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Medicina Tradicional Complementar e Integrativa: desafios para construir um modelo de avaliação do cuidado

Medicina Tradicional Complementar e Integrativa: desafios para construir um modelo de avaliação do cuidado

Autores:

Islândia Maria Carvalho de Sousa,
Virginia Alonso Hortale,
Regina Cele de Andrade Bodstein

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.10 Rio de Janeiro out. 2018

http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182310.23792016

Introdução

A complexidade e a diversidade do que se propõe sob a nomenclatura de Medicina Tradicional Complementar e Integrativa (MTCI), no mundo, e Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), no Sistema Único de Saúde (SUS), constituem um desafio para profissionais e tomadores de decisão interessados em avaliar sua efetividade. O aumento da sua oferta e uso têm estimulado o debate em torno da utilização segura e eficaz dessas práticas1,2, além da introdução de novas abordagens avaliativas que contribuam com critérios para sua incorporação3-6 que sejam metodologicamente úteis à prática dos gestores e profissionais de saúde e ultrapassem a dimensão da avaliação normativa.

Estudos recentes1,3-7 atestam a necessidade de avaliações que enfatizem a complexidade dos processos de intervenção e as dimensões intersubjetivas relacionadas à MTCI, pois ela lida com a singularidade de sintomas e subjetividades que precisam ser incluídas para compreender ou dimensionar o seu êxito terapêutico. A interação terapêutica e o diálogo profissional-usuário são, frequentemente, realizados a partir de um conjunto de estratégias e de processos com características específicas que influenciam seus resultados6,8; e precisariam ser incluídas nas propostas avaliativas para além dos modelos tradicionais6,7,9.

Há poucos estudos sobre a oferta da MTCI e dos possíveis efeitos do seu uso e dos seus custos1,4,10-12, o que justificaria a necessidade de construir referenciais metodológicos para sua avaliação. Assim, o objetivo deste artigo é propor elementos para a construção de um modelo de avaliação que contribua com a pluralidade e o alcance da MTCI nas diversas dimensões do cuidado em saúde.

Parte-se do pressuposto que a efetividade da MTCI não pode focar, exclusivamente, em mudanças de comportamento e padrões biomédicos. Compreende-se que as evidências que atestam o êxito terapêutico podem ser construídas a partir das experiências, vivências e narrativas da relação entre usuários e profissionais, para além das evidências sobre a reversão de sintomas e o impacto nos possíveis fatores de risco à saúde.

Dessa forma, realizou-se um estudo teórico com os seguintes pressupostos: 1) apesar da diversidade contida na denominação de MTCI, há nas mesmas características similares quanto ao modo de compreender o cuidado13,14; 2) a heterogeneidade de contextos e a complexidade do cuidado demandam diálogo com um referencial teórico pluralista, como o da avaliação da promoção da saúde15,16 com o apoio da teoria dos sistemas complexos17,18; 3) o cuidado pode ser compreendido como prática19,20 e fonte de evidência para a avaliação21; 4) o cuidado ocorre por meio de uma relação singular entre profissionais e usuários.

Complexidade do Cuidado na Medicina Tradicional Complementar e Integrativa

O crescimento da oferta da MTCI nos Sistemas de Saúde de diversos países22-24, inclusive no Brasil25, tem se acentuado nas últimas décadas. Diversos fatores contribuíram para o aumento da sua oferta e uso, em grande parte relacionados às mudanças estruturais e comportamentais que as sociedades contemporâneas passam. Estas mudanças são responsáveis tanto pelo aparecimento de síndromes e transtornos relacionados à ansiedade, insônia, dores crônicas, estresse e depressão, déficit de atenção, entre outros; quanto pela maior longevidade da população, que responde em grande parte pela prevalência das doenças crônico-degenerativas1. Aparecem também como fatores importantes a insatisfação com o cuidado convencional e o desejo de formas mais sofisticadas e ampliadas de escuta e cuidado26-28; a crescente pressão e interesse do mercado em torno do setor saúde1,3 e o desejo dos profissionais de saúde de implementar outros modos de cuidado26.

