos 1980 e 1990, regulamentou-se a formação médica especializada para a APS (residência médica definida como padrão-ouro de formação), estabeleceram-se percentuais mínimos para a MFC e obrigatoriedade de residência para incorporação ao sistema de saúde2,3. No Brasil, um dos entraves a este movimento internacional partiu das próprias escolas médicas que, até pouco tempo, insistiam numa pretensa terminalidade na graduação4.

Dentre as dificuldades para o avanço da APS estava a necessidade latente de médicos para equipes de ESF, em especial com formação em MFC. Ao serem lançadas as políticas de provimento emergencial do Governo Federal (PROVAB e PMM), a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) reconheceu o momento como estratégico, pois a APS foi pautada, pela primeira vez, no centro da agenda política nacional5. Eram vistas, à época, como políticas de provimento focadas na dificuldade crônica de municípios do interior e das regiões periféricas das grandes cidades em ter médicos em suas equipes. Entretanto, essas estratégias podem configurar-se como uma “faca de dois gumes”, pois causam dependência: seu potencial de mobilização do aparelho formador é fraca e, de forma adicional, os envolvidos nessas estratégias reivindicam menos, com pouco tensionamento por melhores condições de estrutura6. Nesse sentido, a SBMFC já alertava que estas medidas emergenciais deveriam vir acompanhadas de política consistente e efetiva para a melhoria da qualidade dos serviços, de sua infraestrutura (no caso, contemplada com o Requalifica UBS), da qualificação da rede de atenção e dos serviços de apoio ao diagnóstico e à terapêutica e que deveriam associar-se a políticas para outros profissionais (não só médicos) de modo a se fortalecer todos os atributos da APS.

Nestes três anos do PMM houve incremento real de mais de 7 mil equipes de ESF e cobertura populacional de 10%7. Evidencia-se assim que os mais de 18 mil médicos do PMM também substituíram médicos em equipes preexistentes e que parte considerável se concentrou em regiões metropolitanas e na zona litorânea brasileira, que também contemplavam critérios de prioridade elencados. Essas regiões, embora apresentassem demanda por profissionais, não possuíam a escassez histórica da região amazônica, do semiárido e de regiões de fronteira.

De forma complementar, devem ser cuidadosas as interpretações sobre a satisfação da população com o médico do PMM e, em especial, dos intercambistas cubanos comparados aos profissionais brasileiros. Essas diferenças podem estar associadas ao perfil formativo voltado para MFC, e na regulação do programa, supervisão e monitoramento do processo de trabalho, independente da nacionalidade do médico. Desconhecemos pesquisas que tenham comparado profissionais egressos de programas de residência em MFC no Brasil e de outros países, entre os próprios médicos de provimento.

Em relação à graduação, o PMM trouxe reorientação dos currículos, com a publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais (2014)8, que destacam a MFC na formação médica com percentual mínimo no internato, propiciando uma prática crescente em serviços de APS, em consonância com as diretrizes da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) e SBMFC9. Contudo, estas mudanças só serão efetivas com práticas de APS em cenários de alta qualidade sob supervisão de professores/preceptores MFC e integração ensino-serviço consolidada por meio do Contrato Organizativo de Ação Pública Ensino-Saúde (COAPES). Políticas de indução para a realização de concursos públicos para professores MFC em cursos médicos precisam ser efetivadas para o alcance desse objetivo.

Embora seja necessária a ampliação do número de vagas nas escolas médicas, segundo estudos prévios, o número proposto de novas vagas tende a ser, em futuro breve, superavitário, correndo-se o risco de que a maior parcela concentre-se em escolas privadas10,11. As iniciativas de interiorização de cursos são outro aspecto positivo, todavia exigem melhor estruturação das redes de saúde nesses municípios. Assim, perder o momento político para inclusão da obrigatoriedade de realização de residência médica (e percentuais para MFC) pode, em longo prazo, aumentar o número de egressos médicos sem necessariamente resolver a necessidade da APS.

