versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.10 Rio de Janeiro out. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320172210.17722017
No âmbito da Vigilância em Saúde, o campo da Vigilância em Saúde Ambiental possui um forte componente geográfico, que é o monitoramento do ambiente como estratégia de diminuição das vulnerabilidades e riscos à saúde da população. Este trabalho é pensado e executado por profissionais de saúde que atuam, desde as escalas operacionais mais próximas das populações, das vulnerabilidades e dos riscos, como os agentes de saúde, até esferas de ordem gerenciais que pensam, organizam e distribuem as ações, como os gestores municipais, estaduais e federais.
A articulação entre essas distintas escalas na prática operativa vem apresentando algumas dificuldades no âmbito da gestão territorial, visto que a lógica de atuação dos operadores de campo da política de vigilância, os agentes de saúde, é pautada numa relação de proximidade e convivência com as comunidades. No entanto, a prática gerencial é fundada em premissas de caráter normativo, oriundas da esfera central, e na gestão dos recursos humanos e logísticos, numa escala de administração que varia da nacional aos distritos sanitários locais.
Acredita-se que entre essas duas esferas de planejamento e de operacionalização das ações de Vigilância em Saúde existem grandes desafios operacionais, muitas vezes, oriundos da falta de interação comunicativa entre os executores e gestores dos programas. O desdobramento disso são ações ineficazes sobre o território. O conhecimento do espaço geográfico e o planejamento de ações pautadas numa dada organização territorial pode ser uma contribuição para aproximar a esfera operativa da gerencial.
Esses desafios operacionais emergem, por um lado, do próprio contexto de heranças técnicas presentes nos atuais programas de saúde. Do outro, pelo processo de adaptação dos gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) à sua implantação progressiva. Ainda é um desafio aos gestores colocar em prática políticas públicas baseadas nos princípios e diretrizes do SUS. Entre concepção e atuação existe uma ampla rede de barreiras que desafia rotineiramente a execução das ações.
O conceito amplo de saúde, meio ambiente e território é incorporado no ideário das políticas, na normatização dos procedimentos e marco legais1; entretanto, na esfera operacional da Vigilância em Saúde Ambiental, a retórica supera a efetivação desses conceitos. Falar de território e meio ambiente virou quase obrigação no planejamento de políticas de saúde, porém, efetivamente, não existem muitas ações que incorporem esses conceitos com coerência. Ainda é muito mais metáfora do que ação!
Por exemplo, atualmente milhares de agentes de controle de endemias (ACE) e saúde ambiental percorrem o território nacional visitando imóveis, conversando com as pessoas, intervindo no ambiente. Desde o início do século XX, esse trabalho é realizado com o objetivo maior de monitorar o ambiente e controlar possíveis fatores de riscos à saúde. Foi assim com os primeiros trabalhos de Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro para combater a febre amarela, aos quais se seguiram os esforços do governo brasileiro para deter a malária nas áreas produtoras de borracha em meados do século passado2, esforços esses que se continuam nas ações inesgotáveis de combate aos vetores transmissores das arboviroses que acometem a população brasileira.
A partir do momento que os atores operantes das políticas desenvolvem suas ações de forma mecânica, ou seja, sem analisar e avaliar o contexto no qual estão inseridos, haverá uma predominância da metáfora sobre a ação. O “exército de mata-mosquitos” continuará reproduzindo as “mesmas” técnicas de controle ambiental do início do século, apenas com uma mudança no discurso político.
Então, partindo desta problemática surge a necessidade de trabalhar o território e a territorialização aplicados à Vigilância em Saúde como forma de aproximar mais o discurso da prática e o contexto da ação. O conceito de território já foi bastante discutido em seu aspecto epistemológico3-6 e aplicado à saúde7-11 para não se tornar apenas uma palavra de efeito sem sentido técnico. Alguns trabalhos já discutiram a importância e os distintos significados do território para as análises socioespaciais. Monken e Barcellos12 e Faria e Bortolozzi13, destacam, por exemplo, o legado de Milton Santos no que se refere à categoria de território usado para as análises e o planejamento da Vigilância em Saúde. Reforçam a tese de que o que importa no planejamento e gestão das políticas de vigilância é a compreensão do uso do território enquanto espaço vivido superando a perspectiva do território apenas como palco.
