versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.109 no.1 São Paulo jul. 2017
https://doi.org/10.5935/abc.20170100
Nasci na era da medicina sem evidências. Quando estudante, o diagnóstico de hipertensão arterial (HA) era feito a partir de valores de pressão arterial (PA) acima de 160/95 mmHg.
Alguém pode imaginar isso agora?
Na cardiologia avançamos demais, em todos os sentidos, tanto nos métodos de diagnóstico como na terapêutica. Hoje, o tratamento é baseado em evidências científicas e o arsenal de medicamentos é extremamente efetivo.
Mas, voltemos à HA.
Ao longo dos anos, aprendemos, através de um grande número de estudos, primeiro observacionais, depois de intervenção, que, se por um lado, o risco cardiovascular se eleva a partir de valores de 115/75 mmHg e dobra a cada aumento de 20 mmHg de pressão sistólica (PAS) e 10 mmHg de pressão diastólica (PAD), por outro, é diminuído de maneira significativa pela redução da PA, através do tratamento farmacológico oferecido aos hipertensos.1-5
Não há evidências definitivas de que o tratamento não farmacológico (hábitos de vida saudáveis) dê os mesmos resultados, mas é um pressuposto tão óbvio, que é aceito universalmente, ainda que de difícil implementação no mundo em que vivemos.1-5
Excelentes fármacos anti-hipertensivos foram desenvolvidos e aperfeiçoados. Os benefícios de seu uso foram comprovados, tanto do ponto de vista da morbidade, quanto da mortalidade.1-5
Não paira qualquer dúvida sobre isso.
Estamos envolvidos, entretanto, em diversos dilemas, a começar pelo acesso aos serviços de saúde e aos medicamentos, quando necessários. É um ponto crucial, depende de políticas públicas consistentes que mudem este estado de coisas, mas que não será objeto desta discussão.1-5
Outro aspecto, no âmbito do tratamento propriamente dito, é o enorme desafio da adesão. Até hoje, uma minoria de indivíduos, mesmo conhecedores de sua situação de hipertensos e dos riscos inerentes a essa situação e, mesmo tendo acesso ao sistema de saúde, não adere ao tratamento proposto. Essa é outra grave questão que passa por medidas educacionais em todos os níveis, como principal forma de modificação desse comportamento, que é comum e universal, mas também não será hoje, objeto de minhas observações.1-5
E vamos ao ponto.
Na medida em que, nos últimos 40 anos, centenas de estudos de tratamento de HA aconteceram ao redor do planeta, tivemos a oportunidade de constatar que a terapia farmacológica modifica a história natural da doença, diminuindo a mortalidade e a morbidade cardiovascular de maneira significativa. Deve ser destacado que tal fato ocorre, menos pelo tipo de fármaco utilizado, mas principalmente pela redução da PA.
Fecha-se assim o ciclo epidemiológico, a redução dos valores de PA traz efetivamente o benefício.1-5
Mas, quanto devemos reduzir, até quanto é seguro?
O dilema das metas!
A maioria dos estudos que mostraram diminuição de eventos cardiovasculares foi desenhada para comparar valores de PA antes e depois do tratamento. No primeiro momento, fármacos ativos comparados a placebo, verificando as mudanças na PA e seus possíveis benefícios. Posteriormente, foram comparados medicamentos ativos entre si, na busca de diferenças entre eles.
O foco principal não foi o nível de PA atingido, mas a diferença entre os valores iniciais e finais.
Sabemos que a melhor fonte de evidências em medicina vem dos ensaios clínicos randomizados e controlados. Para o estabelecimento de metas objetivas era necessário que o desenho da investigação tivesse esse objetivo.