No Brasil, embora a MTCI seja oferecida nos serviços de saúde pública desde a década de 80, foi reconhecida oficialmente na última década sob a denominação de práticas integrativas e complementares com a implementação da política de PICS25. Vale ressaltar que parte dessa oferta origina-se de iniciativas exitosas e da diversidade das experiências em diferentes realidades25,29. Recente análise da oferta e produção, registradas nos sistemas de informações do SUS25, evidenciou os limites em captar o que tem sido ofertado nos contextos locais e o descompasso entre o que é realizado no cotidiano e o que é informado ao Ministério da Saúde, além da dificuldade de caracterizar o tipo de cuidado em cada contexto.

Neste estudo, o cuidado é compreendido como uma interação, uma construção de mediações, em que se considera os projetos de felicidade, não se restringindo às intervenções em saúde20,30. Segundo Ayres20, o cuidado pode ser visto como designação de uma atenção à saúde imediatamente interessada no sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou mental, e, por conseguinte, também das práticas de promoção, proteção ou recuperação da saúde. Portanto, um cuidado que se constrói no encontro entre usuário e profissional, com objetivos de atender à necessidade humana do cuidado, para produzir felicidade20.

Essa perspectiva tem correspondência na MTCI, visto seu modus operandi estar voltado para a compreensão da diversidade de sentidos do adoecimento e de como intervir de forma efetiva sobre o mesmo, exigindo uma inter-relação subjetiva para que os motivos ou causas do sofrimento sejam elucidados. Assim, o cuidado é compreendido enquanto processo, prática, com a utilização de diversas terapêuticas de MTCI, com a troca de experiências e saberes entre usuários e profissionais.

O cuidado na MTCI envolve racionalidades médicas, como a homeopatia e a medicina tradicional chinesa13, e outras práticas como a meditação, massagens, reiki31, florais, quiropraxia; e dependem do contexto em que estão inseridas1. Apesar da diversidade de racionalidades e possibilidades terapêuticas sua práxis apresenta como características: a) singularidade (o foco do cuidado é a pessoa e não a doença); b) flexibilidade (adaptação do cuidado ao usuário e seu contexto); c) complexidade (o processo de adoecimento engloba o desequilíbrio na dinâmica vital, no ser, além físico, químico e biológico) e d) integralidade (a intervenção e sua avaliação contemplam resultados objetivos e subjetivos, não basta curar a doença).

Tais características são evidenciadas em dimensões peculiares que merecem ser destacadas. Na primeira dimensão, o foco é o cuidado individualizado, sem desconsiderar a complexidade do contexto socioambiental e cultural em que profissionais e usuários vivem e adoecem. É na escuta, no diálogo e na troca de saberes entre quem cuida e quem está sendo cuidado que se busca a compreensão do adoecimento e de resultados satisfatórios. A leitura ou o diagnóstico do processo de adoecimento leva em conta o fluxo de energia, emoções, alimentação, atividades, relacionamentos, expressões, sintomas e características físicas, contexto cultural e social. Esta singularidade permite que se entenda o adoecimento como um processo e uma experiência, o que difere da definição tradicional de saúde como ausência de doença. Considera que cada indivíduo tem uma constituição e circunstâncias psicossociais próprias, reações distintas diante dos sintomas, doenças e tratamentos. Pessoas com a mesma doença podem receber cuidados diferentes1, como na medicina chinesa5,13,32 ou na homeopatia29,33; e obterem respostas ou reagirem de forma distinta a cada intervenção.

Esta concepção implica em uma segunda dimensão: complexidade do adoecimento. O adoecimento não é consequência somente de desequilíbrios biológicos e bioquímicos, mas a maneira como o indivíduo se posiciona e interage com seu contexto, como se relaciona consigo mesmo e com o adoecimento. Neste sentido, a doença entendida como um processo natural de evolução que pode ser vista como um desequilíbrio dos sopros vitais (QI) na racionalidade chinesa13,32, da dinâmica vital na racionalidade homeopática33, desequilíbrio do Prana na racionalidade ayurvédica ou da polarização de energia na terapia floral.