Tradicionalmente o território era visto na saúde como mero receptáculo espacial, um recorte institucional, sobre o qual não se indaga nem se questiona a lógica da divisão e de trabalho em si. Essa concepção meramente institucional do território é apontada como retrógrada e limitada14-16, pois reduz a capacidade de sua compreensão enquanto instância político-social, embora os mesmos autores reconheçam que tradicionalmente o setor saúde sempre trabalhou nessa perspectiva e apenas recentemente vem aprofundando a discussão sobre outros aspectos essenciais, como o uso do território e as relações de poder existentes.
Pereira e Guimarães17, avaliando as condições de trabalho dos agentes de saúde no Recife, identificaram demasiada ênfase no cumprimento de metas de trabalho no lugar das análises sobre as situações de saúde. Para Bitoun18, os agentes que atuam na ponta dos programas de vigilância não podem ser vistos pelas estruturas hierárquicas superiores como meros coletores de dados, pois eles têm um grande potencial intervencionista no território.
Rigotto e Augusto19 e Marandola Júnior20 discutem como o território vem sendo incorporado nas políticas de saúde brasileiras, especialmente com foco nas ações sobre as iniquidades sociais nas análises de saúde ambiental e no planejamento de políticas públicas. Com base nesse debate transdisciplinar, pretendemos apresentar como os conceitos de território e de territorialização vêm sendo abordados nas práticas da Vigilância em Saúde Ambiental. Como resultado principal apresentaremos uma metodologia de territorialização para Vigilância em Saúde construída de forma participativa, a partir das experiências dos agentes de vigilância, bem como do papel desses atores nesse processo e os principais desafios operacionais na prática de campo.
O estudo é de caráter aplicado e utiliza-se de uma abordagem qualitativa. As principais técnicas de investigação foram a pesquisa participante e o estudo de caso21. O objetivo da análise está focado sobre os estudos do sentido da ação e da avaliação de políticas22, visto que se tentará por meio do emprego de técnicas de investigação, contribuir objetivamente para a compreensão de determinado fenômeno social, bem como propor instrumentos de gestão política que possam ser efetivados na prática.
O recorte do estudo partiu da Região Metropolitana do Recife que é formada por quatorze municípios com aproximadamente 3,5 milhões de habitantes. Foram selecionados quatro municípios (Recife, Olinda, Jaboatão dos Guararapes e Camaragibe) que apresentam um significativo nível de integração, mas também possuem singularidades socioespaciais que diferenciam a prática operacional cotidiana dos agentes de vigilância no território, além dos distintos processos de formação desse contingente de trabalhadores.
Após a seleção dos municípios foi realizada uma visita a cada gestor municipal responsável pela política de Vigilância em Saúde Ambiental. O objetivo foi apresentar uma proposta de oficinas de trabalho (Quadro 1) juntos aos agentes de vigilância, para discutir a prática cotidiana deles com foco nas ações no território. A ideia foi conceber uma estratégia de investigação de cunho prático que valorizasse a participação dos atores sociais, por meio da autonomia nas discussões e da troca de experiências acumuladas23.
Quadro 1 Síntese da metodologia das oficinas com os atores da Vigilância em Saúde Ambiental.
1º momento - | 2º momento |
- Exposição dos objetivos da oficina e dos participantes; | - Dinâmica de grupos com o objetivo de avaliar a percepção individual e coletiva sobre a representação do território através da música, do desenho e da discussão das ideias nos grupos. |
- Apresentação dos conceitos de Território e Territorialização aplicados às ações da Vigilância em Saúde. | |
3º momento | 4º momento |
- Construção do processo de Territorialização; | -Discussão dos desafios à territorialização participativa. |
- Quem faz? Por que territorializar? Os desafios da Territorialização. (exposição do vídeo Territorialização e saúde – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz); | - Estratégias e táticas, planejamento e gestão do território na Vigilância em Saúde. |
- Discussão e Debate | - Encerramento da oficina com síntese das discussões e agradecimentos |
Desse modo foram concebidas oficinas de trabalho em parceria com as gerências das vigilâncias em saúde ambiental dos municípios estudados. Buscando viabilizar uma maior participação dos atores envolvidos, foi definido que doze turmas, cada uma delas com quarenta participantes, seriam viáveis para o estudo, pois apresentaria uma amostra significativa, e atenderia a demanda das organizações no que diz respeito à questão da formação continuada. Esse cálculo baseou-se no número de agentes/supervisores de cada município. A distribuição das turmas adotou critérios equitativos e de disponibilidade de pessoal, resultando em duas turmas para o município de Olinda, duas para Camaragibe, duas para Jaboatão dos Guararapes e seis para Recife.