O estudo HOT (Hypertension Optimal Treatment),6 publicado em 1998, foi precursor em relação a metas. Nesse caso, a referência utilizada foi a PAD. Mais de 18.500 pacientes com idade entre 50 e 80 anos (média 61,5 anos), com PAD entre 100 e 115 mmHg, foram alocados para metas de PAD ≤ 90 mmHg, PAD ≤ 85 mmHg e PAD ≤ 80 mmHg. Verificou-se que havia maior redução de eventos cardiovasculares na medida em que os valores obtidos eram menores, e o maior benefício ocorreu no grupo de pacientes que teve redução da PAD para um valor médio de 82,6 mmHg. Foi observado, ainda, que reduções abaixo desses valores eram seguras e que, entre os diabéticos, os benefícios foram ainda maiores para o grupo em que a meta era de PAD ≤ 80 mmHg. Esse estudo foi um marco no que diz respeito às metas de PA, e a diretrizes internacionais tomaram-no como base durante anos.1-4,6
Tivemos, ao longo do tempo, centenas de investigações de intervenção medicamentosa, de boa qualidade, envolvendo milhares de pacientes e que continuaram sedimentando o conhecimento dos benefícios do controle da PA, mas, para avaliar metas, não tivemos tantos projetos.1-4,6
Muitos estarão pensando em alguns estudos que buscaram estabelecer metas, como o italiano Cardio-Sis publicado em 2009, que investigou hipertensos não diabéticos acima de 55 anos, e buscou metas de PAS < 130 mmHg ou <140 mmHg. Nesse, o desfecho primário de hipertrofia ventricular esquerda, que é intermediário, mostrou resultados significativamente favoráveis a valores inferiores de PA, sendo também encontrados resultados positivos em relação a desfechos secundários pré-especificados, esses, sim, cardiovasculares.7
Da mesma forma foi publicado em 2008 o CASE-J trial, que envolveu apenas idosos e indicou vantagens significativas para menores valores de PA. Ainda em 2008, o estudo JATOS também avaliou idosos e não mostrou diferenças entre metas menores que 140 mmHg ou 160 mmHg para PAS.8,9
Até então, todos os documentos oficiais (inclusive nossas últimas Diretrizes) sobre quais valores de PA deveriam ser buscados, para maiores benefícios, trabalhavam com níveis de PA menores que 140/90 mmHg para a população geral e menores que 130/80 mmHg para os de alto risco cardiovascular, os com doença cardiovascular, os diabéticos e os com doença renal estabelecida.1-4,10,11
Em 2010, é publicado o resultado do Estudo ACCORD.12 Esse tratava exclusivamente de pacientes diabéticos e procurava definir, entre outras perguntas, se metas de controle da PA mais agressivas (PAS < 120 mmHg) apresentavam alguma vantagem em relação a metas que foram definidas como convencionais (PAS < 140 mmHg). Foram randomizados, para esse fim, mais de 4.500 hipertensos diabéticos, com idade média de 62 anos, que foram seguidos por um período médio de 4,7 anos. O desfecho primário composto foi infarto do miocárdio não fatal, acidente vascular cerebral não fatal ou morte por causa cardiovascular. Foram também pré-definidos vários desfechos cardiocirculatórios secundários. Os resultados foram nulos, ou seja, não houve diferença nos eventos compostos cardiovasculares maiores, fatais e não fatais. No que diz respeito aos desfechos secundários, não houve diferença significativa em vários deles, mas, com relação ao acidente vascular fatal e não fatal, houve uma redução significativa desses eventos, de 41% e 37% respectivamente. O grupo de redução mais intensa da PA apresentou mais eventos adversos, mas sem comprometer o final do estudo.12
A repercussão desse estudo foi grande e trouxe, como consequência, um novo raciocínio, em minha avaliação, equivocado.5 De modo quase que imediato, ficou subentendido que metas de PA mais rigorosas para diabéticos seriam prejudiciais, e, ainda de maneira indireta, houve um questionamento sobre metas de PA mais baixas para todos os tipos de pacientes.5
Avalio os achados do estudo ACCORD de maneira diferente e interpreto os resultados com outra ótica. Os desfechos primários foram semelhantes, ou seja, não houve diferença.12 E reforço, o significado disso é: não houve diminuição nem aumento dos eventos primários.12
Por outro lado, e não menos importante, ao verificarmos o desfecho secundário ‘acidente vascular cerebral’, constatamos que houve benefícios para o grupo com controle mais intenso da PA.12 Quem, em sã consciência, não quer proteger seu paciente diabético de um acidente vascular cerebral? Só para reflexão.
Na sequência das investigações em busca dos valores mais adequados para a PA, no final de 2015 é publicado o estudo SPRINT.13 Financiado pelo National Institutes of Health (NIH), sem qualquer conflito de interesses, o protocolo foi cuidadosamente desenhado com o objetivo específico de verificar quais valores de PA seriam mais benéficos em termos de desfechos cardiocirculatórios para pacientes hipertensos não diabéticos. Foram selecionados indivíduos de 50 anos ou mais, com PAS entre 130 e 180 mmHg e risco cardiovascular aumentado. Foram definidas metas de PAS < 120 mmHg para os randomizados para tratamento mais intensivo, e PAS < 140 mmHg para os indicados para tratamento definido como convencional. Os desfechos primários compostos foram infarto agudo do miocárdio, outras síndromes coronarianas agudas, acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca ou morte por causa cardiovascular. Os desfechos secundários foram definidos como os componentes individuais dos primários, morte por todas as causas e a soma do desfecho primário ou morte por todas as causas.13
Foram randomizados 9.361 pacientes, sendo mais de 4.650 em cada modalidade de tratamento. A média de idade foi de 67,9 anos e os grupos foram homogêneos em todos os aspectos. No primeiro ano de seguimento, as médias alcançadas de PAS e PAD foram, respectivamente, de 121,4 e 68,7 mmHg no grupo de tratamento intensivo, e 136,2 e 76,3 mmHg no grupo de tratamento convencional. Ao final do estudo, as médias das PAS foram de 121,5 e 134,6 mmHg, para o grupo de tratamento intensivo e convencional, respectivamente.13
O SPRINT, planejado para ter 5 anos de duração, foi interrompido pelo Comitê de Segurança aos 3,26 anos, por ter sido observada diferença significativa de desfechos entre os dois grupos, em dois momentos distintos pré-estabelecidos para esse controle. Houve uma diminuição de 25% nos desfechos primários no grupo de tratamento intensivo, e esta diferença já começou a aparecer a partir do primeiro ano da intervenção. O número de mortes por todas as causas foi também 27% menor no grupo de tratamento intensivo e, da mesma forma, ocorreram 43% menos mortes por causa cardiovascular nesse grupo de indivíduos. Os eventos adversos foram mais frequentes no grupo que teve controle mais rigoroso da PA sem, entretanto, haver prejuízos significativos que comprometessem o andamento da pesquisa.13
Esse ensaio clínico foi marcante, com um excelente desenho, objetivos claros e desenvolvimento correto. Seus resultados foram contundentes. Porém, como qualquer protocolo, sujeito a questionamentos. Nesse caso, a maioria sem consistência.
