versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol., ahead of print Epub 11-Maio-2020
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0212
O Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) é uma doença sistêmica inflamatória, autoimune, de etiologia multifatorial relacionada a fatores hormonais, genéticos e ambientais. Tem manifestações multissistêmicas, além de morbimortalidade preocupante e decorrente, principalmente, de atividade da doença ou de complicações infecciosas.1
O risco elevado de infecção no LES tem diversas causas, entre as quais a disfunção imune própria da doença, com a produção de anticorpos autorreativos e consequente redução da imunotolerância, somada a fatores clínicos exemplificados pela deficiência de complemento e pelo tratamento imunossupressor.2,3 Representa complicação frequente, presente em até 36% das coortes descritas, além de ser causa de morte em até 30% dos pacientes.4 Trato urinário e pele são os principais sítios de infecção comunitária, ao passo que as respiratórias são mais incidentes em pacientes hospitalizados.4
As infecções de sistema nervoso central (SNC) são incomuns, porém têm letalidade significativa, atingindo 40%.5 Os agentes etiológicos variam conforme a população estudada, sendo Mycobacterium tuberculosis e Cryptococcus neoformans os mais comuns. Listeria monocytogenes é descrita em menor frequência, mas apresenta gravidade elevada.5 Os possíveis fatores de risco para meningoencefalite são atividade lúpica, uso de altas doses de prednisona e hipoalbuminemia.5,6 Descrevemos um caso de listeriose em SNC após imunossupressão em paciente com diagnóstico recente de LES, além de revisão da literatura acerca do tema.
Paciente feminina, 29 anos, sem antecedentes patológicos, com quadro de lesões eritematosas em membros inferiores e hipertensão arterial sistêmica, diagnosticada sete meses antes da admissão. Foi iniciada terapia anti-hipertensiva pelo médico assistente, porém com pouca resposta. Foi, então, admitida em serviço de emergência com queixa de dor torácica atípica, cuja investigação apontou derrames cavitários (pleural e pericárdico), corroborando suspeita de doença sistêmica. A hipótese de LES em atividade foi aventada, considerando a presença de serosite, acometimento cutâneo, envolvimento renal (hematúria e proteinúria) e positividade para o fator anti-núcleo de 1:640 (padrão nuclear homogêneo). A partir de dados clínicos e laboratoriais, sem biópsia renal, optou-se por pulsoterapia endovenosa com metilprednisolona durante 3 dias, seguido de prednisona 1 mg/kg/dia por via oral, além de se iniciar micofenolato mofetil. Nessa ocasião, a creatinina sérica era de 0,80 mg/dL.
Após três meses, retornou ao serviço com quadro de diarreia e astenia, além de edema de membros inferiores e lesões perineais, características de herpes genital. Exames laboratoriais evidenciaram elevação de creatinina sérica (1,50 mg/dL), hematúria dismórfica de 207.000/mL e proteinúria de 24 horas de 5 g, albumina sérica de 3,0 g/dL, hemoglobina sérica de 6,0 g/dL, sem indícios de hemólise. Nesse momento, considerando o escore de atividade da doença de base SLEDAI (Systemic Lupus Erythematosus Disease Activity Index), nossa paciente apresentava pontuação de 20: alterações urinárias (hematúria com cilindros, proteinúria e piúria), Anti-DNA em níveis elevados e redução dos níveis séricos dos fragmentos do complemento C3 e C4. Resultados acima de 8 indicam doença ativa.
Recebeu transfusão de hemácias e tratamento com aciclovir. Após melhora clínica, a biópsia renal foi realizada, constatando-se nefrite lúpica classe IV-global ativa/crônica (IV-G A/C) com atividade moderada e cronicidade discreta. Diante da contínua elevação de creatinina sérica atingindo 2,00 mg/dL, foi indicado novo curso de metilprednisolona por 3 dias.