Os desequilíbrios e desarmonias refletem a terceira dimensão: a complexidade do cuidado, que não se circunscreve a uma doença específica, mas ao processo de adoecimento. O cuidado não se restringe a uma única terapêutica, pode se dar por meio de um conjunto de intervenções (prescrição de ervas, práticas corporais, mudanças na alimentação, massagens, meditação)1. Mesmo o Reiki (posicionamento com as mãos) busca interferir nos planos físico, mental e energético, nos valores e modos de vida31. O cuidado, ao transpor os protocolos padronizados, constrói uma rotina para cada indivíduo, respeita sua singularidade para a efetividade desejada. A quarta dimensão diz respeito ao processo do cuidado que é relacional e interativo, construído a cada encontro entre o usuário e o profissional de saúde. Seus efeitos são avaliados durante o processo e, tanto o diagnóstico quanto os objetivos terapêuticos, podem ser reformulados e reavaliados, como ocorre na medicina chinesa13 e na homeopatia32-34, entre outras, visto que o profissional da MTCI tende a levar em conta as demandas do usuário. Ele contempla uma ação profissional com uma postura participativa de quem está sendo cuidado. Como última dimensão, destaca-se a integralidade dos resultados. Na medida em que a intervenção não se circunscreve à doença, a cura ou o cessar dos sintomas não é o único objetivo a ser alcançado. Por exemplo, na medicina chinesa, se a cura de uma doença for acompanhada pela piora de sintomas emocionais, indica que o tratamento precisaria ser revisto. O processo de cura pode ser definido como uma trajetória de autoconhecimento e crescimento. Os resultados são analisados levando em conta outras evidências, como a ampliação da sensação de bem-estar e felicidade após a intervenção, e pelas relações que o indivíduo consegue construir ou reconstruir com o meio social, cultural e natural7.

Assim, considerando o cuidado realizado na MTCI, sua avaliação deveria levar em conta os seguintes aspectos:

  1. as intervenções na MTCI compartilham algumas dimensões intrínsecas, decorrentes do paradigma vitalista que as fundamenta, apesar da sua diversidade13,32;

  2. o cuidado pode ser definido como prática19,20 por envolver aspectos coletivos e individuais voltados para a interação, o diálogo e a troca de experiências entre o profissional de saúde e o usuário. É construído levando em conta conhecimentos técnicos, vivências, experiências e saberes provenientes de diferentes racionalidades médicas;

  3. o cuidado tem um modus operandi na compreensão do processo de adoecimento e uma interação singular com os recursos da biomedicina, à medida que busca integrar os sintomas físicos, os aspectos emocionais e o contexto de vida, sem ser necessário descartar as estratégias de cuidado da biomedicina.

A MTCI se constitui em um conjunto diversificado de modos de cuidado, e sua complexidade desafia os tradicionais modelos avaliativos em saúde6,7. Estão presentes, tanto no processo de adoecimento como no cuidado, subjetividades, emoções, valores e perspectivas socioculturais distintas entre usuário e profissional e que interferem no êxito do processo35. Nesse caso, a pluralidade metodológica e a ênfase em estudos qualitativos são necessárias. Desse modo, os sentidos de eficácia ou efetividade não devem estar circunscritos às expectativas do profissional, mas acolher os sentidos e significados de quem está recebendo o cuidado.

Estas dimensões implicam no reconhecimento da singularidade do cuidado como objeto central da avaliação das MTCI, o que sugere a busca de outras fontes de evidência e de novas abordagens avaliativas.

Desafios para a construção de um modelo de avaliação do cuidado na MTCI

Embora os estudos randomizados sejam essenciais para a validação da eficácia dos medicamentos e terapias específicas da biomedicina, não são suficientes para avaliar intervenções e práticas complexas7 em contextos não controlados e diante de indivíduos e processos singulares, como é o caso da MTCI13,17,36.