Os locais de realização ficaram a cargo das prefeituras que disponibilizaram auditórios existentes nos equipamentos de saúde dos municípios. A duração das oficinas foi de oito horas por turma, totalizando oitenta horas de exposições e discussões. O público-alvo reuniu agentes de controle de endemias, supervisores de campo e gerais, e em alguns momentos contou com a presença de técnicos e analistas das vigilâncias, além de gestores, totalizando a participação aproximada de 300 profissionais de saúde.
O processo de territorialização em saúde, defendido por Monken e Barcellos12, Bezerra15, Gondim et al.16, só tem sentido se pensado por meio da discussão com os atores sobre o que representa o território, para que territorializar e qual o papel dos agentes de saúde nesse processo. Nesse sentido, os resultados discutidos nas oficinas trouxeram à tona um conhecimento ímpar dos ACE diante do processo de territorialização participativa. Foi questionado aos agentes o que representa o processo de territorialização das ações da Vigilância em Saúde Ambiental.
Segundo os ACE, a territorialização é algo ainda muito distante da realidade atual de trabalho dos próprios agentes. Na maior parte dos casos, como Recife, Olinda e Camaragibe, os ACE trabalham em uma base territorial fixa, mas comumente são convocados a saírem de seus territórios para cobrir áreas sem agentes, o que acaba inviabilizando um trabalho mais sólido no seu território de origem. No caso do município de Jaboatão dos Guararapes, o processo de trabalho já seguiu essa lógica, mas por questões operacionais resolveu-se adotar a base territorial aleatória no regime de mutirão. Outro fator que merece ser aprofundado é a falsa ideia de que a divisão de áreas para o processo de trabalho já se configura como territorialização. Na verdade, esta é apenas uma etapa do processo como um todo.
Ao longo das oficinas, as etapas para o processo de territorialização foram construídas e sistematizadas pelos próprios agentes e refletem uma proposta de participação de vários atores naquilo que na visão deles seria o caminho ideal para o estabelecimento de um procedimento de trabalho no território. Para os atores, a territorialização requer, em primeiro lugar, o reconhecimento da área, chamado de diagnóstico. Por meio dessa etapa, é possível conhecer o espaço onde se irá atuar, mapeando os principais equipamentos urbanos e problemas socioambientais. O diagnóstico é uma etapa imprescindível para o agente conhecer o território de atuação, antes mesmo de realizar as intervenções. Essa etapa faz parte da fase que se caracteriza como compreensão do contexto. A ideia se baseia em primeiro lugar, na identificação, coleta e análise de informações sobre o sistema de objetos e ações existentes no território8. De acordo com o relato dos próprios ACE, na prática, isso não acontece, pois assim que entram na função, vão a campo com outro agente mais experiente para aprender apenas o processo de trabalho e posteriormente já dão continuidade às ações. Historicamente, o procedimento que mais se aproxima do diagnóstico de área seria o reconhecimento geográfico (RG), que era realizado pelos agentes da FUNASA para subsidiar as ações de campo, mediante a construção dos croquis e contagem dos imóveis e da população. Entretanto, o RG enquanto ferramenta de diagnóstico enfatiza os aspectos quantitativos em detrimento dos qualitativos.
Após o diagnóstico, a segunda etapa sugerida foi a divisão do território para o desenvolvimento das ações. Essa etapa, para ser bem realizada, depende da primeira, pois o conhecimento da área ajuda em um processo de divisão territorial, a partir das especificidades espaciais. Bezerra24 discute uma metodologia de divisão do território com base nas características inerentes ao trabalho de campo dos agentes de saúde e adota como variáveis-chave para esse processo as distâncias percorridas, as barreiras geográficas, a morfologia do terreno e a densidade dos imóveis no espaço. Na prática o que acontece é a divisão de recortes territoriais de forma aleatória, baseada em uma soma de imóveis e agrupamento de quarteirões pelo critério de proximidade, ou seja, o espaço é visto como mero palco, no qual as ações devem ser desenvolvidas. Porém, tanto os agentes quanto os gestores sabem que esse espaço é dotado de complexidades e a divisão de atores de forma aleatória termina por não atender o princípio da equidade preconizado pelo SUS. Neste sentido, somente pensar a divisão do território em agrupamento de quarteirões para a vigilância ou estabelecer áreas de abrangência da atenção básica não correspondem à territorialização, seria reduzir e simplificar bastante esse instrumento de gestão.
