versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.41 no.3 São Paulo maio/jun. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37132015000000005
As micobactérias não tuberculosas (MNT) são ubíquas no ambiente humano, sendo que mais de 150 espécies de MNT já foram descritas até hoje.( 1 ) Quando inaladas por indivíduos suscetíveis, tais como os portadores de doenças pulmonares crônicas, as MNT podem levar a sintomas respiratórios crônicos, progressivos e às vezes fatais. Nas últimas três décadas, a incidência de isolamento de MNT em laboratório e de doenças pulmonares relacionadas vem aumentando, ultrapassando a da tuberculose em algumas áreas.( 1 , 2 ) Porém, é possível que o isolamento de MNT em espécimes respiratórios se deva à contaminação de espécimes ou à colonização transitória do paciente, não necessariamente indicando doença.( 1 )
Relatamos aqui a incidência de isolamento de MNT no Serviço de Pneumologia do Centro Hospitalar de São João, um hospital universitário terciário localizado no Porto, segunda cidade mais populosa de Portugal. É o maior hospital da região norte e um dos três maiores do país. Analisamos retrospectivamente pacientes soronegativos para HIV nos quais MNT haviam sido isoladas em pelo menos um espécime respiratório entre janeiro de 2008 e dezembro de 2012. As amostras foram descontaminadas pelo método de N-acetil-L-cisteína-hidróxido de sódio e inoculadas em meio líquido Middlebrook 7H9 (BBL Mycobacteria Growth Indicator Tube [MGIT]; Becton Dickinson, Franklin Lakes, NJ, EUA), conforme as instruções do fabricante. As culturas positivas, incubadas e monitoradas em sistema automatizado de cultura (BACTEC MGIT 960; Becton Dickinson), foram examinadas por baciloscopia com coloração de Kinyoun para BAAR. Na presença de BAAR, utilizou-se o ensaio molecular para micobactérias comuns e espécies adicionais (GenoType Mycobacterium CM/AS; Hain Lifescience GmbH, Nehren, Alemanha). Foram coletados dados demográficos, clínicos, radiológicos e microbiológicos. A relevância clínica do isolamento em amostra respiratória foi definida segundo os atuais critérios da American Thoracic Society/Infectious Diseases Society of America (ATS/IDSA).( 3 )
Duzentos e dois pacientes foram incluídos neste estudo. Desses, 118 (58%) eram do sexo masculino. A média de idade foi de 64 anos (variação: 23-89 anos). Os principais fatores de risco identificados foram a doença pulmonar estrutural subjacente, tal como DPOC, em 73 pacientes (36%), bronquiectasias, em 62 (31%) e sequelas de tuberculose, em 40 (20%); e condições não pulmonares, tais como diabetes mellitus, em 18 pacientes (9%), doença do refluxo gastroesofágico, em 16 (8%) e uso de terapia de imunossupressão, em 12 (6%). Não havia disponibilidade de dados sobre exposição ambiental. Obteve-se um total de 407 isolados, sendo que as espécies foram identificadas em 378 (93%). Dos 407 isolados, 237 (58%) foram identificados como membros do complexo Mycobacterium avium (CMA) e 141 (35%) foram identificados como pertencentes a uma das outras 11 espécies de Mycobacterium, com os 29 restantes (7%) sendo identificados como micobactérias, mas não em nível de espécie (Tabela 1). Esses isolados foram obtidos de amostras de escarro em 192 (95%) dos pacientes, de amostras de lavado brônquico em 13 (6%), de amostras de LBA em 7 (4%), de uma amostra de biópsia pulmonar em 1 (0,5%) e de uma amostra de aspirado gástrico em 1 (0,5%). O número de isolados aumentou a cada ano, de 52 em 2008 para 58 em 2009, 74 em 2010, 86 em 2011 e 137 em 2012. Dos 202 pacientes, 36 (18%) foram submetidos a tratamento para doença pulmonar relacionada a MNT, sendo que 32 (89%) deles preencheram os atuais critérios da ATS/IDSA para o diagnóstico. Entre os 36 pacientes tratados, a média de idade foi de 62 anos (intervalo: 32-89 anos) e 22 (61%) eram do sexo masculino. A doença pulmonar mais comum foi a DPOC, observada em 12 (33%) dos 36 pacientes, seguida de bronquiectasias, em 9 (25%), e sequelas de tuberculose, em 8 (22%). Houve 31 pacientes (86,1%) que apresentaram tosse, 29 (80,6%) que apresentaram produção de escarro e 23 (63,9%) que apresentaram dispneia. Os principais achados radiológicos foram bronquiectasias, nódulos e micronódulos. Entre os 36 pacientes tratados, as espécies de MNT identificadas foram CMA em 34 (94%), M. kansasii em 1 (3%) e M. xenopi em 1 (3%). Todos os pacientes foram tratados de acordo com as recomendações da ATS/IDSA.( 3 ) Os 34 pacientes com doença pulmonar causada pelo CMA foram tratados com rifampicina, etambutol e um macrolídeo (claritromicina ou azitromicina). O paciente com infecção pelo M. kansasii foi tratado com rifampicina, isoniazida e etambutol. O paciente com infecção pelo M. xenopi foi tratado com rifampicina, etambutol e claritromicina. Após a conclusão do tratamento, houve recidiva em 5 (13,9%) dos 34 pacientes com infecção pelo CMA, sendo que 4 desses 5 haviam preenchido os critérios da ATS/IDSA. Em três desses casos, optou-se por submeter os pacientes a retratamento - 1 foi curado, 1 morreu de câncer de pulmão enquanto ainda estava em tratamento e 1 ainda está em tratamento no momento - e, em outro caso, optou-se por não tratar, pois o paciente havia sido diagnosticado com câncer avançado. Não houve recidiva em nenhum dos dois pacientes tratados para infecção por M. kansasii e M. xenopi, respectivamente. Em 2 (5,6%) dos 36 pacientes, houve reinfecção por outras espécies (M. abscessus e M. scrofulaceum, respectivamente) após a conclusão do tratamento, sendo que ambos os pacientes ainda estão em tratamento no momento.