As avaliações que visam simplificar a realidade e que têm o foco limitado às evidências de estudos experimentais, nos quais são estabelecidos critérios estritamente tecno-científicos tanto na política quanto nas ações de saúde, têm sido criticados pelos pesquisadores da área da promoção da saúde15,16. No entanto, tais críticas não reverteram a hegemonia desses estudos, visto que essa perspectiva também subsidia outros interesses e disputas no campo da saúde.

Autores do campo da avaliação, em especial Schwandt21 e Patton37, inspiraram a busca por abordagens qualitativas para a avaliação em saúde, diante da compreensão da pluralidade das interações, contextos e significados que perpassam o cuidado e as práticas em saúde, assim como a dificuldade em reproduzir situações singulares de um contexto para outro38, ou ainda, de dar conta da complexidade de processos e de seus efeitos21,38. Esses autores definem o objeto da avaliação como um sistema aberto e complexo em que múltiplas estratégias são utilizadas diante da pluralidade de contextos e significados atribuídos pelos agentes envolvidos. Modelos causais seriam inadequados38 na medida em que programas, intervenções e práticas envolvem processos e interações sociais interdependentes e reflexivas entre, por exemplo, profissionais e usuários, ou entre programas e comunidades. De igual forma, o que está em jogo é uma perspectiva avaliativa em que a principal contribuição é entender ‘como’, ‘porque’, ‘para quem’ e ‘em que contexto’ intervenções, estratégias e processos de promoção ou de recuperação da saúde funcionam15,38.

Schwandt21 contribui com esse debate ao redefinir a avaliação como ação a partir da problematização do objeto a ser avaliado e do próprio sentido da avaliação. Da perspectiva metodológica, a avaliação não pode mais ser vista como um estudo objetivo e neutro, enquanto mera coleta e análise de dados e informações21. Autores pioneiros nesse debate15,16,37 compreendem a avaliação como uma atividade reflexiva: o avaliador interpreta e compreende fatos, eventos e ações desenvolvidas que dependem da interação dos agentes em um determinado contexto. As representações e categorias de percepção dos agentes são centrais para o sucesso da interação e para o êxito do cuidado, assim como o esforço e rigor metodológico do avaliador para captar tais processos no ambiente ou no contexto em que ocorrem.

A abordagem proposta por Schwandt21 é apropriada para avaliar o cuidado na MTCI, na medida em que compreende os usuários e os profissionais envolvidos em processos e práticas interdependentes, em que o ponto de vista ou a percepção dos agentes diretamente envolvidos nas ações é crucial. Processos de mudanças e de práticas em saúde dependem da motivação, do engajamento e da sintonia estabelecida entre profissionais e usuários, e a escolha entre as diversas técnicas terapêuticas existentes. A avaliação, nesse sentido, é reflexivamente contextualizada, ou seja, com foco na relação entre usuários e os profissionais, entre o ambiente institucional, o contexto social e as práticas e ações em saúde.

Haveria assim um reposicionamento da prática como elemento central na avaliação, o que definiria seu foco enquanto: a) atividades, ações e inter-relações entre os principais agentes que estruturam a prática; b) interação de agentes institucionalmente circunscritos a um contexto de normas, responsabilidades e regulamentações com as chamadas avaliações normativas; c) reflexividade organizada entre agentes sociais, capaz de fornecer subsídios para mudanças21.

Na MTCI, o cuidado entendido como prática possui dimensões próprias, associadas a uma compreensão ampliada do processo de adoecimento e de cura. Dessa forma, outros métodos avaliativos precisariam ser construídos, pois os estudos avaliativos clássicos e os ensaios clínicos se mostram insuficientes. No caso da homeopatia, por exemplo, um medicamento que se propõe como eficaz para asma pode não ser eficaz para todos os indivíduos que tenham a doença. O cuidado, neste caso, não consiste em administrar o medicamento homeopático como se fosse uma pílula “mágica”. Não é ele sozinho que é eficaz. O mesmo ocorre com a acupuntura. Não basta inserir a agulha em um ponto específico para um determinado sintoma ou doença, pois o efeito será diferente em cada indivíduo. Por isso a dificuldade em se estabelecer e medir efeitos de intervenções ou cuidados complexos cujas evidências são construídas com base no método experimental clássico.