A terceira fase caracteriza-se pela implementação dos territórios individuais, uma etapa que requer a discussão dos atores sobre quais recortes serão de responsabilidade de cada agente, pois a partir daí inicia-se o processo de apropriação territorial16, no qual o ACE buscará se articular com vários atores sociais presentes no seu território para apresentar sua proposta de trabalho e providenciar o apoio da comunidade para o desenvolvimento das ações de vigilância. É nesta etapa que o ACE estabelece parcerias com a unidade básica de saúde, as escolas, as lideranças comunitárias, as igrejas e os centros religiosos, os comerciantes, os órgãos setoriais e os moradores de forma geral. As parcerias são muito importantes para consolidar o processo de territorialização de uma área, pois a participação de diversos atores no início do processo traduz o cuidado em ouvir o outro e entender a dinâmica social do seu local de trabalho. Na rotina de trabalho dos ACE, essas parcerias acontecem muito mais de forma espontânea do que planejada, pois no dia a dia os atores sociais se aproximam mais dos agentes para apontar problemas e reivindicar soluções.
A quarta etapa refere-se às ações desenvolvidas no território. Talvez seja esta a fase mais frequente na rotina de trabalho dos ACE, pois as ações acontecem independentemente da realização dos procedimentos anteriores. Entretanto, o desenvolvimento dessas ações, quando realizado com base em um processo de territorialização, tende a ter mais sucesso e efetividade, uma vez que o conhecimento da área25 e o estabelecimento de parcerias transmitem maior confiança à população sobre o papel do ACE no território. O agente passa a ser visto pela comunidade como um insider e não como outsider. Quando o ACE passa a “pertencer” à comunidade, sendo reconhecido como o representante do Estado naquele território, seu trabalho tende a ser mais respeitado e otimizado, pois as barreiras sociais diminuem, diferentemente de quando o ACE entra num campo desconhecido e precisa conquistar a confiança dos moradores apenas para adentrar nos imóveis.
A quinta etapa se dá simultaneamente à quarta, pois se trata da coleta de dados e avaliação. A coleta viabiliza a alimentação dos bancos de dados do setor saúde que permite em diferentes escalas temporais e espaciais a descrição da situação da saúde ambiental em determinado contexto. Tão importante quanto a consolidação dos dados é a construção das informações que darão suporte à avaliação e à tomada de decisão por parte das equipes operacionais e da própria gestão. Na prática, essa fase acontece de forma fragmentada, pois a coleta de dados é realizada diariamente, a sistematização, semanalmente, e a consolidação, a cada ciclo de visitas que corresponde a sessenta dias, aproximadamente. Porém, a geração de informações baseadas nos dados e a própria avaliação são etapas nem sempre respeitadas, especialmente no âmbito operacional. Para Augusto e Branco26, a criação de uma política de informação em saúde ambiental seria um bom começo para agrupar os dados produzidos e gerar informações sistematizadas e não fragmentadas. Nesse sentido, Oliveira e Faria27 e Brasil28 apresentam possibilidades de como trabalhar as informações em saúde ambiental para a geração de indicadores que possam subsidiar as análises e as ações. Este é um dos desafios mais importantes na prática do ACE, ter acesso às informações geradas a partir dos dados coletados e, mais que isso, poder avaliar seu trabalho para redirecionar suas estratégias no território. Ao longo das oficinas, alguns supervisores relataram que realizam reuniões de avaliação com as equipes de ACE, porém a grande maioria dos agentes e supervisores confirmou que são momentos raros e geralmente para tratar somente de questões administrativas e operacionais.