Um ponto levantado foi o fato de ter sido interrompido antecipadamente.
Mas, como não o fazer?
Era uma questão de segurança. Como não oferecer o melhor aos pacientes? E revendo criticamente o estudo, sabe-se que seus resultados não podem ser questionados por esse motivo. De fato, o ensaio trouxe, efetivamente, preciosas informações sobre as metas a serem perseguidas.
Uma boa alternativa aos ensaios clínicos randomizados, para a comprovação de evidências científicas, é oferecida pelas meta-análises e revisões sistemáticas. Mas sabemos que podem, também, ser levantados óbices aos seus resultados. Esses podem variar, na dependência dos critérios de seleção dos estudos que serão avaliados e de quais, finalmente, serão incluídos.
No que diz respeito a metas de PA, temos um número razoável dessa modalidade de investigação.
Destaco quatro trabalhos recentes nessa linha, sendo o primeiro de 2015, em pacientes diabéticos tipo 2, dois de 2016, sendo um de Xie et al.16 e outro de Ettehad et al.,15 que tratam de hipertensos em geral, e o último, publicado em 2017 no JACC, que avalia a mesma questão em pacientes idosos.17 Todos demonstram os benefícios de controles mais rigorosos da PA como forma de diminuir a morbimortalidade cardiovascular dos pacientes.14-17
Ainda com relação a essa questão, vale destacar o interessante editorial publicado por Perkovic e Rodgers,18 no NEJM em novembro de 2015, quando da publicação do SPRINT. Nele, os autores fazem uma avaliação conjunta dos Estudos ACCORD e SPRINT, identificam suas semelhanças e eventuais diferenças e entendem os estudos como complementares, criando uma nova situação, com um número ainda maior de pacientes, e sugerindo resultados adicionais. Observam que ambos os estudos tinham a mesma meta de PA, os desfechos foram semelhantes, mas o estudo ACCORD teve um poder estatístico menor que o SPRINT, e alguns dos desfechos primários do ACCORD eram menos sensíveis às alterações da PA (Figura 1). Esses autores não chegam a fazer uma sugestão objetiva de valores, mas indicam, com base em suas observações e convicções, que metas mais arrojadas são bem-vindas, principalmente para indivíduos de maior risco cardiovascular.
Figura 1 Combinação dos desfechos do SPRINT e ACCORD e dados combinados dos dois estudos. IAM: infarto agudo do miocárdio; AVC: acidente vascular cerebral; ICC: Insufciência Cardíaca; ICo: eventos coronarianos; CV: cardiovascular. Adaptado de Perkovic e Rodgers.18
Por último, no início de 2017, Chobanian publica, no JAMA, um ponto de vista que coincide com meu pensamento.19 Seu racional é bastante lógico com base nas evidências existentes até o momento. Sugere metas mais rigorosas (PA < 120/80 mmHg) para indivíduos com menos de 50 anos. Valoriza, assim, a PAD nesse grupo, reforçando o conceito da importância da PAD para os mais jovens. Sugere valores menores que 130 mmHg para todos aqueles entre 50 e 74 anos com risco cardiovascular elevado ou com doença estabelecida, inclusive os diabéticos, considerando os benefícios oferecidos pelo ACCORD em relação ao acidente vascular cerebral. Finalmente reserva valores < 140 mmHg para todos os pacientes com idade igual ou maior que 75 anos.19
Mesmo levando em conta a falta de informações definitivas sobre quais números devem ser buscados em pacientes de alto risco cardiovascular, inclusive com algumas inferências de que valores excessivamente baixos possam ser prejudiciais,20 esses são os números com os quais tenho trabalhado, levando em conta, evidentemente, a peculiaridade de cada paciente.
Por fim, devemos ter em mente que a maioria dos indivíduos permanece com níveis de PA muito acima de qualquer meta estabelecida e aceitar valores mais elevados, ser contemplativo, é prejudicial e representará, ao longo dos anos, um recrudescimento significativo das doenças cardiovasculares que ainda são a principal causa de morbidade e mortalidade nos dias atuais.