A complexidade das intervenções, a diversidade de estratégias e de contextos remetem a diferentes abordagens metodológicas, revitaliza o campo da avaliação em saúde e propõe a utilização de modelos mais complexos18 e mais realistas16, o que possibilita abrir a chamada ‘caixa preta’ do processo de cuidado7,37. Trata-se de compreender o papel das abordagens qualitativas na avaliação, reconhecidas dentro da tradição das ciências sociais.

Uma avaliação voltada para a complexidade do cuidado em saúde abriria um caminho inovador para identificar as evidências de seus efeitos. Por exemplo, o resultado do cuidado com usuários portadores de diabetes não restringiria seu foco a verificar o perfil glicêmico e as medidas antropométricas, mas a compreender o processo de adoecimento a partir do contexto de vida e do entendimento de quais significados o usuário atribuiria ao seu adoecimento e às suas causas. Comportaria estratégias de compartilhamento de saberes e conscientização do usuário sobre o autocuidado e suas diversas estratégias terapêuticas, bem como medidas consagradas para melhorar a alimentação, a rotina de atividades físicas entre outras. A avaliação, nesse caso, estaria voltada para a compreensão da ação interpessoal em que o cuidado se realiza: os modos de ação, as técnicas ou terapêuticas utilizadas, o diálogo e os estímulos suscitados, bem como as respostas e reações do usuário.

Os elementos do contexto, capazes de influenciar o cuidado, poderiam ser sistematizados para gerar um aprendizado útil e evidências de sua efetividade. Esse conhecimento reflexivamente compartilhado seria útil ao usuário à medida que lhe permitisse entender como lidar com a complexidade do processo de adoecimento vis-à-vis os fatores de risco presentes no seu contexto e estilo de vida.

Cuidado como prática na Medicina Tradicional Complementar e Integrativa

O cuidado, entendido como prática20,21 socialmente construída, ganha centralidade na reflexão sobre o processo de avaliação. Implica no reconhecimento da importância da interação e da interdependência entre os agentes nele envolvidos. O cuidado pressupõe o conhecimento técnico dos profissionais e a capacidade de discernir e realizar julgamentos a partir do conjunto de suas experiências, saberes e conhecimento acumulado, porém sua realização depende, necessariamente, da singularidade de quem está recebendo o cuidado.

Assim, o cuidado não se circunscreve às respostas padronizadas e racionalidades técnicas de uma consulta, compreende tanto a reflexividade inerente à singularidade dos agentes, quanto os limites impostos pelas organizações e estruturas sociais. Importa enfatizar que esse processo é construído pelos agentes na sua inter-relação, o que permite compreender o cuidado como uma prática21: uma ação impregnada de sentidos e de subjetividades. Além disso, a prática pressupõe tanto o conhecimento que os agentes possuem quanto a capacidade de acionarem conhecimentos e saberes situacionais que orientam as escolhas e a tomada de decisões dos profissionais.

Essa perspectiva avança ao compreender a interação entre profissionais e usuários a partir da racionalidade organizada e da reflexividade presente na prática do cuidado. Está em jogo tanto a experiência e a singularidade do adoecimento quanto a capacidade do profissional institucionalmente situado de tomar decisões técnicas.

O cuidado compreendido como prática envolve a diversidade de saberes e experiências, em uma interação entre quem cuida e quem é cuidado. Diz respeito à uma ação reflexiva organizada, isto é, sujeita à regulação e à avaliação institucional, mas centrado em uma compreensão mais abrangente sobre a complexidade do processo de adoecimento e de sofrimento; isto é, uma experiência de adoecimento e ou de sofrimento vivenciada por indivíduos singulares. Busca-se um diálogo e um equilíbrio entre a experiência do profissional e do usuário com as técnicas e racionalidades disponíveis.