A última etapa pode ser caracterizada pelo feedback, tanto entre a esfera gerencial e a operativa, quanto entre esta e as populações assistidas. A partir do momento que a população está disposta a contribuir com as ações dos ACE, ela tem o direito de saber sobre a situação de saúde ambiental da comunidade. O trabalho do ACE não se resume à prática de monitorar o ambiente, intervindo por meio de técnicas de tratamento ambiental e educação, mas também compete informar às pessoas presentes nos imóveis visitados a situação de saúde, com base nas informações coletadas nas visitas rotineiras e observações do contexto. Essa estratégia aproxima a população da vigilância, uma vez que convida para dentro do processo as pessoas que geralmente não participam diretamente das ações, além disso, confere um caráter de corresponsabilidade no âmbito de saúde naquele território.
Um dos maiores desafios postos à execução dessa proposta está na necessidade da participação efetiva dos diferentes atores. As fases, mesmo que ocorram de forma simultânea, carecem de avaliação própria, e não é o ACE individualmente que deve realizar essa avaliação, mas sim todos os envolvidos no processo de territorialização. O viés participativo é fundamental para o sucesso das ações no território e a tomada de decisões baseadas em um entendimento coletivo das situações de saúde. Mesmo assim, a garantia da participação social não é dada como certa, embora seja citada pelos ACE como essencial ao longo do processo. Talvez esse fato demonstre o quanto isolado o ACE atualmente se sente em sua rotina diária de trabalho.
Normalmente quem conduz os primeiros passos do processo de territorialização são os próprios gestores das políticas de saúde. Ressalte-se que nos municípios estudados não evidenciamos nenhum modelo de territorialização baseado nas fases apresentadas no item anterior. Geralmente o que existe é apenas a divisão do município em áreas de supervisão, e cada uma destas subdividida em microáreas para atuação dos ACE. Essa etapa, embora seja apenas a primeira no processo, representa um avanço na forma de conduzir as políticas de base territorial, visto que antes da descentralização ocorrida na década de 1990 os ACE atuavam de forma aleatória sem base territorial fixa. Atualmente algumas prefeituras indicam e implantam bases fixas para ação.
Embora haja destaque na posição do gestor, por meio das oficinas, questionou-se junto aos agentes quem seriam os outros atores importantes para uma territorialização de caráter participativo. Dessa forma, identificou-se o ACE (supervisores, chefes de turma, agentes operacionais e de campo); a comunidade (líderes, representantes dos conselhos e associações, delegados do orçamento participativo); representantes de escolas e unidades de saúde (profissionais de saúde); representantes da iniciativa privada; e órgãos setoriais que têm participação direta nas intervenções ambientais no município.
Os ACE possuem a maior capacidade de subsidiar o processo de territorialização, afinal, são os atores que atuam na ponta dos programas de vigilância e detêm o conhecimento mais detalhado das singularidades do território. Pereira29 identificou o quanto o conhecimento geográfico do ACE pode auxiliar na compreensão do espaço urbano, de suas contradições e de seus desafios operacionais. Uma das principais queixas dos ACE, em relação à interlocução com a gestão, refere-se ao fato de serem pouco ouvidos nas suas propostas e sugestões. De acordo com o depoimento de um ACE: “Se colocar aqui os que estão lá em cima, eles não vão saber apontar as especificidades do campo. Geralmente eles não nos escutam” (informação verbal). Sobre isso, Bitoun18 e Bezerra24 afirmam que entre a gestão e a ponta existe um hiato de comunicação que implica insatisfação dos agentes de campo e cobranças do cumprimento das metas pela esfera gerencial. Ao não reconhecer a potencialidade dos ACE sobre o território de atuação, a estrutura gerencial minimiza suas chances de efetivar ações mais eficazes no território.
Mesmo diante desse conflito, há a constatação de que o processo de territorialização só tem sentido se for realizado de forma conjunta. A leitura desse dado permite algumas interpretações, a primeira bastante positiva para a gestão, é que a base da Vigilância em Saúde, formada pelos ACE, mostra-se disposta a colaborar na discussão de processos de territorialização, embora um grupo representativo de ACE questione a ausência de diálogo com a gestão ou, ao menos, reclamam de não serem ouvidos em suas sugestões. Essa questão apareceu também nos relatos de experiência e na literatura18,24,29,30.
Os argumentos mais defendidos para justificar essa construção conjunta referem-se à capacidade técnica que os gestores podem ter de visualizar o território numa escala maior, complementando-se ao conhecimento empírico dos ACE sobre as especificidades dos mesmos.
Dos outros atores que podem auxiliar no processo, destacam-se os representantes comunitários, aqui compreendidos como líderes independentes, diretores de conselhos e associações, delegados do orçamento participativo, etc. Esses atores são fundamentais ao longo do processo, pois além de terem um conhecimento dos problemas e potencialidades das comunidades, exercem certo poder no controle das ações desenvolvidas pelo Estado. Na percepção dos ACE, existe uma dificuldade no trato com as lideranças comunitárias, gerando-se um confronto entre lógicas técnica e política. Esse argumento apareceu em algumas oficinas quando os ACE mencionaram que algumas lideranças buscam usar o trabalho deles para se promoverem individualmente na comunidade. Podemos entender claramente pelo relato de experiência abaixo: “O caso da limpeza do canal em determinada área – eles querem discutir tudo menos a limpeza do canal. Os líderes se sentem donos da situação e não permitem a condução das reuniões por parte dos ACE” (informação verbal). Na visão de muitos agentes, as lideranças, em sua maioria, são pessoas de difícil relação, pois tratam o ACE como um empregado próprio. Além disso, o excesso de lideranças que brigam por poder nas comunidades dificulta a interlocução com o poder público. Da mesma maneira que existem os conflitos, os agentes também relatam parcerias com os líderes: “as lideranças nos ajudam apontando os problemas que devemos encaminhar aos nossos superiores e agradecem quando a solução acontece de forma rápida e eficaz” (informação verbal).
Destaca-se também que o trabalho de base territorial no espaço urbano tem a atuação direta do campo da Vigilância em Saúde e da atenção básica. Inclusive, o MS propõe a união progressiva desses setores, especialmente no que tange à base territorial e ao trabalho de campo31. Dessa forma, os atores das UBS, enfermeiros, médicos, dentistas, ACS apresentam-se como atores importantíssimos quando pensamos a territorialização das ações da vigilância nas comunidades. Sobre esse assunto, Borba32 desenvolve uma metodologia de integração entre a atenção básica e a Vigilância em Saúde na esfera do município. Gondim33 acredita que a ampliação do olhar do ACE para a saúde da família também pode representar um avanço na tentativa de reduzir a fragmentação dos setores do próprio SUS.
Em relação a esse tema os ACE têm opiniões divergentes. Durante as oficinas, o questionamento foi sobre o relacionamento dos ACE com as UBS, especialmente com os ACS que desempenham funções semelhantes. As respostas foram as mais variadas, porém há uma percepção geral de que a figura do ACS goza de mais respeito e reconhecimento nas comunidades e no setor saúde. Uma questão importante que apareceu em todos os municípios é o tratamento discriminado que os ACE recebem nas UBS. Como a maior parte das UBS sedia o ponto de apoio dos ACE, ocorre, muitas vezes, dos piores espaços serem disponibilizados como local de apoio para a Vigilância em Saúde Ambiental. Além disso, os ACE relatam que não há um diálogo efetivo com os ACS, nem de forma pontual, nem sistemática, conforme o relato abaixo: “as pessoas da UBS infelizmente não valorizam o trabalho dos ACE. É como se não soubessem que nosso trabalho afeta diretamente o trabalho deles”. Bezerra et al.34 apresentam esses conflitos destacando que são mais regra que exceção. Agentes de saúde com bases territoriais fixas e próximas espacialmente não se comunicam como deveriam, enfatizando a fragmentação. Embora alguns ACE tenham relatado que o relacionamento com o ACS da área é positivo e existe uma ajuda mútua no desenvolvimento das ações.
Os outros atores mencionados foram representantes de escolas, da iniciativa privada e de órgãos setoriais da prefeitura. Em relação às escolas, os ACE não veem muita contribuição por parte de gestores escolares, exceto no auxílio em ações educativas que devem ser realizadas continuamente com crianças e jovens. Um dos relatos de experiência apontou para essa questão: “o trabalho de educação em saúde e ambiental nas escolas é importante, porque existem casos em que a criança lembra as ações educativas promovidas pelos ACE nas escolas e intercedem junto aos pais para facilitar o nosso acesso às residências” (informação verbal). Já os comerciantes e industriais devem participar do processo de territorialização na medida em que os seus imóveis são muito representativos pelo tamanho, natureza ou mesmo intensa circulação de pessoas, podendo funcionar como espaço de multiplicação de informações. Por fim, a participação de órgãos setoriais pode garantir uma efetividade maior de ações intersetoriais. Quando os representantes desses órgãos sentem-se parte do processo e conhecedores da realidade local, abre-se a possibilidade de uma relação de confiança com as equipes de saúde ambiental para intervir em problemas do território de ação.
