versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.41 no.4 São Paulo jul./ago. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37132015000000057
A fibrose pulmonar idiopática (FPI) é definida como uma forma específica de pneumonia intersticial fibrosante crônica, com caráter progressivo e fatal. Este prognóstico reservado está sempre associado à deterioração da função pulmonar,1 e estima-se que a mediana de sobrevida após o diagnóstico seja de 2,8 a 4,8 anos.(2-6) Embora alguns pacientes possam apresentar alguma estabilização na evolução da doença por tempo indeterminado, a grande maioria dos casos evolui e perde a função pulmonar ao longo do tempo. Há pouco tempo, constatou-se que a estratégia terapêutica mundialmente adotada, com o emprego de corticosteroides e imunossupressores, poderia estar associada à maior mortalidade dessa população.7 Diante da inefetividade das medidas terapêuticas atualmente disponíveis e da rápida e inexorável progressão da doença, o transplante pulmonar permanece com uma das únicas opções efetivas para o tratamento da FPI.(1,4,8,9)
Realizado na Universidade de Toronto em 1983,(10,11) o primeiro transplante pulmonar unilateral foi indicado para o tratamento da FPI, sendo bem sucedido e com longa sobrevida do paciente. Nos últimos anos, o transplante de pulmão vem aumentando sua parcela como indicação de tratamento da FPI, sendo que, em muitos centros, já é a principal indicação com essa finalidade.(12-15) Os dados atuais de transplante pulmonar no tratamento da FPI mostram inclusive um significante impacto na sobrevida dessa população, com taxas de sobrevida em 1, 5 e 10 anos estimadas em 74%, 45% e 22%, respectivamente.12
Existem poucos estudos nacionais ou mesmo internacionais com um número expressivo de pacientes que quantifiquem o benefício na função pulmonar desses pacientes após o transplante.14 Uma estabilização ou uma melhora funcional em portadores de FPI, além de proporcionar alívio dos sintomas e melhora na qualidade de vida, está associada a menor mortalidade.16 O presente estudo busca avaliar a função pulmonar durante o primeiro ano após o transplante pulmonar em pacientes com FPI a fim de mostrar o real benefício funcional dessa estratégia terapêutica.
Foram analisados retrospectivamente os prontuários de pacientes com FPI submetidos a transplante pulmonar no período entre janeiro de 2006 e dezembro de 2012, no serviço de transplante pulmonar da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, em Porto Alegre (RS). Todos os pacientes desta amostra realizaram transplantes unilaterais. Também foi avaliada a sobrevida dos pacientes do estudo ao final de um ano do transplante.
Foram incluídos pacientes com diagnóstico de FPI segundo o último consenso da American Thoracic Society, European Respiratory Society, Japanese Respiratory Society e Latin American Thoracic Association.1 O diagnóstico de FPI requer o preenchimento dos seguintes critérios: a) exclusão de outras causas conhecidas de doença intersticial pulmonar, por exemplo, exposição ocupacional ou doméstica, doença do tecido conjuntivo ou toxicidade por drogas; b) presença de padrão de pneumonia intersticial usual na TCAR em pacientes não submetidos a biópsia cirúrgica; e c) combinação dos achados sugestivos de FPI na TCAR com o padrão histopatológico compatível nos pacientes submetidos à biópsia pulmonar cirúrgica.
Os critérios radiológicos e histopatológicos seguiram as recomendações de diretrizes nacionais e internacionais,(1,2,17,18) e todos os pacientes incluídos no estudo tiveram o diagnóstico histopatológico confirmado através da análise do pulmão retirado durante o transplante. As análises radiológicas e histopatológicas foram realizadas pelos serviços de radiologia torácica e de patologia diagnóstica da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
Foram excluídos os pacientes que foram a óbito antes do primeiro ano de seguimento ou que não conseguiram realizar a avaliação funcional ao término do primeiro ano após o transplante.
Previamente ao transplante, os pacientes estavam em acompanhamento pneumológico pela equipe clínica do serviço de transplante pulmonar da instituição, seguindo-se as diretrizes nacionais e internacionais então vigentes para o tratamento de FPI.(1,2) Todos os pacientes também foram submetidos a um programa de reabilitação pulmonar específico para pneumopatias intersticiais fibrosantes.
A escolha do pulmão a ser transplantado seguiu as normas das diretrizes internacionais para transplante pulmonar,15 sendo o grau de comprometimento de cada pulmão analisado previamente, bem como a compatibilidade com o tamanho do pulmão doador. O serviço tem como norma realizar, sempre que possível, somente o transplante pulmonar unilateral em portadores de FPI.
Todos os pacientes foram submetidos a provas funcionais respiratórias antes do transplante e no decorrer do primeiro ano de acompanhamento. Os testes foram realizados sempre no mesmo local - Laboratório de Função Pulmonar do Pavilhão Pereira Filho da Santa Casa de Porto Alegre - pela equipe de técnicos treinada em provas de função pulmonar. Todos os testes foram realizados com o equipamento MasterScreen IOS (Viasys Health Care Global, Loma Linda, CA, EUA), sendo avaliados os resultados obtidos no primeiro mês, terceiro mês e um ano após a data do transplante pulmonar. As provas funcionais foram realizadas conforme os critérios da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia e da American Thoracic Society,(19,20) e os valores previstos seguiram as equações nacionais para a população brasileira.21
Os dados espirométricos avaliados foram CVF, VEF1 e a relação VEF1/CVF.
Os dados foram apresentados em média e desvio-padrão. As variáveis funcionais foram analisadas por intermédio do teste t pareado. O nível de significância adotado foi de 5% (p ≤ 0,05). Para avaliar a diferença dos valores encontrados entre as provas funcionais foi utilizado o teste de Wilcoxon.
No período do estudo, 218 pacientes foram submetidos a transplante pulmonar na Santa Casa de Porto Alegre e, desses, 79 (36,2%) eram portadores de FPI, todos submetidos a transplante pulmonar unilateral. Desses 79 pacientes, 35 pacientes foram excluídos: 24 (30%) foram a óbito antes do final do primeiro ano e 11 (14%) não realizaram espirometria ao final do primeiro ano. Na Tabela 1 estão os dados demográficos da população estudada (N = 44). Desse total, 29 (66%) eram homens e 15 (34%) eram mulheres. A média de idade dos pacientes foi de 57 anos. A média da CVF foi de 1,78 l (50% do previsto), a de VEF1 foi de 1,48 l (52% do previsto) e a da relação VEF1/CVF foi de 83%, valores esses associados a um distúrbio ventilatório restritivo, característico da fibrose pulmonar.
A Tabela 2 apresenta os dados referentes à função pulmonar dos 44 pacientes antes e após o transplante pulmonar. Podemos observar que, em 30 dias, já era possível verificar um aumento médio da CVF superior a 400 ml, o que correspondeu a um aumento médio de 12% em relação aos valores basais. O mesmo se pode observar em relação ao VEF1, com um aumento médio absoluto de 350 ml, correspondendo a um aumento médio também de 12%. Em 90 dias, persistiu a melhora funcional, com um aumento adicional médio de 170 ml na CVF, correspondendo a uma média de 5% de aumento em relação ao valor basal. Na medida do VEF1, o aumento no intervalo entre o primeiro e o terceiro mês após o transplante foi, em média, de 50 ml, o que correspondeu a 1% no aumento médio. No final do ano em análise, quando comparados aos valores basais, a melhora média na CVF foi de 620 ml, correspondendo a 19% de incremento em um ano. Já no caso do VEF1, a melhora final foi, em média, de 430 ml, aproximadamente 16% de aumento em um ano.
Tabela 1 Características demográficas dos pacientes com fibrose pulmonar idiopática submetidos a transplante pulmonar unilateral incluídos no estudo.a
Características | (N = 44) |
---|---|
Idade, anosb | 57 (32-69) |
Masculino/Feminino, % | 66/34 |
VEF1, l | 1,48 ± 0,48 |
VEF1, % predito | 52 ± 17 |
CVF, l | 1,78 ± 0,60 |
CVF, % predito | 50 ± 18 |
VEF1/CVF | 83 ± 19 |
aValores expressos em média ± dp, exceto onde indicado.bValor expresso em média (variação).
Na Figura 1, o gráfico demonstra o incremento funcional, medido por CVF e VEF1, dos pacientes incluídos no estudo no decorrer do primeiro ano após o transplante pulmonar.
Do total de 79 pacientes transplantados, 13 (16%) foram a óbito nos primeiros 30 dias pós-transplante; 4 (5%) entre o primeiro e o terceiro mês e 7 (9%) entre o terceiro mês e o final do primeiro ano (Figura 2), totalizando 24 óbitos (30%).
Os dados do presente estudo demonstram que pacientes portadores de FPI apresentam uma significativa melhora da função pulmonar no decorrer do primeiro ano após serem submetidos a transplante de pulmão unilateral. Essa melhora ocorre já no primeiro mês após o procedimento, com um aumento médio de 12% em relação aos valores pré-transplante, tanto na CVF quanto no VEF1. O mais significativo é que essa melhora persiste não só nos meses subsequentes, como no terceiro mês avaliado no presente estudo, mas mesmo até o final do primeiro ano de acompanhamento, com um incremento médio de 19% em relação aos valores basais. Isso ocorre mesmo se tratando de um transplante unilateral e se levando em conta que o pulmão remanescente persiste com a evolução do processo fibrótico que levou o paciente a ser incluído na lista para transplante pulmonar. Uma das limitações do estudo foi o fato de que 14% dos pacientes eletivos para o estudo não apresentaram provas funcionais ao final do primeiro ano do estudo e, portanto, os resultados observados se aplicam somente aos pacientes transplantados que realizaram todas as espirometrias necessárias. A sobrevida ao final do primeiro ano para todos os pacientes com FPI e transplantados foi de 70% no presente estudo.
Tabela 2 Função pulmonar dos pacientes estudados (N = 44) antes e depois do transplante pulmonar unilateral.
Variáveis | Lista de espera | Após o TxP | pa | pb | pc | pd | pe | pf | pg | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1º mês | 3º mês | 1º ano | |||||||||
VEF1, l | 1,48 ± 0,48 | 1,83 ± 0,53 | 1,87 ± 0,55 | 1,91 ± 0,62 | < 0,001 | < 0,001 | < 0,001 | 0,144 | 0,112 | 0,047 | 0,001 |
VEF1, % predito | 52 ± 17 | 64 ± 18 | 65 ± 19 | 68 ± 22 | < 0,001 | < 0,001 | < 0,001 | 0,480 | 0,064 | 0,061 | 0,001 |
CVF, l | 1,78 ± 0,60 | 2,22 ± 0,60 | 2,39 ± 0,68 | 2,40 ± 0,65 | < 0,001 | < 0,001 | < 0,001 | < 0,001 | 0,005 | 0,084 | < 0,001 |
CVF, % predito | 50 ± 18 | 62 ± 16 | 67 ± 18 | 69 ± 19 | < 0,001 | < 0,001 | < 0,001 | 0,003 | 0,002 | 0,053 | < 0,001 |
VEF1/CVF | 83 ± 19 | 84 ± 10 | 80 ± 12 | 80 ± 10 | 0,561 | 0,020 | 0,052 | 0,006 | 0,024 | 0,937 | 0,361 |
TxP: transplante pulmonar. aLista de espera vs. 1º mês. bLista de espera vs. 3ºmês. cLista de espera vs. 1º ano.d1º mês vs. 3º mês.e1º mês vs. 1º ano.f3º mês vs. 1º ano.gTodo o período.
Figura 1 Resposta funcional após o transplante pulmonar durante o primeiro ano de acompanhamento em 44 pacientes que sobreviveram ao longo de todo o período. TxP: transplante pulmonar. ¶Todas as comparações. *Lista de espera vs. 1º mês vs. 3ºmês vs. 1º ano. †Todo o período.
Por se tratar de uma doença sem tratamento farmacológico comprovadamente eficaz quanto à melhora ou mesmo à estabilização da função pulmonar,1 os resultados do presente estudo reforçam a indicação do transplante nessa população, sendo essa a única medida terapêutica com impacto nesse quesito.10A gravidade e os índices de mortalidade elevados em pacientes com FPI incluídos em listas de transplante, muito superiores a de outras indicações, é mais um motivo para buscarmos essa alternativa para pacientes em estágio avançado da doença. Hayden et al.22 encontraram uma sobrevida em seis meses de 38% e 81% para portadores de FPI e de enfisema pulmonar, respectivamente, após transplante pulmonar.
São poucos os estudos da literatura que avaliaram a melhora funcional após transplante pulmonar em portadores de FPI, e muitos deles não apresentam dados completos.(22-24) Tomaszek et al.25 demonstraram que a melhora funcional também independe da idade na qual o paciente é submetido ao transplante. Chacon et al.26 avaliaram 7 pacientes com FPI submetidos a transplante pulmonar unilateral. As provas de função pulmonar foram realizadas entre seis meses e 1 ano após o transplante, sendo observada uma melhora média de 92% na CVF e de 78% no VEF1. Esses expressivos resultados não foram reproduzidos em outros centros.
Figura 2 Curva de sobrevida dos pacientes com fibrose pulmonar idiopática submetidos a transplante pulmonar unilateral durante o primeiro ano de acompanhamento (N = 79).
Lanuza et al.27 avaliaram a função pulmonar de 10 pacientes submetidos a transplante pulmonar, sendo dois bilaterais e oito unilaterais. A indicação para transplante pulmonar foi fibrose pulmonar, em 1 paciente; fibrose cística, em 4; e DPOC, em 5. O aumento médio da função pulmonar três meses após o transplante foi de 58% e de 55% na CVF e no VEF1, respectivamente, em relação aos valores basais.
Pêgo-Fernandes et al.28 observaram uma melhora funcional semelhante na análise de um ano após o transplante, sendo que pacientes submetidos a transplante duplo tiveram um aumento maior da CVF em comparação àqueles submetidos a transplante unilateral.
Por se tratar de um estudo de coorte retrospectivo, limitações em decorrência do delineamento devem ser consideradas. Optamos por avaliar somente os valores espirométricos da população estudada, uma vez que nem sempre as medidas de volumes pulmonares e de difusão estavam disponíveis ou eram mesmo reprodutíveis. Todos os pacientes foram submetidos a transplante pulmonar pela mesma equipe cirúrgica, no mesmo local e com a mesma técnica. A realização e a análise somente de casos de transplantes unilaterais foi uma das limitações do estudo, visto que em vários centros internacionais existe a opção preferencial para o transplante bilateral, inclusive com benefícios em termos de sobrevida.12 A opção por realização de transplante unilateral (e não bilateral) se deve principalmente à escassez de doadores de pulmão, os quais não são suficientes para atender a demanda de pacientes em lista de espera. Desta forma, em caso de doadores com os dois pulmões viáveis, existe sempre a possibilidade de dois pacientes serem transplantados no mesmo momento, reduzindo o tempo de espera na lista de candidatos ao transplante, o que é crucial para a sobrevida da população de pacientes com doenças respiratórias graves em fase avançada. Os tratamentos medicamentosos disponíveis para FPI na época do estudo seguiam as normas internacionais, e consideramos não terem tido impactos nos desfechos funcionais analisados. De forma semelhante ao procedimento cirúrgico, todas as provas funcionais foram realizadas com o mesmo equipamento e pelos mesmos técnicos, tornando a análise mais homogênea.
Com os dados encontrados no presente estudo, concluímos que pacientes com FPI submetidos a transplante pulmonar unilateral apresentam uma importante melhora da função pulmonar no decorrer do primeiro ano de acompanhamento. Esses dados são significativos, uma vez que a FPI apresenta progressão inexorável e a perda funcional está sempre presente, sendo um importante marcador de mau prognóstico. Novas modalidades terapêuticas, como a pirfenidona29 e o nintedanibe,30 ainda necessitam de uma avaliação mais precisa quanto ao impacto na sobrevida dessa população. O transplante pulmonar é considerado, até o presente momento, como a única alternativa terapêutica capaz de impactar de maneira significativa a progressão da doença, e sua indicação deve ser sempre discutida em casos cujo risco de insuficiência respiratória e mortalidade estiver próximo. Mais estudos são necessários, no entanto, para avaliar de forma mais robusta como a função pulmonar evolui após a realização de transplante pulmonar em portadores de FPI.