Três dias após pulsoterapia, iniciou quadro de cefaleia, vômitos e alteração do estado mental. Ao exame físico, apresentava abertura ocular espontânea, reflexo de retirada ao estímulo doloroso, mas sem resposta verbal, sendo prontamente submetida à tomografia computadorizada de crânio (Figura 1). O exame de imagem mostrou hipodensidade em lobo frontal, compatível com edema, sem evidências de hipertensão intracraniana. Uma punção lombar foi realizada, com pressão de abertura de 73 cmH2O, e a análise quimiocitológica do líquido cefalorraquidiano demonstrou: 285 células por mm3 (60% de linfócitos), hiperproteinorraquia (112 mg/dL) e hipoglicorraquia (27 mg/dL). Na cultura, houve crescimento de Listeria monocytogenes, assim como nas amostras de sangue periférico. A pesquisa para C. neoformans e bacilo álcool-ácido resistente foi negativa.
Figura 1 Tomografia computadorizada de crânio com contraste. Área de hipoatenuação na substância branca frontal esquerda com acentuação do efeito expansivo sobre as estruturas adjacentes, medindo cerca de 7,0 x 5,0 cm.
Inicialmente, optou-se por tratamento empírico para infecção com ceftriaxona, vancomicina e aciclovir. Após diferenciação em cultura, o esquema antimicrobiano foi alterado para ampicilina endovenosa. O estado neurológico da paciente deteriorou, e ela foi transferida para unidade de terapia intensiva, com necessidade de suporte ventilatório invasivo e hemodinâmico, necessitando de noradrenalina para estabilização da pressão arterial. Foi realizada derivação ventricular externa, mantida por cinco dias, com monitorização de pressão intracraniana. Concomitantemente, apresentou azotemia e oligúria, com início de hemodiálise intermitente por cateter de curta permanência.
Após melhora hemodinâmica, a sedação e analgesia parenterais foram suspensas, porém não houve evolução neurológica satisfatória. A avaliação da equipe da neurocirurgia não indicou intervenção durante o seguimento. A paciente permaneceu 60 dias em estado comatoso, com evolução da imagem radiológica, cujas características passaram a ser compatíveis com abscesso (Figura 2). O padrão eletroencefalográfico evidenciava desorganização e alentecimento da atividade elétrica cerebral de base com reatividade paradoxal. Diante da irreversibilidade do quadro neurológico, optou-se por instituição de cuidados paliativos com evolução a óbito após quadro de infecção de corrente sanguínea.
Figura 2 Ressonância magnética de crânio, técnica de turbo-spin eco pesada em T2. Formação expansiva, de 3,0 x 3,0 x 3,5 cm, no lobo frontal esquerdo, acometendo principalmente os giros frontal superior e médio, de contornos irregulares, margeada por focos de depósito de hemossiderina, notando-se intensa restrição à difusão no seu interior, compatível com abscesso.
A L. monocytogenes é uma bactéria Gram-positiva, reconhecida como patógena na década de 1970. A infecção tem particular importância em idosos, gestantes e imunossuprimidos. Determina mortalidade próxima a 30%, que se eleva com o retardo do diagnóstico.7,8 Suas formas de manifestação mais comuns são a neurolisteriose, bacteremia e infecção materna-neonatal.8
A listeriose é uma doença esporádica, com surtos após a ingestão de alimentos contaminados. A bactéria pode ser encontrada em diferentes ambientes devido à sua capacidade de sobreviver a condições adversas, como baixas temperaturas.8 Nos Estados Unidos, a incidência de casos confirmados é de 0,3 por 100.000 pessoas; atingindo 1,3 e 3 casos por 100.000 pessoas nos maiores de 65 anos e em gestantes, respectivamente. No Brasil, por ser subdiagnosticada e subnotificada, há poucos dados epidemiológicos disponíveis.9 Em estudo retrospectivo francês, que analisou 1959 casos entre os anos 2001 a 2008, encontrou-se risco aumentado para listeriose em pacientes com distúrbios hematológicos, neoplasias e transplantes de órgão sólido. Fatores de pior prognóstico relatados são: idade maior que 80 anos, cultura de sangue periférico positiva e a presença de comorbidades.10