De maneira geral, a participação integral de todos esses atores ainda não foi testada por nenhum dos municípios estudados. A proposta, ora apresentada, pode ser um caminho de generalização de uma metodologia participativa para se trabalhar os aspectos da territorialização com o objetivo de mitigar problemas ambientais locais e garantir o controle social do processo. Os atores sociais devem exercer seu papel de cidadãos e agentes públicos, mas também monitorar a execução das políticas públicas no município. Ressalte-se que a concepção das ideias partiu dos ACE com base nas experiências desses atores em suas ações rotineiras.
Os resultados e as informações discutidos neste artigo, embora investigados no âmbito local, podem ser levados à escala nacional devido à semelhança do processo de trabalho da vigilância e à discussão encontrada na literatura. Por isso, destacaremos agora alguns desafios importantes para o processo de compreensão e aplicabilidade da territorialização em Vigilância em Saúde Ambiental.
Primeiramente, deve-se destacar que os agentes de Vigilância em Saúde não são os únicos no território, eles fazem parte de uma rede maior e devem aprender a lidar com outros projetos políticos ali em curso. Esses projetos políticos na escala local vão impor desafios operacionais que os gestores e agentes devem incorporar na prática cotidiana, entendendo que isso faz parte da dinâmica territorial, por isso não se pode pensar o território na perspectiva topográfica-burocrática, mas sim como um sistema complexo que envolve disputas políticas que orientam decisivamente as intervenções.
Outro desafio refere-se às especificidades do território, caracterizadas pelas condições físicas e sociais do ambiente que podem gerar constrangimentos à atuação dos agentes. Essas condições são representadas por características geográficas das áreas, desde espaços alagados a áreas colinosas, além de diferentes morfologias urbanas que condicionam em maior ou menor dificuldade o trabalho da vigilância, como, por exemplo, áreas com imóveis dispersos ou com alta densidade de imóveis.
Um obstáculo que muitas vezes dificulta as ações no território refere-se às diferentes linguagens utilizadas nas visitas domiciliares. Devido às diferenças socioeconômicas que caracterizam os territórios, por vezes, faz-se necessário utilizar diferentes técnicas de comunicação para atingir os objetivos do trabalho. Essa adaptação de linguagem não é apenas para aproximar o agente da comunidade, mas principalmente para a mensagem transmitida ficar clara ao receptor. Nas áreas mais carentes, o trabalho de intervenção tende a ser mais forte, devido à precariedade das condições de infraestrutura, o que não exclui o trabalho educativo. Já nas áreas mais nobres, o monitoramento é realizado com menos intervenções (tratamento químico e mecânico).
No campo operacional da gestão do território um esforço contínuo precisa ser dedicado ao diálogo entre os atores de campo e os da gestão. A ausência do diálogo ou o processo unilateral desgasta uma relação que pela natureza do trabalho precisa ser boa. Existem muitas reclamações dos ACE que argumentam que não são ouvidos ou não têm suas reinvindicações atendidas. O diálogo deve ser estimulado, pois no processo de territorialização participativa não há espaço para decisões arbitrárias.
Outro desafio atual é garantir recursos humanos suficientes para firmar o princípio da universalidade. A não garantia de uma equipe de ACE completa no campo gera um efeito cascata nas ações da vigilância, desde territórios descobertos temporariamente a estratégias de trabalho diferenciadas, como os regimes de mutirões, que não é bom para a territorialização, pois não vincula um determinado ator a um território fixo. Algo semelhante é o rodízio de agentes e equipes nos diferentes territórios, cujo objetivo é de não fixar um ACE/supervisor em um território por muito tempo para não haver acomodação no trabalho, mas que atrapalha o processo de colaboração ACE/comunidade.
Por fim, um dos desafios operacionais para a territorialização da Vigilância em Saúde refere-se à deficiente comunicação entre os atores das vigilâncias ambiental, epidemiológica e sanitária. Conforme já ressaltamos, a integração entre essas esferas pode garantir uma melhor execução das políticas de vigilância, contudo, se tratadas de forma estanque, esses avanços não serão percebidos.