Tabela 1. Micobactérias não tuberculosas isoladas em espécimes respiratórios coletados de 202 pacientes.
Espécies de MNT | Número de isolados |
---|---|
CMA | 237 |
M. gordonae | 43 |
M. peregrinum | 33 |
M. chelonae | 26 |
M. kansasii | 13 |
M. abscessus | 12 |
M. scrofulaceum | 8 |
M. xenopi | 2 |
M. malmoense | 1 |
M. mucogenicum | 1 |
M. lentiflavum | 1 |
M. fortuitum | 1 |
M. spp. | 29 |
TOTAL | 407 |
MNT: micobactérias não tuberculosas; e CMA: complexo Mycobacterium avium.
Em Portugal, são escassos os estudos epidemiológicos. Em 2008, Marinho et al.( 4 ) publicaram um trabalho sobre 102 pacientes não infectados pelo HIV com MNT isoladas do sistema respiratório em nosso hospital ao longo de 7 anos (de 1997 a 2004). Naquele estudo, a maioria dos pacientes era do sexo masculino, a média de idade foi de 63 anos, e a maioria apresentava doença pulmonar subjacente, principalmente sequelas de tuberculose ou bronquiectasias. Os autores relataram que 16 (15,7%) dos pacientes foram tratados para doença pulmonar, sendo que 14 (88%) desses pacientes preencheram os critérios da ATS em uso na época.( 4 ) No presente estudo, identificamos quase o dobro desses pacientes ao longo de apenas 4 anos. O perfil demográfico de nossa amostra foi semelhante ao da amostra avaliada por Marinho et al.( 4 ) Em nosso estudo, as doenças pulmonares mais comuns foram DPOC e bronquiectasias. Embora os critérios utilizados para a definição de doença pulmonar tenham diferido entre os dois estudos, a proporção de pacientes tratados e dos que preencheram os respectivos critérios da ATS foi bastante semelhante. Em nosso estudo, as espécies de MNT mais frequentemente isoladas eram do CMA, o qual também apresentou a maior relevância clínica. Outros estudos realizados em Portugal também relataram o CMA como a espécie de MNT mais frequentemente isolada.( 4 - 6 ) Em um recente estudo epidemiológico mundial,( 5 ) as espécies de MNT mais frequentemente isoladas foram M. avium, M. gordonae, M. xenopi e M. fortuitum. Em outro estudo de base hospitalar,( 7 ) 16% dos pacientes com MNT isoladas de espécimes respiratórios preencheram os atuais critérios da ATS/IDSA.
O rápido aumento da incidência de infecção por MNT em todo o mundo nos últimos anos provavelmente se deve à combinação de consciência crescente, melhoria das técnicas de cultura e moleculares para detecção de MNT, envelhecimento da população e aumento da prevalência de doenças pulmonares crônicas e de doenças que resultam em imunossupressão. ( 1 , 2 ) Além disso, alguns autores sugerem que o declínio da incidência de tuberculose diminuiu a imunidade protetora antimicobacteriana cruzada associada à infecção por M. tuberculosis, o que de alguma forma promoveu um aumento da incidência de infecção por MNT.( 2 )
Nosso estudo apresenta algumas limitações. Como nossos dados foram coletados apenas de pacientes atendidos em um serviço de pneumologia, é possível que não sejam representativos da população em geral. O que nossos resultados indicam claramente é que as MNT são um problema emergente de saúde em nosso hospital e possivelmente na região norte de Portugal. Embora fosse aconselhável a realização de um estudo de base hospitalar para confirmação desses resultados e de estudos em maior escala para avaliação da magnitude do problema na região, os clínicos precisam estar cientes da possibilidade de infecção por MNT, a qual pode ter consequências devastadoras para os pacientes se não for diagnosticada e tratada adequadamente.