A prática, ao ser problematizada nessa perspectiva, deixa de ser vista como resposta automática e linear39 diante de uma situação ou de um problema e passa a ser um processo avaliado em sua complexidade, como uma cadeia de eventos e sequências temporais singulares, com alto grau de imprevisibilidade, e que decorrem da maneira como os agentes compreendem sua ação e interagem diante das circunstâncias21.

A avaliação aqui precisa ser vista como uma atividade reflexiva21. Ou seja, o avaliador interpreta e compreende fatos, eventos e ações desenvolvidas que dependem da interação e da experiência dos agentes. As representações, percepções e experiências dos agentes são centrais para a avaliação do cuidado e para buscar evidências sobre o sucesso terapêutico. Nessa proposta avaliativa, as abordagens qualitativas são fundamentais, visto que se busca evidências da efetividade do cuidado a partir do ponto de vista dos agentes envolvidos. A avaliação trata de sistematizar um conhecimento útil que possa subsidiar profissionais e instituições.

Contribuição para um modelo de avaliação do cuidado na MTCI

O modelo teórico é utilizado no campo da avaliação em saúde como um dos primeiros passos para a avaliação. Ele objetiva elaborar uma representação das dimensões fundamentais das políticas, programas e intervenções16. Trata, em resumo, de identificar o problema vis-à-vis a situação ou mudança almejada, a população-alvo, as condições do contexto, o processo e os atributos necessários e suficientes para produzirem, isolada ou integradamente, os efeitos.

Avaliar a efetividade do cuidado na MTCI significa compreender a cadeia de processos interligados na ação: acolhimento, diálogo, diagnóstico, intervenção, troca, resultados de cada encontro e metas alcançadas. Voltada quase sempre para a singularidade da relação usuário-profissional, a experiência do cuidado na MTCI frequentemente expressa o uso de diversas racionalidades, inclusive a biomédica. Também são consideradas dimensões mais subjetivas como capacidade, predisposição e qualidade do diálogo, da comunicação, da interação e do envolvimento, bem como a disposição e a motivação, tanto de quem cuida quanto de quem é cuidado.

Nessa direção, um modelo de avaliação do cuidado em MTCI articularia as seguintes dimensões interdependentes: a) aspectos significativos do contexto (social e institucional); b) o cuidado (prática) com ênfase nas interações entre os agentes e seus desdobramentos e, as técnicas e terapêuticas utilizadas; c) os agentes (profissionais e usuários); d) os resultados como as possíveis evidências do sucesso terapêutico.

No contexto social, devem-se levar em conta as crenças, os significados, os valores culturais e sociais e as condições socioeconômicas dos usuários. No contexto institucional, as condições para desenvolvimento do cuidado, tais como espaço físico, investimento em educação permanente, insumos e recursos financeiros suficientes.

O cuidado é entendido como um processo, um conjunto de atividades que podem trazer resultados iniciais, intermediários e finais e também retroalimentar novos processos de cuidado. Por exemplo, o aumento da autonomia e autocuidado, vistos como resultados, interferem na construção das metas do cuidado (processo), que repercute novamente na autonomia e na tomada de consciência do usuário (resultados) e que ocasionará novas metas. Dessa forma, o modelo procura mostrar os caminhos possíveis para a busca de evidências do sucesso terapêutico nas diversas fases do cuidado diante das diversas técnicas e terapêuticas propostas que envolvem o cuidado com as MTCI.

Os aspectos que compõem o modelo sugerido incluem o conhecimento prévio e a experiência dos profissionais, a maneira com que se desenvolve o cuidado, o processo de interação e, finalmente, a resposta dos usuários a partir de suas referências e motivações. O cuidado não está limitado ao modo de agir do profissional, mas como o usuário acolhe a proposta.

É importante reconhecer que o êxito do processo depende em grande parte da formação e experiência dos profissionais, bem como do ambiente institucional em que o cuidado com a MTC é desenvolvido. Resultados e efeitos são flexíveis e, em grande parte, dependentes da formação técnica, da responsabilidade e da experiência do profissional, bem como da sua compreensão sobre o contexto sociocultural e de vida e trabalho dos usuários. Mas, em um cenário heterogêneo, a avaliação destes resultados precisaria evidenciar se o cuidado realizado permite o alcance das metas planejadas também pelo usuário, que é a razão pela qual o cuidado foi construído, assim como evidencia os resultados ou efeitos não planejados.