O eixo residência médica do PMM é a mais importante estratégia enquanto política de recursos humanos para a APS no país. A SBMFC apoia o processo de universalização das vagas de residência e expansão dos programas de MFC, com a preocupação contínua da qualidade. Observou-se incremento numérico importante entre o período de 2013–2016, com o aumento de mais de 1.700 vagas de R1 em MFC, embora muito aquém da dimensão desejável: 40% das vagas de residência de acesso direto, à semelhança dos países com sistemas de saúde orientados à APS, como o Canadá12.

Outro desafio importante e essencial se refere à ocupação destas vagas: embora haja aumento do número absoluto de vagas ocupadas no R1, ainda se mantém ociosidade em torno dos 70%. Neste processo de qualificação, em 2015, a SBMFC desenvolveu o Currículo Baseado em Competências para os programas de residência em MFC, de forma a homogeneizar a formação deste especialista no Brasil, com posterior resolução da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) orientando a formação baseada nesse documento13. Associada a esta iniciativa vemos os projetos de formação de preceptores como fundamental para este processo, através do curso de especialização lato sensu e de mestrado profissional, ambos financiados pelo MS.

Por fim, entendemos que se é objetivo do Estado brasileiro a consolidação do SUS baseado numa APS forte, robusta, polivalente e de qualidade, o PMM proporciona condições de base. Para darmos um salto nesse processo e termos MFC suficientes, precisamos fundamentar estes três pilares de regulamentação da formação através da residência: a universalização das vagas, percentual de 40% das vagas de acesso direto para MFC, estratégias multifacetadas para a ocupação de vagas, com destaque para a obrigatoriedade da residência em MFC para futuros ingressos na APS brasileira com temporalidade definida a vigorar em anos vindouros. Medicina de Família e Comunidade: agora mais do que nunca!

REFERÊNCIAS

1. Falk J. A Medicina de Família e Comunidade e sua entidade nacional: histórico e perspectivas. Rev Brasileira de Medicina de Família e Comunidade 2004; 1(1):5–10.
2. Zurro AM. Evaluación de la formación posgraduada, certificación y recertificación profesional de los médicos de familia en diferentes países (Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Holanda, Australia y España). Aten Primaria 2002; 30(1):46–56.
3. Vicente VC, Pitz PB, Arenal JMC, Ferrández ES, Gonzalez FS. La medicina familiar y comunitaria y la universidad. Gac Sanit 2012; 26(S):69–75.
4. Stella RCR, Goldenberg P, Gomes MHA, Goihman S. Graduação médica e especialização: uma incompatibilidade aparente. Rev Assoc Med Bras 1997; 43(4):290–294
5. Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). Nota de posicionamento sobre o PMM. 2013. [acessado 2016 Jun 6]. Disponível em:
6. The Lancet. Transforming primary care. Lancet 2016; 387(10030):1790.
7. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. [acessado 2016 Jun 6]. Disponível em:
8. Brasil. Ministério da Educação (MEC). Diretrizes Curriculares Nacionais. 2014. [acessado 2016 Jun 6]. Disponível em:
9. Demarzo M, Almeida R, Marins J, Trindade T, Anderson M, Stein A, Guimarães F, Oliveira F, Carvalho F, Silva F, Oliveira F, Carlos G, Marques J, Geniole L, Silveira L, Pinto M, Silva N, Bagatelli R, Batista S, Barboza T, Sarti T, Barreto V, Gusso G, Belaciano M. Diretrizes para o ensino na Atenção Primária à Saúde na graduação em Medicina. Rev Bras Med Fam Com 2011, 6(19):145–150.
10. Valcárcel BGL, Pérez PB, Vega RS. Oferta, demanda e necessidade de médicos especialistas no Brasil: Projeções para 2020. 2011. [acessado 2016 Jun 6]. Disponível em:
11. Martins MA, Silveira PSP, Silvestre D. Estudantes de Medicina e Médicos no Brasil: Numeros Atuais e Projeções. Projeto Avaliação das Escolas Médicas Brasileiras. Relatório I, 2013. [acessado 2016 Jun 6]. Disponível em:
12. Canadian Resident Matching Service. 2016 R-1 Main Residency Match Report. [acessado 2016 Jun 6]. Disponível em:
13. Brasil. Ministério da Educação (MEC). Resolução Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM). [acessado 2016 Jun 6]. Disponível em: