versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.30 no.4 Rio de Janeiro jul./ago. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20170048
A memória cardíaca, também conhecida como fenômeno de Chatterjee, é uma entidade conhecida, porém não comumente reconhecida na qual a repolarização do miocárdio se altera após alterações na ativação ventricular, como no caso de marca-passos artificiais, bloqueio intermitente do ramo esquerdo, extrassístoles ventriculares, pré-excitação ventricular ou episódios de taquicardia.1 Esse fenômeno se caracteriza por alterações persistentes, porém reversíveis, da onda T no eletrocardiograma (ECG) de superfície, induzidas por um padrão de ativação elétrica anormal. A extensão e a direção do desvio da onda T dependem da duração e direção da ativação elétrica anormal, podendo persistir por diversas semanas. Rosenbaum et al.2 observaram que alterações do vetor QRS "se assemelhavam" à onda T. A fisiopatologia subjacente da memória cardíaca ainda é complexa e encontra-se em evolução, porém foram relatadas alterações na corrente transitória de efluxo de potássio - Ito1 - e alterações no estado de fosforilação da proteína de ligação ao elemento de resposta ao AMPc (CREB).3
Embora pareça que a memória cardíaca seja um achado fisiopatológico relativamente benigno, ela pode levar a investigações diagnósticas invasivas e desnecessárias caso não seja reconhecida.
Relatamos o caso de um paciente que apresenta inversão da onda T profunda após implante de marca-passo cardíaco.
Relatamos o caso de uma mulher de 71 anos de idade, com histórico de hipertensão, hiperlipidemia e obesidade, internada no serviço de cardiologia apresentando síncope. O ECG mostrou bloqueio atrioventricular avançado e ritmo de escape ventricular estreito com frequência cardíaca de 35 batimentos/minuto, sem evidência de isquemia ou repolarização alterada (Figura 1).
O ecocardiograma transtorácico mostrou massa e função ventricular esquerda normais, sem alterações valvares significativas. Foram descartadas causas metabólicas para bloqueio atrioventricular. Marca-passo de dupla câmara foi implantado sem complicações e a paciente recebeu alta assintomática quatro dias após a internação.
Realizou-se consulta cardiológica de seguimento, bem como consulta de rotina para verificar o estado do marca-passo. Quatro meses após o implante do dispositivo, a análise do marca-passo revelou fibrilação atrial paroxística não conhecida anteriormente. ECG de 12 derivações revelou ritmo sinusal e inversão da onda T nas derivações DII, DIII e aVF e V3 a V6 (Figura 2).
A paciente encontrava-se completamente assintomática e não alterou nenhum de seus medicamentos de uso contínuo: lisinopril, atorvastatina e omeprazol. A hipertensão foi controlada com medicação e os exames cardiopulmonares e neurológicos foram normais. Repetiu-se o ecocardiograma transtorácico, que mostrou resultados semelhantes ao ecocardiograma realizado antes do implante de marca-passo, massa e função ventriculares esquerdas normais, ausência de alterações valvares, ausência de derrame pericárdico e correta colocação dos eletrodos de marca-passo. A paciente também foi submetida a ecocardiograma de estresse farmacológico, que se mostrou negativo para isquemia miocárdica. Com base nesse cenário clínico, concluiu-se memória cardíaca como diagnóstico final.
A memória cardíaca é um quadro pouco diagnosticado e os médicos devem estar cientes desse diagnóstico para evitar exames, internações hospitalares e custos com saúde desnecessários. Nosso caso clínico promove uma conscientização sobre esse diagnóstico entre os médicos.
O diagnóstico de memória cardíaca se baseia na definição do fenômeno em si. Trata-se de um diagnóstico de exclusão, quando o paciente apresenta novas alterações de ondas T após um período de ativação elétrica anormal, uma vez tendo sido descartadas outras causas de alterações na repolarização. Relata-se também que a combinação de (a) onda T positiva na derivação aVL, (b) onda T positiva ou isoelétrica na derivação I, e (c) tensão máxima de inversão da onda T em derivações precordiais mais elevadas que na derivação III tem estado associada a uma sensitividade de 92% e especificidade de 100% para o diagnóstico de memória cardíaca.4 Quando possível, é de grande valia a documentação da normalização das alterações de repolarização.
É essencial que sejam descartadas outras causas para a inversão da onda T para o diagnóstico de memória cardíaca. Existem diversas causas para a inversão da onda T: isquemia miocárdica, eventos intracranianos, hipertrofia ventricular esquerda, pericardite, embolia pulmonar, contusão miocárdica, prolapso da válvula mitral, miocardite, hipertrofia do septo apical, medicamentos etc. A isquemia miocárdica é um dos diagnósticos mais graves e preocupantes a serem descartados. Exige anamnese clínica cuidadosa e focada, além de teste diagnóstico de isquemia, em alguns casos, e até mesmo um método diagnóstico invasivo. Também é importante descartar hemorragia intracraniana através da realização de testes neurológicos e, quando ainda houver dúvidas, tomografia computadorizada (TC) do crânio. O ecocardiograma também pode ajudar a descartar alterações da motilidade regional da parede, hipertrofia, prolapso da válvula mitral, líquido pericárdico comumente presente na pericardite e repercussão cardíaca de uma embolia pulmonar significativa. Também é importante rever todos os medicamentos que o paciente vem tomando, principalmente medicamentos antiarrítmicos que podem alterar a repolarização cardíaca.
No nosso caso clínico, histórico clínico e exame físico completo, incluindo exames neurológicos, nos permitiu descartar diversas causas para a nova inversão da onda T, nomeadamente síndrome coronariana aguda, miocardite aguda, embolia pulmonar, acidente vascular cerebral, estado de mal epiléptico ou medicamentos. A paciente também apresentou sinais ao ECG que apontavam para o diagnóstico de memória cardíaca (Figura 2). O ecocardiograma também nos permitiu descartar diversas causas de inversão da onda T, tais como disfunção ventricular esquerda, alterações da motilidade regional da parede devido a infarto do miocárdio ou miocardite, hipertrofia ventricular esquerda ou efusão pericárdica. Considerando a idade do paciente e a coexistência de fatores de risco cardiovascular, decidimos realizar um ecocardiograma de estresse farmacológico para descartar doença arterial coronariana. Após resultado negativo ao ecocardiograma de estresse, demos o diagnóstico de memória cardíaca.4
A memória cardíaca foi reconhecida pela primeira vez em 1940, mas foi nomeada e estudada em 1982 por Rosenbaum et al.2 A remodelagem eletrofisiológica após a alteração da ativação se caracteriza por alterações distintas na região proximal (ativada precocemente) versus distal (ativada tardiamente) em relação ao local da alteração da ativação. Durante a ativação ventricular por marca-passo artificial, por exemplo, há alteração na duração do potencial de ação nas regiões miocárdicas ativadas precocemente (prolongamento leve) e tardiamente (prolongamento significativo). Consequentemente, ocorre remodelagem do potencial de ação regionalmente heterogêneo, o que aumenta os gradientes de repolarização regionais. Isso altera a direção do vetor de repolarização subjacente à base eletrofisiológica da memória da onda T(5). Diversos mecanismos têm sido propostos como sendo subjacentes ao desenvolvimento de memória cardíaca: expressão alterada da corrente transitória de efluxo de potássio, sinalização mediada pelo receptor da angiotensina II e, mais recentemente, alterações induzidas por deformação mecânica no potencial de ação.
A despeito de crenças iniciais de que a memória cardíaca era benigna, têm-se discutido algumas consequências prejudiciais das alterações da ativação ventricular, como piora da função mecânica5 e aumento da susceptibilidade a arritmias.6 Além disso, a memória cardíaca também pode ser responsável por pacientes submetidos a exames diagnósticos invasivos que desnecessariamente colocam os pacientes em risco.
A colocação de marca-passo é uma área em evolução na cardiologia, portanto estamos apenas começando a entender as consequências fisiopatológicas do implante desses dispositivos. Os cardiologistas devem definitivamente estar cientes da memória cardíaca e ter a capacidade de levantar essa suspeita quando indicado, evitando propedêuticas diagnósticas desnecessárias.