Além disso, o cuidado institucionalmente organizado (nos serviços de saúde) deveria estabelecer tanto quanto possíveis metas a serem alcançadas, ainda que flexíveis, não sujeitas a protocolos fechados. No modelo, o cuidado é socialmente construído a partir da escuta e da interação significativa e reflexiva entre usuários e profissionais. Os resultados e efeitos são avaliados e reavaliados constantemente e as metas são construídas em conjunto. Porém, não se desconsidera a importância de avaliações externas e aquelas focadas na experiência e na percepção dos usuários.

Enfim, as dimensões do cuidado na MTCI exigem que seus resultados sejam verificados tanto a partir da manifestação física, quanto a partir da maneira como o “como o usuário se sente”. Diferente, portanto, da biomedicina em que os resultados são predominantemente verificados a partir da cessação de sintomas da doença.

O modelo proposto está em sintonia com a literatura que vem apontando para a importância e o crescimento das abordagens qualitativas em saúde que tratam, entre outros aspectos, de compreender a prática e o cuidado em saúde e, em particular, em MTCI. O cuidado em MTCI apresenta diversas especificidades, além de características singulares que sugerem abordagens avaliativas mais inovadoras e, portanto, modelos avaliativos centrados na experiência e na interação entre profissionais e usuários.

Considerações Finais

Processos de adoecimento e de cuidado precisam ser vistos como processos socialmente construídos. Dessa perspectiva emerge um conjunto de argumentos contrários à crescente e excessiva medicalização da doença, vis-à-vis a naturalização dos problemas sociais. Ou seja, reduzir questões sociais e comportamentais a questões de saúde e, portanto, afeitas a um enfoque puramente biomédico. Motiva uma perspectiva crítica, capaz de relativizar a hegemonia do discurso biomédico e abre caminho para incluir outras racionalidades presentes no campo da saúde. É a partir dessa relativização que a MTCI é hoje reconhecida pela OMS e, no Brasil, é componente do SUS, com crescimento significativo nos últimos anos. A sua recente expansão em todo mundo torna crucial a construção e aplicação de avaliações que elucidem a efetividade e também os seus limites.

Ao incluir e ressaltar um conjunto de características do cuidado com a MTCI, redefine-se o foco e objeto da avaliação. Assim, a questão da efetividade do cuidado com as MTCI é incorporada para além das evidências biomédicas. Abraçar a complexidade do processo de adoecimento implica ampliar e redefinir as dimensões humanas e sociais que envolvem o processo do cuidado, buscando novos referenciais metodológicos para sua avaliação, além de incluir novas maneiras de se definir e de se buscar evidências do sucesso terapêutico.

O debate acerca dos diferentes referenciais e diversos paradigmas da avaliação é relevante. Nesse caso, os pressupostos metodológicos para a avaliação podem caminhar em sintonia com a complexidade da prática, chamando a atenção para a singularidade das interações entre os agentes envolvidos e para a especificidade dos contextos. A construção de modelos pretende contribuir com uma perspectiva avaliativa útil para gestores, profissionais e pelas instituições de saúde, os quais não podem ignorar ou deixar de lado as diversas racionalidades que atravessam o processo saúde-doença.

Orientar a avaliação a partir das dimensões do cuidado e das suas características configura um caminho promissor desde que reflexivamente orientada para compreender a complexidade das inter-relações e da interdependência entre os agentes envolvidos.

A reflexão metodológica parece necessária diante do aumento considerável do uso da MTCI no sistema de saúde e da dificuldade inerente aos modelos tradicionais de avaliação de captarem as singularidades e características específicas do processo saúde/doença. Modelos mais apropriados e factíveis, voltados para a melhoria da qualidade das práticas, precisariam ser discutidos, o que pressupõe a ampliação do debate que ainda é incipiente no país.

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