Após ser ingerido, o período de incubação do bacilo varia entre 11 e 28 dias, quando se manifesta como uma síndrome diarreica autolimitada ou, em doentes suscetíveis, como doença invasiva, compreendendo sepse e, especialmente, infecção de SNC de variável predileção anatômica: meningoencefalite (a mais comum), cerebrite, abscesso cerebral e rombencefalite.9,11 Clinicamente, os sintomas são variáveis, cursando com febre e alteração inespecífica do estado mental, até um quadro comatoso grave. Convém apontar que sinais de irritação meníngea ocorrem em 40% dos pacientes.12 Laboratorialmente, a análise do líquido cefalorraquidiano evidencia alterações semelhantes a outro processo infeccioso: pleocitose (com predomínio de polimorfonuclear ou linfomononuclear), proteinorraquia elevada e reduzida glicorraquia. O diagnóstico necessita de isolamento da bactéria em líquido corporal estéril, como sangue ou líquido cefalorraquidiano,13 permitindo ainda avaliação de perfil de suscetibilidade. O exame com a técnica de reação em cadeia de polimerase vem sendo estudado recentemente, com resultados promissores, como alternativa em casos de alta suspeita clínica e sem diferenciação em culturas.14 O melhor exame de imagem para estudo de topografia cerebral, cortical, tronco e cerebelar é a ressonância magnética, apresentando mais especificidade em relação à tomografia computadorizada.13
Apesar de suscetibilidade a diversas classes de antibióticos in vitro, ainda não há um tratamento ideal para a listeriose, visto que a eficácia da antibioticoterapia atinge aproximadamente 70%. Múltiplas possíveis causas podem ser listadas, como a característica localização intracelular da L. monocytogenes e seu tropismo pelo SNC, dificultando a penetração da medicação.8,15,16
As penicilinas representam a terapia padrão ouro, sendo as mais utilizadas no tratamento da infecção. Destaca-se a ampicilina, que deve ser prescrita em dose elevada (9 g/dia) por pelo menos 21 dias, para os casos de acometimento do SNC,17,18 chegando a 6 semanas, nos casos de abscesso cerebral.12 Em pacientes alérgicos às penicilinas, recomenda-se tratamento com Sulfametoxazol-Trimetoprima. Outros antibióticos com ação in vitro documentada contra a L. monocytogenes são: quinolonas, vancomicina, linezolida e meropenem; porém, com evidência limitada, principalmente quanto à sua eficácia na doença neurológica. Terapia combinada de ampicilina associada a gentamicina, objetivando sinergismo, é descrita, mas com resultados conflitantes, o que pode ser explicado pela baixa penetração dessa droga no líquido cefalorraquidiano.17-19 O uso de corticoide para pacientes com meningoencefalite por listeria relaciona-se a desfechos controversos,10,20 não existindo evidência suficiente para indicar sua prescrição.18
No caso relatado, apesar do rápido diagnóstico e início de terapia adequada, o dano neurológico foi irreversível e a evolução, desfavorável. Além dos fatores de risco já discutidos, a atividade do LES tem sido associada ao risco de infecção nessa população, de forma diretamente proporcional à graduação do índice de atividade pelos critérios do SLEDAI. À admissão, nossa paciente apresentava SLEDAI de 20, caracterizando elevada atividade da doença.3 Diante disso, torna-se um desafio diferenciar sintomas neurológicos secundários à infecção de quadro neurológico que correspondente à doença de base (lúpus neuropsiquiátrico), uma vez que sintomas como cefaleia, convulsão e febre ocorrem nas duas entidades.
Apesar de ser causa pouco frequente de infecção de SNC em pacientes com LES, a L. monocytogenes precisa ser lembrada como agente etiológico, uma vez que essa população encontra-se em risco devido à imunossupressão e por tratar-se de enfermidade de alta letalidade. O quadro clínico pouco típico pode atrasar um possível diagnóstico, e consequentemente agravar ainda mais a evolução.